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Reflexões sobre uma abolição inacabada

O debate e a reflexão sobre o legado da abolição do regime escravocrata são demandas importantes.

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Atualizado às 16:37

No Brasil a abolição da escravatura libertou seres humanos ao extinguir a condição de propriedade que lhes era atribuída e os tornava objetos utilizados como meios de produção. Uma característica cruel e central do antigo modelo de relações sociais. Libertos, pouco se fez para que aqueles novos cidadãos, que viviam em condições de precariedade, obtivessem avanços reais em sua dignidade. Passados 130 anos da assinatura pela princesa Isabel da Lei que mudou definitivamente o status quo dos negros no país, é inegável que ainda padecem dos efeitos da discriminação racial originadas antes do império da Lei Áurea. São traços de rejeição e não aceitação daquela população que ainda comprometem o comportamento de organizações sociais e empresariais, bloqueando a inclusão socioeconômica dos descendentes dos escravos ainda hoje.

Último país das Américas a libertar seus escravos, o Brasil, que manteve por quase quatro séculos o regime escravocrata, se vê diante da necessária discussão sobre meios eficazes de combater as sequelas decorrentes do longo período de escravização sem que políticas de Estado ou ações privadas promovessem melhorias para essa parcela expressiva de nossa população. Daí a proposta da OAB/SP, em parceria com a AASP, o CESA, o IASP e a Faculdade Zumbi dos Palmares, de promover o ato Reflexões de uma abolição inacabada. Sim, precisamos acelerar a inclusão para atingirmos um estágio civilizatório do qual possamos nos orgulhar, sem distinção para um povo que enfrentou dura trajetória na história do país e ainda não atingiu a igualdade plena de direitos.

Diferentes dados estatísticos e estudos comprovam a realidade de abandono secular da população. Na representação política, homens negros são 37% dos vereadores e as mulheres negras apenas 5%. No Congresso Nacional, dos 513 deputados federais menos de 10% são negros, e dos 81 senadores apenas dois declaram-se negros ou pardos. Esses porcentuais estão muito distantes da formação étnica brasileira, cuja população parda e negra corresponde a 54,9% dos mais de 205 milhões de habitantes no País, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Um importante eixo de desenvolvimento da Nação, a política educacional não consegue promover a preparação de crianças, adolescentes e jovens em quantidade e qualidade satisfatórias. Essa deficiência, mais grave no sistema público, manifesta-se de maneira evidente na população afrodescendente. Como consequência, na faixa etária de 27 a 30 anos, apenas 9% dos homens negros e 15% das mulheres negras conseguem concluir o ensino superior. Parte de uma cadeia de fatos decorrentes dessa realidade, desequilíbrios preocupantes ainda são verificados no mercado de trabalho. Os homens negros ganham 53% da renda média de um homem branco, enquanto para as mulheres este número é de 42%. O reflexo mais imediato dessas diferenças se apresenta na má distribuição de riquezas: na parcela do 1% mais ricos, 79% eram brancos, em 2014.

A maneira como parcela significativa da sociedade enxerga e trata os negros é outro ponto de preocupação. Estatísticas obtidas por meio do Disque 100, um canal de denúncias de violações de Direitos Humanos, revelam como o racismo ainda é um mal presente no cotidiano brasileiro. Em 2015, foram 1.064 denúncias de crimes de racismo e injúria racial. Nas últimas décadas, vimos a internet dar suporte a discursos de ódio e ofensas racistas, que se propagam de forma assustadora. Essas maneiras de classificar e desrespeitar o semelhante em função da cor de sua pele devem ser combatidas, erradicadas.

O debate e a reflexão sobre o legado da abolição do regime escravocrata são demandas importantes. O exercício da cidadania nos obriga a participar do desenvolvimento de políticas públicas voltadas à promoção da igualdade racial. Passados 130 anos, é possível afirmar que o mal principal foi abolido, mas que as graves sequelas advindas dele ainda permeiam diversos aspectos da nossa organização social, econômica e cultural.

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*Marcos da Costa é presidente da OAB/SP.

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