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Julgamento no STF sobre pesquisas com células-tronco embrionárias analisado pelo jornalista Ricardo Maffeis

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Da Redação

sexta-feira, 7 de março de 2008

Atualizado às 09:19


Sob outra ótica

"Mas, ao contrário dos outros tribunais, assistir a uma sessão no Pleno do STF é uma experiência única, pois a platéia fica muito próxima das partes e mesmo dos ministros, sendo possível visualizar até mesmo seus semblantes". Confira abaixo a visão do jornalista e bacharel em Direito Ricardo Maffeis* do julgamento no STF das pesquisas com células-tronco embrionárias.

 

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  • Parte 1: Junto com os estudantes

(foto: José Cruz, da Agência Brasil)

Não é fácil assistir a uma sessão de repercussão nacional no Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). O auditório do prédio, construído há décadas, possui apenas 250 lugares que, embora sejam mais que suficientes para as sessões normais, não comportam todos os interessados em acompanhar julgamentos históricos, como o que se iniciou ontem.

É certo que a atenciosa e eficiente equipe da assessoria de imprensa do STF ofereceu a este blog um lugar na sala de imprensa, localizada no 1º andar, com telão e computadores de uso livre. Mas, ao contrário dos outros tribunais, assistir a uma sessão no Pleno do STF é uma experiência única, pois a platéia fica muito próxima das partes e mesmo dos ministros, sendo possível visualizar até mesmo seus semblantes.

Assim, a saída foi chegar à Praça dos Três Poderes às 12h15, duas horas antes do início da sessão. Quando cheguei, aproximadamente uns 30 estudantes de Direito das faculdades de Brasília já estavam lá, orientados por seus professores da importância do julgamento. A fila cresceu num ritmo constante e, às 13h30, horário de abertura dos portões, já havia gente suficiente para lotar o salão. Advogados, estudantes, muitos jornalistas e ativistas favoráveis às pesquisas, que distribuíam gérberas laranjas e amarelas, símbolo da campanha (ao lado, imagem da campanha do Correio Braziliense).

Como visto na foto que abre este primeira parte (marcada com uma seta), a estratégia - embora cansativa - deu certo. Consegui lugar na segunda fileira, de frente para o Plenário, logo atrás das cadeiras reservadas para os advogados das partes e representantes da CNBB e de ONGs interessadas no julgamento, chamadas tecnicamente de amicus curiae (amigos da Corte).

  • Parte 2: Expectativas e primeira surpresa

Já dentro do salão, algumas observações interessantes. Depois da divulgação do famoso chat entre ministros da Corte no julgamento da denúncia do mensalão, os fotógrafos foram impedidos de circular pelo Plenário. Agora, ficam todos num tablado atrás de quatro fileiras de cadeiras, o suficiente para boas imagens dos ministros, mas não para bisbilhotar. Os cinegrafistas então, nem isso. Somente a TV Justiça teve autorização para filmar a sessão, liberando as imagens às demais emissoras.

Às 14h todas as partes já se encontravam em seus devidos lugares na primeira fileira, com exceção do advogado-geral da União, ministro José Antonio Dias Toffoli, que só adentrou no Plenário às 14h15, juntamente com os ministros da Casa. Também na primeira fileira, o ex-procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, autor da ação. Logo de início, um aviso claro e objetivo da presidente Ellen Gracie: a Suprema Corte não admitiria manifestações da platéia em nenhum sentido. Foi então passada a palavra ao relator, ministro Carlos Ayres Britto que, em aproximadamente 20 minutos traçou o histórico da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.510, que pretende a revogação do art. 5º da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005).

Enquanto o atual procurador-geral Antonio Fernando de Souza defendia a procedência da ação, explicando que discussões sobre o exato momento do início da vida acompanham toda história da humanidade e sustentando que a proteção constitucional à vida não se limita à interpretação restritiva do direito privado (início com o nascimento com vida), a primeira surpresa da tarde: discretamente, o ministro Joaquim Barbosa se ausentou do Plenário e não mais retornou. De acordo com alguns colegas da imprensa, ele tem sofrido de dores na coluna, o que lhe dificulta permanecer na mesma posição por longo período. Como o ministro esteve presente durante a leitura do relatório, registre-se, poderá votar neste processo.

Antonio Fernando de Souza ainda lembrou das controvérsias jurídicas e éticas em diversos países e rechaçou - sem citar nomes - a posição externada pelo ministro da Saúde José Gomes Temporão, de que a proibição das pesquisas com células-tronco embrionárias colocaria o país numa era de obscurantismo. Defendeu, por fim, a utilização de células-tronco adultas e das localizadas no líquido amniótico e na placenta.

  • Parte 3: As sustentações orais

Além do procurador-geral da República, se manifestaram como partes o advogado-geral da União e Leonardo Mundim, advogado do Congresso Nacional. Ambos defenderam a Lei de Biossegurança, aprovada por 96% dos senadores e 85% dos deputados federais e sancionada pelo Presidente Lula. As sustentações que mais chamaram a atenção dos presentes, contudo, foram as dos amicus curiae. Espectadores e ministros ouviram com especial atenção as argumentações dos grandes causídicos Ives Gandra Martins (pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB), Oscar Vilhena Viera (pela Conectas) e Luís Roberto Barroso (pela Movitae e Anis).

Para Ives Gandra, a posição defendida pela CNBB não é só da Igreja, mas sim da sociedade, afastando qualquer disputa entre ciência e religião. "A Academia de Ciências do Vaticano tem 29 prêmios Nobel", destacou e se posicionou pelas pesquisas somente com células-tronco adultas, que teriam pluripotencialidades semelhantes às embrionárias que, em dez anos de pesquisas, não apresentaram "nenhum resultado positivo", enquanto já existiriam 73 terapias estudadas com as células adultas, "até mesmo cura de câncer". Sobre o que fazer com os embriões congelados, Gandra indicou a adoção de tais embriões e criticou uma lei que pode ter sido criada só para solucionar o problema de clínicas de fertilização.

Toffoli, chefe da AGU, colocou que são dois valores constitucionais em jogo, sustentando que, embora não se possa dizer o momento certo de início da vida, o Código Civil define pessoa a partir do nascimento com vida e o Código Penal também dá tratamento muito diferenciado, ao prever pena mínima de seis anos para o homicídio simples e de três anos para o aborto provocado sem consentimento: "por que a diferença, se são duas vidas? A lei não trata o feto como pessoa humana, o que falar do embrião, que sequer feto é". Argumentou, por fim, que as pessoas com dinheiro irão se tratar no exterior, enquanto os outros se socorrerão da Justiça, pedindo que o Estado pague para elas, fora do país, o tratamento que o Judiciário proibiu aqui.

Leonardo Mundim voltou sua atenção para o futuro, que deve ser escrito sobre três prismas: responsabilidade, estímulo às pesquisas científicas e esperança. Atacou também o argumento da falta de resultados das pesquisas: "não ter resultados ainda não é motivo para proibição (das pesquisas com embriões), mas sim de incentivo à comunidade científica".

Foi durante a sustentação de Oscar Vilhena Vieira que as alguns críticos das pesquisas começaram a se mostrar mais tensos. "A questão não é definir o começo da vida - a Corte Suprema dos EUA desistiu de dizer quando ela começa - mas sim de saber se o embrião pode ser comparado a uma pessoa". E comparou: "a Constituição Federal não fez nenhuma referência à vida antes do nascimento e não há afronta grave à Constituição, porque a lei aqui questionada busca a otimização da vida".

Luís Roberto Barroso era o mais esperado da tarde. Iniciou defendendo a sociedade pluralista e a diversidade de pensamentos: "Deus nos livre do pensamento e da moral única" e justificou: "a lei é equilibrada e razoável, as pesquisas só serão feitas se os casais autorizarem, quem não quiser, não será obrigado". A polêmica foi maior ao se posicionar por uma definição filosófica e não científica do momento de início da vida, não sem destacar que tal questionamento seria irrelevante para esta discussão, "porque o direito brasileiro só admite o uso de embriões inviáveis ou congelados há mais de três anos, que não representam vida em potencial".

Sobre os embriões congelados, Barroso sustentou que mantê-los perenemente congelados até o descarte ou jogá-los fora em vez de utilizá-los para pesquisas não seria ético: "se a ação for julgada procedente, as pesquisas serão cessadas, mas os embriões já existentes ficarão no mesmo lugar". E finalizou: "todas as entidades científicas relevantes apóiam as pesquisas, a imprensa idem, inclusive em editoriais, e 75% da opinião pública é favorável. O Supremo não é um tribunal para si mesmo, ele faz interlocuções com a sociedade. Se a dúvida quanto à constitucionalidade for razoável, a decisão tem que ser favorável à lei".

  • Parte 4: O voto do relator

(Ministro Carlos Ayres Britto, foto de José Cruz, Agência Brasil)

Após merecido intervalo, a sessão foi reiniciada, faltando cinco minutos para as 17h, com a leitura do voto do relator. O ministro Carlos Ayres Britto levou quase duas horas na leitura, alternando momentos mais cansativos de citações de cientistas com tiradas bem colocadas, que levaram à platéia a discretos risos. Iniciou lembrando os 5 milhões de brasileiros portadores de alguma doença degenerativa e os 10 a 15 milhões de diabéticos e afirmou que só podem ser consideradas pessoas as que sobrevivem ao parto, nos termos do art. 2º do Código Civil: "a vida humana vai do nascimento com vida até a morte".

Para Britto, "a Constituição Federal não diz quando começa a vida e não dispõe sobre o 'antes'. Ela só fala do indivíduo, pessoa, gente, o ser humano já nascido, os residentes no país e não residentes em útero materno ou em tubos de ensaio. A Constituição, sobre o início da vida, é de um silencia de morte". Distinguiu as figuras do nascituro e do embrião: "nascituro é quem está a caminho do nascimento, o que está do lado de fora do ventre materno não é nascituro. Embrião, feto e pessoa são inconfundíveis".

Enquanto Fonteles e Ives Gandra acompanhavam com indisfarçável incômodo, prosseguia o relator: "o zigoto, sozinho, não se transforma em pessoa, não chega à fase de nidação. O congelamento ofende a dignidade do embrião. Aliás, a lei não veicula autorização para retirar do corpo da mulher um embrião, mas sim dos que estão fora do corpo. São embriões que não saíram e nem vão ser introduzidos no corpo da mulher".

Lembrou a frase do ministro Celso de Mello, de que a causa em julgamento é a mais importante da história do Supremo e questionou o destino dos embriões: "ficarão em prisão perpétua? Ou serão jogados no lixo?". Concluiu seu voto julgando totalmente improcedente a ação: "A Lei de Biossegurança protege o embrião. O que a Constituição autorizou, a lei perfilhou e o que proibiu, idem. Não há cérebro, nem mesmo em formação" e reforçou a idéia inicial: "a vida humana está entre o nascimento com vida e a morte cerebral".

Mesmo sem adiantar seu voto, o decano do Supremo, ministro Celso de Mello pediu a palavra para fazer um registro e definir como "antológico" o voto do relator, que fará parte dos anais da Suprema Corte e será sempre lembrado, "até pelas gerações futuras", por representar "a aurora de um novo tempo de esperança".

Confira a íntegra do voto do ministro Carlos Ayres Britto (arquivo em PDF).

  • Parte final: O pedido de vista e os bastidores

O boletim Direito na Mídia havia previsto, na última edição, que ontem seria apenas o início do julgamento, por serem freqüentes os pedidos de vista em temas tão sensíveis. Alguns jornais já divulgavam, na quarta-feira pela manhã, a opinião do ministro Marco Aurélio, para quem era provável que seu colega, o ministro Carlos Alberto Menezes Direito, pedisse vista . A previsão se concretizou. Justificando que "o dever da Suprema Corte de um país, quando tem de julgar temas dessa natureza, é fazer uma reflexão profunda, com tempo, com análise dos autos, para que possam ser sopesados todos os argumentos que foram apresentados, incluída a audiência pública que foi realizada", o ministro Menezes Direito (foto de José Cruz, Agência Brasil) pediu vista dos autos.

A presidente, ministra Ellen Gracie, adiantou seu voto, destacando que a ADI foi interposta há três anos e que, mesmo não havendo medida cautelar deferida, as pesquisas científicas, desde então, ou foram paralisadas ou sofreram grande desestímulo. Lembrou ainda da existência de nada menos que 565 processos na fila para julgamento do Pleno e acompanhou o voto do relator.

Para a presidente, o Supremo "não é uma academia de ciências" e prosseguiu: "não há vício de inconstitucionalidade na lei, nem se lhe pode opor a garantia da dignidade da pessoa humana, nem a garantia da inviolabilidade da vida, pois o pré-embrião não acolhido no útero não se classifica como pessoa".

Confira a íntegra do voto da ministra Ellen Gracie (arquivo em PDF).

A antecipação de voto da ministra Ellen levou o ministro Marco Aurélio a questionar se essa postura seria um indicativo de que a imprensa estaria correta e a ministra iria mesmo se aposentar ao término de seu mandato na Presidência do Supremo (abril de 2008). A presidente negou tal intuito, mas o que se apurou é que ela deve realmente sair do STF quando deixar a Presidência da Corte. Os jornais especulam que o destino será o Tribunal Internacional de Justiça, a Corte de Haia, na Holanda, mas Direito na Mídia ouviu ontem , de algumas fontes, que a ministra poderá ocupar um cargo diplomático no Velho Continente. A confirmar...

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* Ricardo Maffeis é editor do boletim Direito na Mídia. Bacharel em Direito pela USP em 1996 e jornalista desde 2000. Desde julho de 2004, é servidor público em Brasília. Para receber o boletim Direito na Mídia em seu e-mail, às terças-feiras, basta escrever para [email protected]. Para acessar o blog, clique aqui.

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