MIGALHAS QUENTES

  1. Home >
  2. Quentes >
  3. Migalhas Quentes >
  4. Constitucionalista rejeita proposta de nova constituinte

Constitucionalista rejeita proposta de nova constituinte

Da Redação

segunda-feira, 15 de agosto de 2005

Atualizado às 08:49

Inconstitucionalidade

 

Uma das maiores autoridades em direito constitucional do Brasil, Paulo Bonavides, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e Presidente emérito do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, declarou hoje (15.8) em entrevista a Folha de S.Paulo, que a proposta de uma nova constituinte é um "ato de terrorismo" contra a Constituição Federal.  Para o constitucionalista, a proposta não resolve o problema e coloca em risco as conquistas da cidadania expressas na Carta de 1988. Confira abaixo a entrevista:

___________________

 

Folha - Como o sr. vê as propostas de convocação de uma nova Constituinte como remédio para a crise?

 

Paulo Bonavides - Essas propostas são completamente inconstitucionais. Elas atentam contra o ordenamento jurídico estabelecido com a Carta de 1988. A nossa Constituição Federal prevê uma possibilidade de mudança, a qual passa pela regulamentação mais ampla da iniciativa popular, do plebiscito e do referendo.

 

Fugir disso e convocar uma Constituinte para reelaborar a Constituição poderá ser um passo em falso, um retrocesso, uma queda na ingovernabilidade.

 

Folha - Por que as propostas são inconstitucionais?

 

Bonavides - A convocação de uma Assembléia Constituinte não pode ser feita dentro dos quadros de uma Constituição. Quem a convoca -no caso, o Congresso- é um poder constituinte de segundo grau, que se move e atua nos limites jurídicos estabelecidos pela própria Constituição.

 

Um poder de segundo grau, até por razões lógicas, não pode substituir-se ao poder de primeiro grau, que o criou.

 

Substituir o poder constituinte originário por um poder constituinte de segundo grau contraria todos os ensinamentos constitucionais. A Constituinte não pode ser encarada de outra forma senão como o ato de rasgar a atual Constituição.

 

Folha - Mesmo que essa Constituinte seja exclusiva ou tenha poderes limitados?

 

Bonavides - Não importa de que jeito isso seja feito. Uma nova Constituinte, com maiores ou menores poderes, deve ser vista como um golpe. Tanto faz ela ser exclusiva ou dotada de poderes limitados. A inconstitucionalidade será a mesma: manifesta, visível e insanável.

 

É preciso insistir na necessidade de resolver a crise que o país atravessa pelo emprego de uma solução constitucional, e não por um expediente de alto risco para as instituições, como seria a convocação de uma Constituinte. Esse ato equivale a um golpe de Estado, lesivo e fatal à Lei Maior.

 

Folha - O sr. considera golpismo?

 

Bonavides - É um golpismo terrível. Conhecemos o golpe de Estado clássico, do qual o exemplo mais recente em nossa história foi a ditadura militar. Em geral, esse tipo de golpe tem amplo apoio da sociedade, mas, ainda assim, é feito pela força das armas e mantido com sustentação militar.

 

Outro tipo de golpe é o institucional, cujo exemplo foi o governo Fernando Henrique, que, silenciosamente, minou as instituições sem que o povo percebesse.

 

Essa Constituinte que agora se propõe configuraria um terceiro tipo: o golpe congressual. Como constitucionalista, não posso admitir que isso ocorra. O respeito à Constituição é fundamental para o bom caminhar de uma nação e para consolidar as instituições republicanas e federativas do país.

 

Folha - Propostas como encurtar o mandato de Lula e antecipar as eleições também são golpistas?

 

Bonavides - São. A Constituição prevê apenas duas formas pelas quais o presidente pode deixar o cargo antes do tempo previsto: por renúncia ou impeachment.

 

Folha - É o caso de uma delas?

 

Bonavides - Por enquanto, não. O impeachment nunca é bom para o país. Só deve ser usado se for, de fato, necessário. Mas, pelo volume e gravidade dos fatos mais recentes revelados nas investigações das CPIs, o Congresso está marchando célere para a abertura de um processo de impeachment.

 

Folha - A OAB discute a possibilidade da convocação de uma nova Constituinte. Como o sr. vê isso?

 

Bonavides - Espero que os conselheiros federais do órgão não aceitem essa proposta. No dia em que a OAB levantar uma bandeira da inconstitucionalidade como essa, ficarão perdidas todas as décadas de dignidade e toda a tradição de lutas em nome do Estado democrático de Direito.

 

Folha - E quanto à proposta aprovada na CCJ, que cria a Assembléia de Revisão Constitucional e reduz o quórum para aprovação de emendas constitucionais?

 

Bonavides - O projeto de emenda aprovado na CCJ é um ato de terrorismo contra a Carta Magna. Terrorismo constitucional.

 

Trata-se de outra singularidade, maquinada por congressistas cuja cegueira não lhes deixa perceber que, ao convocarem uma Constituinte de bolso, nos termos em que pretendem fazê-lo, estão perpetrando duas monstruosas inconstitucionalidades: a primeira está na convocação mesma de tal assembléia; a segunda, no aniquilamento do quórum constitucional do artigo 60.

 

Nesse quórum está o coração da Carta Magna, que deixará de bater, fulminado no instante em que o alterarem. É o quórum, como garantia constitucional, talvez a maior das cláusulas pétreas [que não podem ser alteradas] tácitas. Alterá-lo é assassinar a Constituição. É imergir o país no caos, na ingovernabilidade e na catástrofe das instituições.

 

Folha - Mas uma nova Constituição não poderia sanar problemas atuais? Ou seja, devemos rejeitar uma proposta que poderia ser boa para o país?

 

Bonavides - Em primeiro lugar, acho que a situação ainda não é tal que seja preciso falar em mudanças tão profundas. Precisamos perder essa mania de achar que qualquer crise requer uma mudança constitucional.

 

Além disso, uma nova Constituição, em vez de resolver o problema da crise em marcha, poderá até agravá-lo.

 

Em segundo lugar, sou parlamentarista convicto, mas nem por isso vou atuar para que essa forma de governo seja instaurada. O povo já decidiu, por plebiscito, que o nosso sistema é o presidencialista. Exauriu, portanto, a matéria. A decisão do povo deve ser respeitada como soberana.

 

Folha - O sr. receia que uma mudança possa pôr a perder os avanços da Constituição?

 

Bonavides - Muito. Esse é um risco enorme. Não podemos brincar com isso. Essa mudança só poderia interessar às elites dominantes. Isso porque a Carta de 88 é a Constituição Cidadã, a Constituição da normatividade dos princípios, a mais idônea de todas as épocas republicanas, a mais rica de potencial democrático.

 

Atacar a Constituição como forma de resolver a crise transformaria o Brasil em um país desconstitucionalizado. Não podemos achar que é possível resolver crises institucionais por meio do desrespeito à instituição mais importante do país. Se a Constituição pode ser refeita a cada instante, então não há Estado de Direito.

 

Folha - Como resolver problemas institucionais sem causar com isso uma ruptura?

 

Bonavides - A mudança possível é no sentido de transformar a democracia direta em democracia mais participativa, dando mais poder ao povo, mais presença deste na legitimação das tarefas de governo. Isso, sobretudo, com referência àqueles atos de natureza legislativa, como são as medidas provisórias. Por via destas é que ocorrem os abusos mais vexatórios à ordem constitucional por parte do Executivo.

 

O povo assumirá o exercício da soberania se for promulgada, por exemplo, uma emenda constitucional que faça doravante todos os atos do poder referentes a problemas institucionais ficarem sujeitos ao referendo. Ficaremos, assim, mais perto de acabar com o pesadelo desta crise sem paralelo e sem remédio até agora porque é também uma crise da ética.

 

Folha - Essa é uma saída constitucional?

 

Bonavides - Sim. Se o Congresso, emendando a Constituição, der ao povo poderes ativos de soberania militante e diuturna, a classe dirigente, sem destruir o ordenamento, poupará ao país mais sofrimento, mais incerteza, mais instabilidade na vida pública e na conservação do regime.

 

A desagregação moral dos quadros representativos nos conduz à necessidade de estabelecer, pelas vias constitucionais, a democracia participativa. Isso seria o fim do presidencialismo em sua substância, sem removê-lo na forma. A democracia participativa tem capacidade para resolver no Brasil a crise das instituições e da legitimidade. Resta apenas adotá-la.

_________________

Fonte: Folha S.Paulo (15.8.2005)