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O bonde

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Atualizado em 18 de janeiro de 2013 09:03

Para quem não sabe, talvez muitos não saibam : Bonde era um meio de transporte.

Agora é apenas uma lembrança daqueles que o conheceram.

Na verdade existe ainda aqui e ali, como instrumento turístico, como o de Santos, que faz um curto percurso pelo centro da encantadora cidade.

No Rio de Janeiro há o bonde de Santa Tereza, e mesmo em São Paulo havia, não sei se há, um que saia do Memorial dos Imigrantes, no Brás, e dava aos domingos um pequeno giro.

Logo depois dos Estados Unidos, o Brasil adotou o Bonde, em 1868. D. Pedro II participou da primeira viagem.

Em São Paulo o novo transporte veio em 1872. Puxado a burro, somente no início do século 20 veio para a cidade o elétrico.

Não se pense que ele significou apenas um eficiente meio de transporte, que em São Paulo existiu até 1968.

O seu significado sócio cultural foi extraordinário. Constituiu um importante fator de sociabilidade. O Bonde aberto, com os seus compridos bancos, proporcionava a integração dos passageiros, entre si, com a própria cidade e com cada local, rua, casa que ele ia ultrapassando.

O estribo, por sua vez, possibilitava que dele se saltasse, quando chegava o cobrador, caso se estivesse perto do destino. . . Ficava-se pendurado para se aplicar um "pendura" . Aliás, consta que o próprio cobrador "pendurava", pois de cada três cobranças registrava com a cordinha sonora apenas duas . . . Assim agia, na certeza da impunidade. Provas não havia, uma vez que "no bonde salvo o cobrador e o motorneiro tudo era passageiro".

Quando eu pulava com ele em movimento, normalmente caia. Era conhecida a minha falta de agilidade.

Enquanto o automóvel isola, o bonde congregava. Convidava ao diálogo, possibilitava o relacionamento. Provocava um sentimento de paz, bonomia e benquerença. Dele podia-se olhar o mundo ao nosso redor.

Alguém disse que o Bonde era o "mirante do cotidiano".

Não só do cotidiano. Via-se e enxergava-se o outro. Esse olhar para o outro foi tema de uma publicidade estampada no seu interior: "veja ilustra passageiro, que belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado". E, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o tônico creosotado.

Algumas características do Bonde davam condições à conversa, à reflexão, à leitura, ao flerte, ou simplesmente ao vagar dos olhos, dentre outras. O escritor Amadeu Amaral sintetizou as razões destas possibilidades: "vagaroso não dava sono; veloz mas não provocava vertigem seguro e repousante".

Do Bonde se extrai aspectos poéticos e também hilários, contados em prosa, verso e música, de Machado de Assis, a Fernando Portela, autor de um magnífico álbum "Bonde Saudoso Paulistano", passando por Carlos Drumond e por vários compositores.

Machado expôs com lirismo a magia proporcionada pelo Bonde : "Admirei a marcha serena dos bondes, deslizando como os barcos dos poetas, ao sopro da brisa invisível e amiga".

É isto. O Bonde serenamente percorria os seus caminhos e permitia que a brisa acariciasse os rostos e também as almas.

Eram momentos de sossego, sem contratempos, engarrafamentos e, abafamento.

Faço uma observação, até para ser coerente. Não era todo bonde que proporcionava bem estar. O chamado bonde "camarão", por ser fechado não se diferenciava muito do ônibus. A única diferença eram os trilhos, quando deles ele não saia.

Quando vieram os bondes elétricos, Machado, em deliciosa crônica, lamentou o abandono dos burros, que ficaram desempregados.

Nessa crônica, ele retratou um diálogo onde dois burros puxadores de bonde, mostraram a sua perplexidade em face da vinda do elétrico.

Um deles estava exultante, pois seria aposentado com garantias de sobrevivência. No entanto, o outro contestou, lembrando que apenas mudariam de senhor, pois seriam vendidos e passariam a puxar carroças, sujeitos ao mesmo tratamento à base de chicotadas.

Ainda Machado, apesar de reconhecer no Bonde elétrico um avanço para a modernidade, deplorou a falta de modos dos usuários e, por tal razão, lançou regras de comportamento para os passageiros, que foram expostas em uma crônica de 1883.

Uma música de Cornélio Pires e Mariano da Silveira, cantada por Inezita Barroso, com muita graça, retratou o espanto e o sofri mento de um homem da roça que em São Paulo entrou em um bonde fechado pela primeira vez.

A reclamação veio logo na primeira estrofe, onde o caipira conta que ao entrar abriu uma portinhola, levou um tranco, quebrou a viola e ainda teve que por dinheiro na "caixinha da esmola".

Em seguida, ainda dentro da "gaiola", entrou uma moça rebolando, que no seu colo foi sentando, e ai ele confessou "fiquei gostando".

Logo após entrou um padre bem barrigudo, que após dar um tranco graúdo, deu um "abraço num bigodudo", que era protestante "dos carrancudos".

Por fim, disse que iria embora para a sua terra, pois "esta porqueira inda acaba em guerra".

Drumond, por sua vez, reclamou do número de pernas que encontrava nos bondes. Disse que o bonde passa cheio de pernas, pernas brancas, pretas, amarelas. "Por que tantas pernas meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada".

Os saudosistas podem ter esperança, pois se anuncia a volta do bonde em certos trechos da cidade. Será ? Fala-se também de um meio de transportes que seria o sucessor dos bondes, o Veículo Leve sobre Trilhos, mas sem o estribo. Vamos aguardar.