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Aconselhamento genético e eugenia, Eudes Quintino

Aconselhamento genético e eugenia

O Ministério da Saúde limita-se a um trabalho de aconselhamento, sem qualquer interferência na decisão do casal portador de doença genética hereditária em querer ou não constituir sua prole ou se inscrever no cadastro de adoção.

domingo, 18 de março de 2018

Atualizado em 16 de março de 2018 13:46

Michel Foucault norteou seu pensamento filosófico por canais extensos, muitas vezes rompendo barreiras que se apresentavam instransponíveis e, no saldo positivo de suas conquistas, deixou relevantes contribuições para a Bioética, principalmente quando enfrentou os procedimentos e políticas ditadas pelo Estado para se ocupar do homem como ser vivente, intervindo na população para deitar regras a respeito dos nascimentos, mortes, taxas de reprodução, fertilidade e outras correlatas.

Criou a assim chamada Biopolítica, que passou a ser entendida, de acordo com sua própria conceituação nas aulas ministradas em curso no Collège de France, da seguinte forma: "E, de outro lado, temos uma tecnologia que, por sua vez, é centrada não no corpo, mas na vida; uma tecnologia que agrupa os efeitos de massas próprios de uma população, que procura controlar a série de eventos fortuitos que podem ocorrer numa massa viva; uma tecnologia que procura controlar (eventualmente modificar) a probabilidade desses eventos, em todo caso em compensar seus efeitos. É uma tecnologia que visa portanto não o treinamento individual, mas, pelo equilíbrio global, algo como uma homeostase: a segurança do conjunto em relação aos seus perigos internos".1

Pois bem. O Ministério da Saúde esboçou iniciativa de criar inédito programa de saúde visando identificar casais que carregam riscos genéticos hereditários e, para tanto, propõe a eles a realização de uma investigação laboratorial para evitar o nascimento de criança com a mesma doença. Antes mesmo, pela Portaria 199, de 2014, instituiu a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, no âmbito do SUS, possibilitando o aconselhamento genético para que o portador da doença possa entender os riscos, consequências e opções para lidar com elas.

Nesta mesma linha de assistência encontra-se o chamado "teste do pezinho"( lei 8.069/90), de caráter preventivo, disponível nas redes hospitalares, com a finalidade de detectar a existência de doenças raras e possibilitar o tratamento adequado.

A Constituição Federal do Brasil, no § 7º do artigo 226, apregoa que "o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas". Fica explicitado que incumbe ao Estado a responsabilidade de conscientizar as famílias a quem cabe definir o número de filhos. Diferentemente da China e Índia, que exercem o controle populacional.

É de se observar que o problema de casais portadores de doenças genéticas com o risco de gerar um filho em iguais condições já se encontra solucionado pela prática da reprodução assistida. Trata-se da fertilização in vitro, procedimento realizado em clínicas especializadas, com um considerável custo financeiro, não oferecido pelo SUS e nem pela Saúde Complementar, com a finalidade até mesmo de se fazer o diagnóstico pré-implantatório dos embriões, selecionando-os de forma criteriosa, com a exclusão daqueles que acusarem a doença genética e transferindo os viáveis posteriormente para o útero.

O que chama a atenção pela iniciativa é que, dependendo da formatação do programa, poderá trazer à tona a questão da eugenia, tão combatida no campo bioético, sendo que algumas vozes já se levantaram para reprovar a proposta com esta conotação. A eugenia, compreendida como a utilização de métodos de seleção artificial do material reprodutivo com a finalidade do melhoramento da espécie humana, presente em grande parte do nazismo, é conduta repudiada mundialmente.

Isto porque, além de contrariar a própria natureza humana, despreza e discrimina as pessoas por categorias, estabelecendo um critério de aptidão ou não para a reprodução. Lembra muito o romance de Aldous Huxley intitulado O Admirável Mundo Novo, em que o autor relata a antecipação da tecnologia reprodutiva, com o nascimento de crianças programadas em laboratórios e pertencentes a uma classe definida.

Mas, ao que tudo indica, pelo pouco que se pode observar do Programa Pré-Nupcial com fortalecimento das ações em Saúde Sexual e Saúde Reprodutiva que o Ministério da Saúde pretende implantar2, não há nenhum indicativo da ocorrência de eugenia. Pelo contrário, minúsculo seu alcance. Limita-se a um trabalho de aconselhamento, sem qualquer interferência na decisão do casal portador de doença genética hereditária em querer ou não constituir sua prole ou se inscrever no cadastro de adoção. Se, mesmo informado, o casal pretender o filho, no âmbito da sua reconhecida autonomia, e se arrepender posteriormente, não poderá interromper a gravidez, porque não há permissivo legal para tal modalidade. Se informado e pretender os benefícios da reprodução assistida, não terá acesso a tal procedimento, a não ser que banque os custos. Na realidade, fica muito limitada a intervenção do Estado neste particular, tanto pela ausência de infraestrutura necessária, que exige a implantação de centros de referência em genética, como também pela ausência de recursos para o devido atendimento.

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1 Foucault, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução: Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 209.

2 Cuidado Pré-Nupcial Fortalecimento das ações em Saúde Sexual e Saúde Reprodutiva

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em Direito Público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, reitor da Unorp e membro ad hoc da CONEP/CNS/MS.

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