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A legitimidade das escusas probatórias do artigo 404 do Código de Processo Civil

O artigo 404 do CPC/15 traz em seu bojo as escusas probatórias, consistentes em proteger, dentre outros, a privacidade e a intimidade daquele que detém ou pode vir a produzir provas que são úteis à discussão no processo.

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Atualizado em 25 de setembro de 2019 18:10

 

Dentro da perspectiva de que o direito à prova é próprio direito constitucional implícito a garantir, por sua vez, o acesso à justiça como acesso à ordem jurídica justa, impregnada de carga ética e não apenas reduzido a meros formalismos, é certo concluir que as normas jurídicas não podem constituir obstáculos à reconstrução dos fatos dentro da relação jurídica processual, a não ser para garantir outro direito fundamental tanto ou mais valioso que o próprio direito ao acesso à justiça, levando-se em consideração o critério da ponderação.

O artigo 404 do CPC/15 traz em seu bojo as escusas probatórias, consistentes em proteger, dentre outros, a privacidade e a intimidade daquele que detém ou pode vir a produzir provas que são úteis à discussão no processo. Diz o dispositivo:

 

Artigo 404 - A parte e o terceiro se escusam de exibir, em juízo, o documento ou a coisa se:

I - concernente a negócios da própria vida da família;

II - sua apresentação puder violar dever de honra;

III - sua publicidade redundar em desonra à parte ou ao terceiro, bem como a seus parentes consangüíneos ou afins até o terceiro grau, ou lhes representar perigo de ação penal;

IV - sua exibição acarretar a divulgação de fatos a cujo respeito, por estado ou profissão, devam guardar segredo;

V - subsistirem outros motivos graves que, segundo o prudente arbítrio do juiz, justifiquem a recusa da exibição;

VI - houver disposição legal que justifique a recusa da exibição;

Parágrafo único - Se os motivos de que tratam os incisos I a VI do caput disserem respeito a apenas uma parcela do documento, a parte ou o terceiro exibirá a outra em cartório, para dela ser extraída cópia reprográfica, de tudo sendo lavrado auto circunstanciado.

 

Nos ensinamentos de Leonardo Greco, limitações probatórias seriam "todas as proibições impostas pelo ordenamento jurídico à proposição ou produção das provas consideradas necessárias ou úteis para investigar a verdade dos fatos que interessam à causa1".

Completa dizendo que "essas limitações probatórias devem ser cuidadosamente analisadas (...) defender a natureza meta-jurídica da prova e sua função demonstrativa da verdade não significa impor ao juiz o dever de buscar a verdade a qualquer preço, porque também a ciência tem limites éticos, políticos e econômicos".

A criação de obstáculos desproporcionais à busca da verdade pelas partes esbarraria no próprio exercício do direito à prova, criando um contrassenso ao elevar o direito à prova ao status de fundamental. Reconhecê-lo como tal é permitir a máxima efetividade ao conjunto probatório, possibilitando às partes os meios úteis e idôneos que possam influenciar no convencimento do juiz. Se nas limitações probatórias criadas pela lei puder-se observar motivos irrazoáveis, tais normas deverão ser eivadas de inconstitucionalidade2.

Na medida em que se busca a proteção a direitos fundamentais de grande vulto, tais como: a privacidade e a intimidade versus o acesso à justiça e ao devido processo legal, deve haver a correta proporcionalidade e razoabilidade a fim de se verificar a legitimidade da escusa aplicada ao caso em análise, conforme explicaremos adiante.

Seguindo a doutrina de Zulmar Duarte de Oliveira Jr., com a qual se concorda, as escusas trazidas no artigo 404 do CPC/15 não podem servir como espécies de fuga para que a parte que, eventualmente, disponha ou tenha condições de produzir as provas necessárias à discussão processual, sob o argumento de existir risco de devassar sua privacidade ou intimidade, quando esse seja menor do que "suas potencialidades probatórias3".

Para o autor, o juiz pode fixar medidas alternativas de proteção ao interesse da parte que se vê diante da obrigação de apresentar o documento ou a coisa. Uma dessas medidas seria justamente a decretação do segredo de justiça, previsto pelo artigo 189 do CPC/15. Outra é que, diante de documento que permita a separação de seu conteúdo e apenas parcialmente se abriga sob as escusas do dispositivo, que seja apresentada ao juízo a outra parte, não protegida.

Às partes quando do gozo do direito à prova, deve ser permitida, por outro lado, a chance de eficazmente influírem na formação da decisão final, porque isso é a essência do contraditório substancialmente considerado4. Ao permitir que alguma das escusas seja aplicada, permite-se o afastamento de parcela dessa influência na decisão final, havendo prejuízos para as partes e para a apuração da verdade em definitivo5, e não para o juiz.

Como as partes têm direito ao acesso a uma ordem jurídica justa, e não apenas à prolação de uma decisão ao final do processo, no qual nenhuma das garantias foi assegurada, dentro do aspecto substancial, as provas devem ser restringidas somente diante de risco de manipulações indevidas, de dilação protelatória ou se manifestamente inúteis. Em outros casos, a prova deve ser sempre deferida, já que mesmo com as garantias processuais, a obtenção dos meios de provas não quer dizer a ofensa correlata a outros direitos, como os direitos à privacidade e à intimidade6.

Para Daniel Amorim Assumpção Neves, na obra Comentários ao Novo Código de Processo Civil, as escusas do artigo 404 não devem ser levadas ao extremo, já que por muitas vezes os negócios oriundos das relações familiares, por exemplo, produzem documentos que influem negativamente na órbita jurídica de terceiros, prejudicando-lhes direitos e se tornando elementos indispensáveis para que o juiz construa entendimento consentâneo com a realidade dos fatos- o objeto da demanda se relaciona diretamente ao documento.

Defende, portanto, o autor, que deve o juiz aplicar a proporcionalidade, com análise no caso concreto quanto à efetiva utilidade da prova para a formação de seu convencimento, assegurando às partes o contraditório efetivo sempre, já que "toda escusa, ainda que legítima, prejudica o trabalho cognitivo do juiz que deixa de ter acesso a um documento ou coisa que poderia ajudar na formação de seu convencimento apesar de legitimada pela lei, a recusa gera tal sacrifício e deve ser relativizada ao máximo7".

Continua ao afirmar que o direito à prova não é absoluto (como nenhum outro direito, frisa-se, nem mesmo o direito à vida), já que sofre limitações de ordem constitucional ou infraconstitucional. A exclusão de algum dos elementos probatórios no processo é sempre prejudicial, e somente será justificada se considerado como um mal menor em relação a outros valores, eventualmente, atingidos pela aplicação da escusa.

A limitação à busca da verdade é algo maléfico, mas que em diversas ocasiões pior seria a sua permissão.(...) A obtenção da verdade não é um fim em si mesmo, que deva ser perseguida sem qualquer outra valoração ou ponderações sobre os outros escopos buscados pelo processo. Por mais importante que seja a busca da verdade alcançável, jamais poderá ser considerado que a busca da verdade seja o único objetivo no processo. Isso faria com que a busca da verdade fosse algo absoluto, sem limite, admitindo-se qualquer espécie de prova, produzida de qualquer forma, e em qualquer momento do processo. (grifo nosso)8

Aqui, parece o autor seguir na linha de que a ponderação sobre a relevância da prova ou não para o processo deve ser aferida concretamente pelo juiz, e não de maneira abstrata.

Considerar as escusas probatórias listadas no artigo 404 do CPC/15, de pronto, como espécie de direito protestativo de uma das partes contra a outra seria, por si só, um absurdo, além do friso de que nenhum dos direitos fundamentais é absoluto, como anteriormente comentado.

Além disso, o próprio Código traz em seu artigo 370 o indicativo de que cabe ao juiz determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito, ditame que não deve ser considerado em sua literalidade, já que o juiz deve analisar a utilidade das provas sob a perspectiva da estratégia lançada pelas partes.

Outro tema que se entende por necessário de ser levantado é quanto à aplicação ou não do direito a não autoincriminação no processo civil. Sabemos, nessa toada, que a sua aplicação no processo penal é certa e necessária, mas quanto ao processo civil, existem diversas controvérsias, já que sua aplicação violaria frontalmente outros princípios entendidos como normas fundamentais pelo Código de Processo Civil de 2015 - como o da cooperação, além de dificultar a própria tutela jurisdicional - uma das partes atuante no processo fica tolhida de provar os fatos relevantes à sua defesa9.

Segundo ensinamentos de Leonardo Greco, a escusa probatória somente deveria ser aplicada se concernente em motivo de primeiro grau de privacidade - de acordo com a teoria alemã dos três graus de privacidade, como veremos adiante -, não podendo o ordenamento jurídico criar escusas, cujo lastro é o suposto direito à não autoincriminação, sob pena de grave limitação à busca da verdade.

Prossegue dizendo que deve o juiz ponderar sobre a legitimidade da prova: se concluir pela necessidade da prova no processo e pela não aplicação da escusa, mas de outro lado, reconhecer que a parte deve ser protegida, deve aplicar o segredo de justiça ao processo.

 

(...) Nesse caso, a parte beneficiada pelo acesso à informação estará vinculada ao dever de conservar esse sigilo, especialmente quando o fato ou o documento incriminador possam ser geradores ou servir para provar outros direitos seus em relação a terceiros. Ao segredo de justiça estará vinculado o próprio juiz, caso o fato ou a prova sejam reveladores de responsabilidade criminal do depoente ou de terceiro10.

 

Disposto o acima, nosso posicionamento é o de que o direito à não autoincriminação não tem sua aplicação de pronto ao processo civil pela própria comparação feita com o direito à prova. As partes tem o direito de provar todos os fatos relevantes e controvertidos apresentados no processo, ainda que estejam em poder da parte contrária, pelos motivos que expor-se-á, ressalvados alguns casos em sentido contrário, para os quais entende-se pela aplicação das escusas probatórias.

Existem outros elementos que devem ser sopesados quando da análise da legitimidade das escusas apresentadas pelo Código de Processo Civil de 2015, quais sejam: segurança jurídica, proteção da confiança profissional e da solidariedade familiar e, boa-fé.

Esta última visa proteger com a máxima efetividade possível a busca da verdade, sendo dever ao qual se submetem as partes e todos os outros sujeitos com alguma atuação no processo, inclusive, o próprio juiz. Por isso, serve na ponderação a ser feita entre a produção probatória em busca da verdade e as escusas probatórias que se revelam no caso concreto.

Dentre as garantias constitucionais do processo, está a segurança jurídica: no processo deve ser protegida a liberdade de produzir provas, bem como ter acesso a elas, ainda que estejam em poder da parte contrária.

A segurança jurídica é violada quando sabe existir provas de determinado direito, mas a parte é impedida de produzi-las. A parte não sabe se pode gozar do direito, já que, se, eventualmente, instada, não consegue fazer prova de sua existência.

Nesse sentido, não podem existir obstáculos irrazoáveis à produção probatória ou, ainda, que seja procedida análise em abstrato dos mesmos, sob pena de cercear direitos fundamentais de uma das partes, ferindo a paridade de armas. O magistrado deve analisar a liberação de uma das partes, em apresentar provas que estejam em seu poder, levando em consideração, também, as peculiaridades que o caso concreto oferece, quando a ponderação em abstrato não conseguir solucionar o caso.

Por fim, há de se falar da proteção da confiança profissional e da solidariedade familiar. O primeiro dos elementos trata do sigilo que deve ser mantido obrigatoriamente sobre informações que sejam fornecidas por profissionais ou instituições procuradas. Tais informações não podem ser fornecidas a terceiros - inclusive ao próprio juiz -, sob o argumento de ser meio de prova. O grau de privacidade a que se relacionam também deve ser analisado no caso.

No concernente à solidariedade familiar, informa, por fim, Leonardo Greco:

 

Quanto à solidariedade familiar, esta constitui um elemento essencial na conservação e no aprofundamento dos laços afetivos que unem os membros de uma família, na participação das pessoas da família do âmbito mais restrito da vida privada de cada um de seus membros e na assistência recíproca absolutamente desinteressada, especialmente em favor dos familiares, por qualquer motivo, mais necessitados11.

 

Longe de esgotar o tão extenso tema em tão poucas palavras, limitamo-nos a aguçar a curiosidade dos leitores para próximas leituras finalizando com a ideia de que as escusas probatórias constantes no 404 do Código de Processo Civil apresentam, e assim mesmo quando o fazem, critérios confusos, imprecisos e irrazoáveis, perfazendo-se em obstáculos desproporcionais, na maioria das vezes, ao direito de prova das partes.
__________

1 - Greco, Leonardo. Instituições de processo civil. Vol. II. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. P 133 - 134.

 

2 - Gajardoni, Fernando da Fonseca. Dellore, Luiz. Roque, André Vasconcelos. Oliveira Jr.., Zulmar Duarte de. Processo de conhecimento e cumprimento de sentença - comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, Rio de Janeiro: Forense, 2016. P. 314 - 363/211 - 235.

 

3 - Gajardoni, Fernando da Fonseca. Dellore, Luiz. Roque, André Vasconcelos. Oliveira Jr., Zulmar Duarte de. Processo de conhecimento e cumprimento de sentença - comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, Rio de Janeiro: Forense, 2016. P. 314 - 363/211 - 235.

4 - Câmara, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015. P. 221 - 261.

 

5 - Ferreira, William Santos. In Wambier, Teresa Arruda Alvim. Didier Jr., Fredie. Talamini, Eduardo. Dantas, Bruno. Breves comentários ao novo código de processo civil de acordo com as alterações da lei 13.256/2016. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. P. 1059 - 1063.

 

6 - Mangone, Kátia Aparecida. In Wambier, Teresa Arruda Alvim. Didier Jr., Fredie. Talamini, Eduardo. Dantas, Bruno. Breves comentários ao novo código de processo civil de acordo com as alterações da lei 13.256/2016. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. P. 1135 - 1136.

 

7 - Neves, Daniel Amorim Assumpção. In Cabral, Antonio do Passo. Cramer, Ronaldo. Comentários ao novo código de processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015. P. 614 - 615.

8 - Neves, Daniel Amorim Assumpção. Novo código de processo civil comentado, artigo por artigo. 2ª Ed. Salvador: JusPodivm, 2017. P. 669 - 672.

 

9 - Nesse sentido, Leonardo Greco: "Se, no processo penal, a proibição de autoincriminação parece justificável na medida em que reflete o ônus da acusação de demonstrar cabalmente a responsabilidade do acusado, como corolário da presunção de inocência, no processo civil tem merecido severas críticas, pois viola o princípio da cooperação e pode constituir um obstáculo intransponível ao acesso à tutela jurisdicional do direito em favor de uma das partes ou de ambas, que ficam privadas da possibilidade de provar os fatos dos quais o seu direito decorre." (Greco, Leonardo. Instituições de processo civil. Vol. II. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. P 142-143).

 

10 - Greco, Leonardo. Instituições de processo civil. Vol. II. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. P 142-143.

 

11 - Greco, Leonardo. Instituições de processo civil. Vol. II. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. P 152.

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*Debora Müller Bueno é advogada. Pós Graduada em Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes. Pós-Graduada em Direito Previdenciário pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ. Graduada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

 

 

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