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Deus não nos deixa órfãos

Marcelo Barros

Cada ser do universo, assim como cada evento da história, mesmo os mais simples acontecimentos cotidianos são grávidos de uma presença invisível e luminosa. O amor divino os impregna.

sexta-feira, 20 de maio de 2005

Atualizado em 19 de maio de 2005 10:06

Deus não nos deixa órfãos


Marcelo Barros*

Cada ser do universo, assim como cada evento da história, mesmo os mais simples acontecimentos cotidianos são grávidos de uma presença invisível e luminosa. O amor divino os impregna. Muita gente valoriza os elementos da natureza e os fatos da história sem, contudo, vislumbrar neles esta densidade espiritual. Assim como as ondas, que transmitem o rádio e a televisão, precisam de antenas para ser captadas, a energia do amor divino se comunica através de pessoas que são como expressões fortes - a tradição cristã chama de "sacramento" - desta graça. Há pessoas especiais de tal forma portadoras de uma luz que penetram no nosso espírito e desenham no ar mapas que orientam nossas vidas atordoadas. É essencial abrirmos o coração para acolher todo ser humano, mas especialmente, reconhecer aqueles que, como diz o Evangelho: "vem em nome do Senhor".

Esta missão não priva o enviado divino da fragilidade própria a todo ser humano. Mesmo para quem se dedica a prestar atenção às pessoas especialmente iluminadas, às vezes, a vida é tão dura e a história caminha por entreveros tão inexplicáveis, que se pode ter a sensação de que Deus está ausente, o Espírito Santo cochila e nós ficamos na orfandade. Na Bíblia, salmos e lamentos do povo se resumem no grito: "Por que te escondes no tempo da angústia? (Salmo 10, 1)". "Por que ocultas o teu rosto e te esqueces de nós? (Cf. Sl 44, 24; 88, 14). A parábola do justo Jó discute exatamente esta sensação de que Deus nos deixa órfãos. Na América, a experiência do seqüestro e escravidão de populações inteiras da África assim como a perseguição e extermínio de povos indígenas foram motivos justos de protesto contra a impressão de que Deus não cumpre suas promessas e não salva os seus filhos quando estes o invocam. Diante da dor nenhuma explicação consola, assim como frente à injustiça e a venalidade, inerentes ao poder auto-referente, só a indignação ética consegue recordar aonde ainda se esconde o amor. Por isso, quando o Espírito Santo elege seus ungidos e nos presenteiam com mensageiros da sua ternura, só podemos nos alegrar e festejar.

Nestes dias, somos convidados a participar de uma entronização que é símbolo deste fato de que Deus não nos deixa órfãos. Nesta 2ª feira, 2 de maio, uma das mais famosas mães de santo do Candomblé brasileiro está completando 80 anos e recebe o título de Doutor Honoris-Causa da Universidade Federal da Bahia. Maria Stella de Azevedo Santos, Mãe Stella de Oxossi, cujo nome sagrado na sua tradição é Ode Kayode, responde como Ialorixá do Illê Axé Opô Afonjá, aldeia religiosa de tradição Ioruba em Salvador- BA. O Opô Afonjá sedia uma das mais tradicionais e importantes comunidades da religião dos Orixás no Brasil. Por quase 30 anos, Mãe Stella dirige a comunidade e tem sido mestra espiritual de gerações inteiras de pessoas das mais diversas tradições espirituais.

Quem conhece Mãe Stella sabe como é uma pessoa discreta e profunda. Sua formação humana foi no campo da enfermagem. Até aposentar-se, trabalhou na Secretaria de Saúde Pública do Estado da Bahia. E por toda a vida, foi aprendendo a unir uma profunda educação espiritual a esta profissão tão simbólica que é cuidar da saúde e atender as pessoas que a procuram, carregando na alma ou no corpo, as marcas da fragilidade humana. Sua comunidade pode lhe agradecer a sabedoria de preservar a tradição religiosa e, ao mesmo tempo, ser capaz de adequá-la às necessidades do tempo em que vivemos. Quando ela completou 60 anos de iniciação no Candomblé, o mestre Agenor Miranda escreveu: "Stella sabe que tudo muda. Por isso, a religião tem de mudar. Precisa modernizar-se para não envelhecer"2.

Para a sociedade mais ampla, Mãe Stella empreendeu importantes iniciativas culturais e sociais, como a fundação da Escola Anna dos Santos que atende a população do bairro e é das raras escolas brasileiras que forma os alunos a partir dos valores culturais da tradição afro-descendente. Também organizou um museu da tradição nagô no próprio terreno da comunidade. Hoje, todo o conjunto do Axé foi reconhecido pelo Ministério da Cultura como patrimônio cultural do Brasil.

Para quem é cristão ou pertence a outra tradição espiritual estranha à religião dos Orixás, esta homenagem à Mãe Stella, na altura dos seus 80 anos e no reconhecimento de sua sabedoria, é uma palavra amorosa de Deus. Como as Igrejas ganhariam em aprender a valorizar este modo feminino de ser instrumento da ação divina no mundo. Assim como Jesus acolheu e valorizou pessoas de tradições espirituais diferentes, como a mulher samaritana, a sírio-fenícia e mesmo o oficial romano, discípulos/as de Jesus são chamados/as a acolher a inspiração divina através desta sacerdotisa negra que manifesta para nós o rosto de Deus que nos busca como um caçador e provê nossa vida. Com a população afro-descendente, esta providência divina se mostrou através da religião ancestral que soube congregar seus filhos dispersos, preservar a cultura própria que lhes garante identidade e confirmar que são todos divinos e pessoas nobres. Mesmo quando a injustiça social e a discriminação racial atentam contra sua dignidade humana.

Infelizmente, as Igrejas cristãs, convictas de serem possuidoras da verdade única, não perceberam isso. Muitas vezes, de forma absolutamente injusta e antievangélica, ministros de Deus condenaram e perseguiram estas manifestações espirituais. É preciso que, ao pedido de perdão de líderes como o papa João Paulo II, acrescentem-se e atualizem-se a necessária valorização destas tradições religiosas autônomas e a alegria porque o Espírito Divino se revela na vitalidade espiritual de profetizas como Mãe Stella de Oxossi. Parabéns, Ode Kayodé!
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1
CF. AGENOR MIRANDA, Mãe Stella, 60 anos de iniciação, obra coletiva organizada por CLÉO MARTINS e RAUL LODY, Ed Pallas, São Paulo, 1999, p. 11.
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* Monge beneditino e autor de 27 livros






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