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En tragedie

Confira o conto enviado por Adauto Suannes

Da Redação

sexta-feira, 29 de julho de 2005

Atualizado em 28 de julho de 2005 16:05


En tragedie


O migalheiro Adauto Suannes gentilmente enviou à redação de Migalhas o conto "En tragedie", que está no livro "Tales from Norway". Confira abaixo.

 

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En tragedie

 

"Sommes tous des assassins"

(André Cayatte)

 

"E, a final de contas, o que é a vida? Quem garante que amanhã cedo nós estaremos ainda vivas? E que é a morte senão o capítulo final da vida? Eu não vejo a vida como algo separado da morte. Como o nascimento pertence à vida, assim também a morte pertence à vida, tal como o fim daquela rua ainda é rua. Depois da morte há o vazio que não sabemos o que seja. Mas morte é uma coisa, vazio é outra."

 

Mas quem se dispõe a filosofar dessa maneira a desoras, numa rua de Bergen, numa noite de inverno? São três garotas loiras que, havendo visto a última sessão de cinema, se encaminham para casa, comentando o filme e seu inesperado fim. Era a história de três amigos que cresceram juntos no mesmo bairro. Um tornou-se um deprimidíssimo professor, outro se tornou policial e o terceiro é agora o chefe local da máfia. Ou quase isso. Há um crime, nós sabemos perfeitamente quem o cometeu, mas a condenação não aparece.

 

"Essa história de arrependimento, crime não compensa, consciência pesada, isso tudo é sermão de padre que, um belo dia, descobrimos que andou fazendo o que não devia com garotinhos e garotinhas." Não há crime insolúvel, diz uma das outras moças, o que há é falha humana dos policiais. "Isso quando não é o policial o criminoso", retruca a primeira. "Homens acima de qualquer suspeita", como dizia outro filme, este com aquele artista italiano que era um engajado político. Como é mesmo o nome dele?

 

E as três se põem a rir da seriedade da conversa, em uma bela noite de um domingo de inverno.

 

Agora as três chegaram a um ponto onde começa um bosque. Durante o dia elas sempre cruzam o bosque para encurtar o caminho, mesmo porque o risco de serem molestadas é quase nulo na Noruega, mesmo havendo aqui tantos imigrantes. Talvez influenciadas pelo filme, duas das moças decidem que preferem o caminho mais longo, na rua iluminada. Embora seja inverno, o branco da neve produz um rebatimento de luz que parece iluminar as casas e os carros, amenizando a noite norueguesa.

 

A terceira não concorda com o percurso, fruto do medo infantil das amigas. "A maioria vence", propõe uma às outras. "E quem disse que eu acredito na democracia? Democracia é respeitar o direito de um povo de ter suas convicções religiosas, mesmo quando isso signifique marginalizar as mulheres. Elas que conquistem seu espaço, como nós conquistamos aqui. O simples fato de vir uma potência estrangeira em socorro delas já indica que elas não estão preparadas para a liberdade. Mas matar crianças, mulheres e homens civis, indiscriminadamente, sem o menor critério, em nome do cristianismo ou da democracia? Vocês concordam com isso?"

 

Positivamente, a conversa estava ficando desagradável. Ainda se estivessem na aula de sociologia, onde a dissidente gostava de exibir-se, vá lá. Mas num domingo à noite! "Está bem. Cada uma escolhe seu caminho, dando expansão a seu livre arbítrio. No hay caminos; se hace el camino al caminhar!", disse uma das outras, provocando a colega. "Quem chegar por último à Colônia Penal faz o jantar", rematou a terceira.

 

"Colônia Penal" era o apelido que haviam posto na pensão de estudantes onde moravam e cuja proprietária, dona Helga, as tratava com o mesmo rigor que trataria as filhas, se as tivesse. Talvez até a proprietária soubesse do apelido, que, certamente, não a desgostaria, pelo contrário. Sueca e crítica da condescendência norueguesa, deixava claro que em sua pensão a rainha era ela. Princess Helga, como a chamavam as garotas.

 

"Feito". E se despediram. E lá foi a dissidente pelo bosque, enquanto as demais subiam a avenida, conversando animadamente. Aquela discussão tola não lhes parecia adequada ao momento. E falaram de amenidades, como a ida à Domus Atletica no dia seguinte, para a aula de canoagem na piscina aquecida, o que sempre dava ensejo a um mergulho depois, até chegarem as duas à "Colônia", quando verificaram que a amiga ainda não havia chegado. "Temos quem nos faça o jantar!", comentou uma delas, ao mesmo tempo que punha os pratos, os talheres e os copos na mesinha do apartamento.

 

Enquanto aguardavam a chegada da amiga, como de hábito ligaram o aparelho de televisão. Entre uma emocionante partida de sumô e uma aula sobre vida animal, onde aprenderam que estão sendo desenvolvidos testes mais modernos para avaliar a inteligência de nossos irmãos darwinianos, elas preferiram um programa de auditório, onde um senhor apresenta a dois grupos de artistas uma palavra, constante da letra de uma música. O grupo que cantar primeiro a tal música ganha um ponto, vencendo, claro, quem acumula mais pontos no painel. Tudo muito divertido, não fosse o caso de um certo Francis Holland, grande compositor e famoso cantor local que quase desmoralizou a brincadeira. Assim que aparecia a palavra, levantava a mão, subia até o palco e cantava uma música contendo a tal palavra. E seu grupo ganhava sempre. Até o dia em que descobriram que muitas das músicas cantadas por ele não existiam. Ele, acostumado a trabalhar sob pressão, como quando era contratado para musicar algum filme, estimulado pela disputa, as compunha na hora! Foi proibido de voltar a participar do programa, pois sua conduta foi considerada aética. O que muito o divertiu, claro.

 

O programa findou, ganhou quem venceu, como disse uma das moças, e a companheira não chegou. 'Deve ter encontrado companhia melhor do que nós", justificou uma delas. "Com esse frio, um aquecedor de carne e osso não seria nada mal!" E foram deitar-se, pois a outra tinha a chave da prota.

 

No dia seguinte, a terceira cama do quarto permanecia arrumada. Elas procuraram não dar maior importância ao fato, mas quando, chegadas as 10 horas, foram informadas pelo banco que sua amiga não havia ido trabalhar naquele dia, elas acharam que era hora de alguma providência.

 

Assim, aproveitando a saída da hora do almoço, em lugar de abrirem a bolsa e dali retirarem o matpakke, como faziam diariamente, foram até o local onde se separaram da amiga na noite anterior e buscaram reproduzir o caminho que a outra teria feito, sem saberem ao certo o que procuravam. Caminharam lentamente, como se o acaso fosse-lhes dar alguma pista, até chegarem a um grupo de arbustos, ao pé dos quais havia um par de sapatos femininos, que a pouca neve da noite anterior não havia coberto de todo. Eram sapatos comuns para neve, como tantos outros, mas elas os recolheram e seguiram direto para a politistasjon, onde foram atendidas pelo burocrata de plantão. Ouviu-as silenciosamente e fez suas ponderações.

 

"Vocês podem me assegurar, sem a menor dúvida, que estes sapatos pertenciam à sua amiga?". É claro que elas não poderiam. Mas, que faria um par de sapatos usados largados naquele local há pouco tempo? Se lá estivessem há mais tempo, estariam cobertos pela neve.

 

"Desculpem, mas o policial aqui sou eu. Se vocês não têm elementos mínimos de convicção a respeito da pretensa pista que me trouxeram, eu nada posso fazer. Sua amiga deve ter passado a noite em algum lugar confortável, se é que me entendem. A festa foi muito boa e ela se utilizou do direito que vocês têm de faltar uma vez por mês, alegando resfriado ou estafa. Não lhes parece?"

 

Elas não tinham melhores argumentos a oferecer, agradeceram a atenção e voltaram para o trabalho, aguardando que até à noite tudo se esclarecesse.

 

Ocorre que a amiga não veio para casa nem naquela noite, nem nas noites seguintes, o que as levou de volta à politistasjon, onde o mesmo burocrata as esperava. Abriu uma ficha no computador e ali colocou os dados sobre o incidente, para não ser considerado um prevaricador. Sabia que aquilo tudo era um absurdo, mas as moças não ficariam calmas sem alguma providência.

 

"Nome completo da moça" começou ele, com os dedos pousados junto do teclado do computador, tamborilando, a mostrar pouca vontade em atendê-las, mesmo porque o campeonato de esqui estava sendo apresentado no aparelho de televisão da sala ao lado. Elas a conheciam por Terê, o que faz supor que se chamasse Tereza. Mas o sobrenome elas desconheciam. Talvez a dona da pensão prestasse melhores informações, ponderaram. Sabiam que moça não era norueguesa, era da Dinamarca ou da Finlândia. Nem isso ao certo sabiam informar à autoridade policial.

 

Ele dedilhou alguma coisa e indagou, profissionalmente, se a moça teria algum motivo para voltar às pressas para seu país. Os olhares trocados por elas não passou despercebido ao experiente policial, que lhes cobrou resposta. "Sei que na agência bancária onde ela trabalhava houve um desfalque, que está sendo investigado. Mas não creio que tenha havido alguma conclusão a respeito da autoria", disse uma delas. "Ao menos era o que elas nos dizia. Claro que o gerente do banco pode esclarecer isso", aditou.

 

"Obrigado pela lição, senhorita, que levarei na devida conta", disse com ironia. "O que lhes posso dizer é que há crimes e crimes", continuou ele, deixando de lado o computador. "Permitam-me dizer-lhes que quando comecei a trabalhar nisso vocês e sua amiga ainda não haviam nascido. Já vi muita coisa e creio que posso dizer-lhes o que aconteceu".

 

Girou a cadeira, voltou-se de vez para elas, fez uma expressão paternal e continuou. "Minha hipótese é bastante simples. A amiga de vocês tem culpa no cartório, como nós dizemos na polícia. Simulou uma disputa com vocês, para poder construir um álibi. Deixou um par de calçados usados para ser encontrado por vocês ou por quem fosse à procura dela. No dia seguinte tomou um vapor para Hamburgo ou para a Dinamarca, sem precisar dar o nome, como é regra, e está lá rindo até agora pela preocupação que lhes estão dando. E certamente não voltará mais para a Noruega, pois a Escandinávia é muito grande".

 

As duas amigas se entreolharam, mas nada disseram. Dizer o que? É claro que ele poderia ter razão. Mesmo que a sindicância no banco tivesse tido resultado negativo, o susto produzido na moça poderia, de fato, levá-la a procurar outro país onde ficar, mesmo porque ela vivia reclamando do método de ensino da faculdade local, muito light para seu gosto, como sempre dizia.

 

"Não gostaram da explicação?", indagou o policial. Então tomem a alternativa b: ela, de fato, naquela noite, encontrou dois rapazes no bosque. Eles estavam ali para desfrutar as delícias de um cigarro de marijuana, na mais favorável das hipóteses. Ao se encontrarem, os três se assustaram, como é natural. Passado o primeiro momento, todos se apresentaram e os rapazes a convidaram a integrar a roda, fumando a droga também. Para ela, naturalmente, aquilo não seria a primeira experiência com a cannabis. Vocês sabem muito bem como é a juventude hoje, principalmente nas faculdades locais. Ou estou fantasiando? "Elas continuaram em silêncio, como que aprovando a premissa do raciocínio do policial. Não lhes constava que ela se utilizasse de alguma droga, mas não poderiam garantir que não o fizesse às escondidas, mesmo porque ela sabia que as duas colegas rejeitavam esse tipo de diversão.

 

Esperando alguma ressalva que não veio, ele continuou. "Durante a sessão, todos riram muito sem qualquer motivo, como é próprio dessas ocasiões. Um deles tentou beijá-la, mas ela não só recusou como lhe deu um tapa no rosto. Que ele revidou com um soco no rosto da moça. Um soco mal dosado, por conta dos efeitos da droga. Ela bateu com a cabeça em uma árvore e caiu ao solo, desmaiada. Um deles reparou que a neve estava mudando de cor. Levantou a cabeça da moça e viu um ferimento na base do crânio, e procurou estancar o sangue com um punhado de neve. Ela não só não recobrou os sentidos como foi ficando gelada. Nada mais havia a fazer ali."

 

As moças ouviam a narrativa, como quem assiste a um filme. E se o homem tivesse razão?

 

"Santa fatalidade, Batman!", teatralizou o policial. "Ela está morta, disse um dos rapazes. O primeiro impulso foi saírem correndo dali. Mas, e se alguém os tivesse visto entrar no bosque? Ou presenciado o que ali faziam? Resolveram levar o corpo dali, depois de apagarem as manchas vermelhas cobrindo-as com neve. A geada noturna se encarregaria de engrossar a cobertura, sepultando qualquer vestígio. Foram com ela até o cais, na Aker Brygge, que, àquela hora, não costuma ter muitos freqüentadores. Para não despertarem suspeita, cada um de um lado, foram apoiando a moça, como se ela estivesse bêbada, o que não é incomum por aqui, sabem muito bem vocês. O capuz do agasalho lhe cobria quase totalmente a cabeça, o que se explica pelo frio do inverno. Lá chegando, escolheram um lugar ermo, onde não foi difícil encontrar algo bem pesado, que amarraram a uma corda, que algum pescador, daqueles que ali costumam vender peixe, ali deixara, e ataram aos pés da moça. Procuraram um local onde o gelo era fácil de quebrar, enfiaram o cadáver na água e se foram, sabendo que até a manhã seguinte a cobertura estaria refeita. Posso até imaginar que no dia seguinte seguiram para a Estônia, a Rússia ou Hamurgo, onde passariam as festas do fim de ano. Depois delas eles voltarão a Bergen, onde ninguém mais se lembrará do caso".

 

E o par de calçados? O senhor acha que eles iriam levá-la sem sapatos? Isso despertaria suspeitas.

 

"E quem nos garante que aquele par de sapatos era de fato dela?" Lembrem-se de que não há crime insolúvel. O que há é falha na investigação policial, concluiu ele, enquanto as acompanhava até a porta da rua. "E tenham um bom sono!"
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