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Capacidade Civil da Pessoa com Deficiência: Tomada de Decisão Apoiada e Curatela

As preferências, interesses e vínculos afetivos da pessoa com deficiência devem ser preservados e levados sempre em consideração; seja num, ou no outro procedimento. Até mesmo a curatela, que é excepcional e extraordinária, perde seu caráter de medida substitutiva da vontade.

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Atualizado em 18 de abril de 2018 08:16

A Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência (lei 13.146/15), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, ampliou significativamente o espetro de proteção conferido às pessoas com deficiência, ao mesmo tempo em que reconheceu a importância da autonomia, independência e liberdade desses indivíduos para fazerem suas próprias escolhas.

A referida legislação, portanto, não se limitou a garantir a inclusão das pessoas com deficiência, como também a emancipação pessoal e social destas, garantindo, assim, o exercício pleno de seus direitos, dentre os quais o direito à liberdade, à intimidade e à afetividade.

Houve uma importante mudança relacionada ao regime de capacidade das pessoas com deficiência mental e intelectual, retirando-as da condição de absoluta ou relativamente incapazes que até então ocupavam no ordenamento jurídico.

O Estatuto previu expressamente que a deficiência não afetará a plena capacidade civil da pessoa, a qual terá assegurado o direito ao exercício dessa capacidade em igualdade de condições com os demais (art. 6º), podendo casar-se, constituir união estável, exercer direitos sexuais e reprodutivos, decidir sobre o número de filhos, ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar, conservar sua fertilidade, exercer direito à guarda, tutela, curatela e adoção.

Dito isso, não restam dúvidas de que as ideias de deficiência e incapacidade foram desvinculadas. Ou seja, o deficiente é, em regra, plenamente capaz. É possível, porém, que haja necessidade de adoção de procedimentos de auxílio para a prática dos atos civis pela pessoa com deficiência, quais sejam, a tomada de decisão apoiada e a curatela.

1. Tomada de Decisão Apoiada.

A tomada de decisão apoiada é um procedimento judicial, de iniciativa da própria pessoa com deficiência, que dele se valerá quando pretender a obtenção de auxílio de terceiros para realizar certos atos de sua vida.

É importante que se leve em consideração o significado da palavra apoio, devendo ser
compreendida como ajuda, auxílio, proteção. Ou seja, a tomada de decisão apoiada deve respeitar as vontades e preferências da própria pessoa apoiada, não sendo substituída pela vontade de seus apoiadores. Tanto é assim que os apoiadores - a lei prevê que sejam dois - serão escolhidos pela própria pessoa com deficiência, exigindo o Estatuto que se trate de pessoas idôneas, com relação às quais o apoiado mantenha vínculos e possua confiança.

O termo de apoio será apresentado ao Juiz, que ouvirá o Ministério Público antes de se
pronunciar quanto ao pedido. Com isso, fica ampliado o espectro de proteção à pessoa com deficiência.

A situação não se assemelha às hipóteses de mero conselho ou palpite. Os apoiadores
desempenham um encargo de suporte à pessoa apoiada, cumprindo-lhes zelar pelos interesses desta, inclusive noticiando ao Juiz circunstâncias de negócios jurídicos que possam representar risco ou prejuízo relevante ao apoiado.

A lei não estabelece o prazo mínimo de duração da tomada de decisão apoiada, nem
arrola os atos que se submeterão a apoio. Quando o apoiado formula o pedido, é necessário que especifique os limites do apoio pretendido, bem como o seu prazo de vigência. A sentença judicial que julgar esse pedido indicará necessariamente a sua duração.

De outro lado, considerando que a pessoa apoiada é plenamente capaz, a ela é
conferida autonomia para requerer a extinção da medida de apoio a qualquer tempo. Também os apoiadores poderão solicitar sua exclusão do processo, sendo ambos os pedidos submetidos à decisão judicial.

2. Curatela.

Como visto, há uma via assistencial para a pessoa com deficiência que possui o necessário discernimento para praticar os atos de sua vida: o procedimento de tomada de decisão apoiada. Esse instituto é menos invasivo à esfera pessoal do deficiente, garantindo sua autonomia e liberdade. Daí por que deve ser a primeira opção a ser considerada.

A lógica do Estatuto é a seguinte: a pessoa com deficiência é plenamente capaz. Em
alguns casos, todavia, o grau de comprometimento da pessoa, em decorrência da deficiência, poderá afetar sua capacidade de expressão da própria vontade. É para essas hipóteses em que há comprometimento da capacidade plena que a curatela se presta.

O procedimento de curatela, portanto, terá caráter excepcional e temporário. Ou seja, a curatela somente será adotada quando realmente necessária para a preservação dos interesses do próprio deficiente. Prescreve a lei que a curatela deve ser proporcional às circunstâncias do caso e durar o menor tempo possível.

Diferentemente do procedimento de tomada de decisão apoiada, que é de iniciativa exclusiva da pessoa com deficiência, a curatela possui outros legitimados para ingressarem com a ação, dentre os quais se incluem cônjuges ou companheiros do curatelado, seus parentes, o representante da instituição onde esteja abrigado e, na falta desses, o Ministério Público.

Nesse processo, o juiz contará com a ajuda de um expert ou de uma equipe multidisciplinar, os quais têm como função realizar perícia para avaliar e delimitar os atos para os quais haverá a necessidade de curatela da pessoa com deficiência.

Na sentença que decidir o processo, o juiz explicitará seus limites, indicando os atos que esta atingirá, circunscritos às questões patrimoniais e negociais, bem como o tempo pelo qual perdurará, sendo possível, ainda, sua revisão periódica.

Importante referir que a curatela não atingirá atos de índole existencial, de modo que ao curador fica vedado interferir em questões como o casamento, religião, filhos e liberdade sexual.

3. Conclusão.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência alterou significativamente o regime de incapacidades previsto no Código Civil. A partir desse novo regramento, a pessoa com deficiência, portadora de transtornos mentais ou de desenvolvimento, é considerada plenamente capaz para os atos de sua vida.

Não se está, aqui, dizendo que essa pessoa não mereça especial proteção. Pelo contrário, o reconhecimento de sua vulnerabilidade impõe um tratamento diferenciado em diversas questões, o que a Lei de Inclusão garante. O deficiente é vulnerável, mas não incapaz.

Nessa toada, os institutos da tomada de decisão apoiada e da curatela devem ser compreendidos como instrumentos de apoio para o exercício da capacidade da pessoa com deficiência, e não limitadores de sua autonomia e liberdade.

As preferências, interesses e vínculos afetivos da pessoa com deficiência devem ser preservados e levados sempre em consideração; seja num, ou no outro procedimento. Até mesmo a curatela, que é excepcional e extraordinária, perde seu caráter de medida substitutiva da vontade.

Tratando-se de regramento bastante recente em nosso ordenamento, o qual rompeu com a lógica anterior do sistema, ainda pendem dúvidas quanto à orientação que os Tribunais pátrios darão a respeito da matéria.

Confia-se, porém, que a compreensão do sistema como um todo dará um norte a essas decisões, afastando a ideia de substituição da vontade, para dar lugar a um modelo de auxílio capaz de garantir a emancipação da pessoa com deficiência em todas as esferas de sua vida, eliminando-se os obstáculos que impedem o pleno exercícios de seus direitos.

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*Raquel Tedesco é sócia do escritório Raquel Tedesco Advocacia e Consultoria jurídica.


*Bruna Katz é sócia do escritório Bruna Katz Advocacia.

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