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A valorização da conciliação como instrumento de pacificação de conflitos

Celso Cintra Mori title=Celso Cintra Mori, Maurício Traldi e Fernanda Chuster Pereira

O direito ao processo é direito fundamental da cidadania, inscrito entre as cláusulas pétreas da Constituição Federal (art. 5°, inciso XXXV1). Entretanto, o direito ao processo não é absoluto. A inclinação natural da coletividade em direção à sociabilidade do Direito torna contínua e progressivamente mais acentuada a limitação dos direitos individuais e a moderação no seu exercício em face do interesse social.

segunda-feira, 30 de maio de 2005

Atualizado em 25 de maio de 2005 14:00


A valorização da conciliação como instrumento de pacificação de conflitos

Celso Cintra Mori*

Maurício Traldi*

Fernanda Chuster Pereira*


O direito ao processo é direito fundamental da cidadania, inscrito entre as cláusulas pétreas da Constituição Federal (art. 5°, inciso XXXV1). Entretanto, o direito ao processo não é absoluto. A inclinação natural da coletividade em direção à sociabilidade do Direito torna contínua e progressivamente mais acentuada a limitação dos direitos individuais e a moderação no seu exercício em face do interesse social. E o interesse social, se por um lado está na segurança e garantia de acesso do indivíduo ao Poder Judiciário, por outro lado também está no impedimento da litigiosidade frívola, de emulação e até no desestímulo da litigiosidade legítima, mas evitável.

A percepção imediata e mais superficial que se tem do sistema jurídico brasileiro é de pouca consideração pela conciliação. Dentro de uma cultura ocidental que valoriza o individualismo, e em que as pessoas de modo geral estão muito mais preocupadas com os seus direitos do que ocupadas com os seus deveres, o processo é visto como uma forma de vencer o inimigo.

Nas faculdades de Direito, a ênfase que se dá ao processo está quase toda concentrada no objetivo da jurisdição, negligenciando-se qualquer zelo pela conciliação como forma de composição dos litígios. À medida que se desenvolveram os fundamentos do processo como instrumento de Direito Público, a partir da monumental construção de VON BULLOW, a atuação do Estado como elemento capaz de submeter uma das partes à pretensão da outra reforçou o conceito de que justo é o que o Estado determina e faz cumprir.

Quando, na simplicidade das máximas do Direito Romano, se dizia que "o Direito é a arte de atribuir a cada um o que é seu", o significado não era o de que cabia exclusivamente ao Estado atribuir a cada um o que era seu. O Direito tanto se pode realizar pela ética, impulso interno que motiva cada um a reconhecer e respeitar espontaneamente o direito do outro, como pela conciliação, que afasta os litígios prenunciados e encerra aqueles já exteriorizados, como, ainda, pela jurisdição, que soluciona os litígios de forma impositiva.

Em determinados momentos da História, e na cultura de determinados povos, a conciliação tem maior expressão e relevância que a jurisdição estatal, à qual precede com preferência. ROQUE KOMATSU2 demonstra a importância que sempre teve a conciliação nas sociedades clássicas, na antiga Grécia, no Direito Romano, no Direito Canônico, no Germânico e em inúmeros outros sistemas jurídicos. Não passa sem reparo a observação de que, ainda hoje, na sociedade japonesa, constitui motivo de desonra terem as partes de ir a Juízo para solucionar suas controvérsias; significa a confissão da incapacidade de conviver em sociedade de forma harmoniosa.

No direito positivo brasileiro, a obrigatoriedade da conciliação obedeceu à tradição portuguesa durante a fase colonial. Proclamada a Independência, a obrigatoriedade da conciliação assumiu desde logo o status de Direito Constitucional. Apareceu como norma expressa na Constituição de 18243, que não apenas tratou da conciliação prévia, precedente ao processo, como da conciliação, no curso do procedimento, por Juízes indicados pelas partes.

Com o passar dos anos, o aprimoramento e a evolução natural da legislação processual civil seguiram a tendência de valorizar e dar ênfase às medidas conciliatórias. O Código de Processo Civil ("CPC"), de 1973, em seus artigos 447 a 4494, introduziu o procedimento conciliatório. No âmbito do procedimento sumário, a tentativa de conciliação encontrava-se regulamentada nos artigos 277 e 278, § 1°5.

Com o advento da Lei n° 8.952, de 13.12.1994, foram incorporadas duas importantes alterações na legislação processual civil, que enalteceram ainda mais a relevância da busca e da tentativa da conciliação pelos Juízes, como forma de solução dos litígios.

O inciso IV do artigo 125 do CPC impôs aos Juízes, mais do que uma simples faculdade, a obrigação de tentar a conciliação das partes sempre que esta se mostrar possível. A tentativa de conciliação poderá ser feita em qualquer fase do procedimento e grau de jurisdição, não se restringindo, portanto, às audiências preliminar e de instrução e julgamento. O artigo 331 do CPC também foi alterado com o fim de se instituir a realização de audiência de conciliação antes do saneamento do feito.

Mais recentemente, a Lei nº 10.444, de 7.5.2002, acrescentou o § 3º ao artigo 331, do CPC, permitindo que o Juiz dispense a designação da audiência preliminar, sempre que as circunstâncias da causa demonstrarem ser improvável a sua obtenção ou ainda na hipótese de o direito em litígio não admitir transação. Entendemos que o dispositivo legal acima citado deve ser interpretado e aplicado dentro de um contexto de valorização do instituto da conciliação, e não como respaldo legal ao desestímulo do exercício pleno e efetivo da atividade conciliatória, o que representaria um verdadeiro retrocesso. Portanto, a não-realização da audiência preliminar deve ocorrer em situações muito excepcionais, nas quais existem fortes indícios de que se mostrará infrutífera a conciliação.

Por fim, vale salientar que a tentativa de conciliação encontra-se também presente no procedimento de várias leis especiais6.

Os Setores de Conciliação em Primeiro e Segundo Graus de Jurisdição

Por meio do Provimento nº 783/2002, publicado em 14.8.2002, o Conselho Superior da Magistratura instituiu, no Tribunal de Justiça de São Paulo, em caráter experimental, o "Plano Piloto de Conciliação em Segundo Grau de Jurisdição".

Para a implantação do Plano Piloto, o Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo nomeou como "conciliadores honorários", sem remuneração, Juízes e Desembargadores aposentados, Promotores e Procuradores de Justiça aposentados, Procuradores de Estado, Professores universitários e Advogados com larga experiência, reconhecida capacidade e ilibada reputação. Foi também nomeada uma comissão formada por três Desembargadores, que teve a função de acompanhar, monitorar e avaliar o trabalho dos Conciliadores e os resultados alcançados. O Plano Piloto observava a seguinte seqüência de atos: (i) ao receber os autos, o Conciliador marcava dia e hora para realização da sessão de conciliação e o Tribunal providenciava a convocação das partes e de seus patronos (de forma informal, por meio de contato pelo telefone ou transmissão de fax); (ii) obtida a conciliação, lavrava-se termo de transação assinado pelas Partes, pelos Advogados e pelo Conciliador, e homologado pelo Presidente do Tribunal; (iii) frustrada a tentativa de conciliação, os autos retornavam à posição anterior de distribuição no Tribunal.

Os bons resultados atingidos pelo Plano Piloto motivaram o Conselho Superior da Magistratura a editar o Provimento nº 843/2004, instituindo, de forma definitiva, o "Setor de Conciliação em Segundo Grau de Jurisdição". No ano de 2004, o índice de acordos formalizados em decorrência das audiências realizadas foi de aproximadamente 45%, segundo dados disponibilizados no site do Tribunal de Justiça de São Paulo.

A partir dessa bem sucedida experiência, outras tantas surgiram, tais como: (i) Setor Experimental de Conciliação no Fórum João Mendes Jr. (Provimento nº 796/2003, do Conselho Superior da Magistratura); (ii) Projeto Experimental de Atendimento Diferenciado no Sistema de Juizados Especiais Cíveis (Provimento nº 812/03, do Conselho Superior da Magistratura); (iii) Projeto Piloto de Mediação da Vara da Infância e Juventude de Guarulhos (aprovado em sessão de 19.9.2003, do Conselho Superior da Magistratura); (iv) Setor Experimental de Conciliação de Família no Foro Regional Santo Amaro (Provimento nº 864/2004, do Conselho Superior da Magistratura); (v) Setor Experimental de Mediação na Vara da Família e Sucessões da Comarca de Jundiaí e (vi) os Postos de Atendimento e Conciliação do Juizado Especial Cível da Comarca de Campinas, em parceria com as Faculdades de Direito (aprovados em sessão do Conselho Superior da Magistratura, de 30.8.2004).

No entanto, a mais significativa medida já foi tomada, com a publicação, em 10.11.2004, do Provimento nº 893/2004, que autorizou a criação e instalação, nas Comarcas e Foros da Capital e do Interior do Estado, do Setor de Conciliação, para questões cíveis que versarem sobre direitos patrimoniais disponíveis, questões de família e da infância e juventude.

Desde 8.9.2004, o Fórum João Mendes Jr., na Capital de São Paulo, conta com um Setor de Conciliação, que foi implementado, em caráter definitivo, em 28.3.2005. Atualmente realiza, em média, 50 audiências por dia, atendendo a todas as Varas Cíveis. Dados não oficiais estimam em 30% o índice de acordos celebrados no âmbito das audiências realizadas.

Muito embora seja sempre permitido às partes tentarem a conciliação enquanto não encerrada a lide, sem dúvida alguma, é em Primeiro Grau de Jurisdição que essa busca deve ser mais intensificada e valorizada, principalmente em razão de o litígio ainda estar no início. E, nesse aspecto, o Provimento nº 893/2004 inova ao permitir que a tentativa de conciliação ocorra antes do ajuizamento da ação.7

O conciliador, as partes e seus advogados ficam submetidos à cláusula de confidencialidade, devendo guardar sigilo a respeito do que foi dito, exibido ou debatido na sessão, não sendo tais ocorrências consideradas para outros fins que não os da tentativa de conciliação.8

Vale destacar, ainda, a possibilidade de qualquer das partes peticionar ao Juiz da causa requerendo a designação da audiência perante o Setor de Conciliação.

Em suma: criar oportunidades para que as partes tentem a conciliação, significa, de fato, proporcionar uma tutela jurisdicional mais efetiva. Sobretudo, reflete a postura de um Poder Judiciário preocupado com a harmonia social, da qual é o maior guardião. A conciliação, antes da propositura da ação ou em qualquer grau de jurisdição, não deve ser interpretada como um paliativo para as graves deficiências de que padece a estrutura judiciária, mas, sim, como resultado da evolução (i) do processo como instrumento de Direito Público e da (ii) própria sociedade na busca da harmonia social. Nesse contexto, os profissionais do Direito, de uma forma geral, devem contribuir para a adoção e a observância das medidas conciliatórias, que, nos termos do Provimento nº 893/2004, do Conselho Superior da Magistratura, propiciam "maior rapidez na pacificação dos conflitos e não apenas a solução da lide, com resultados sociais expressivos e reflexos significativos na redução do número de processos judiciais".
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1"A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito."

2In: "Tentativa de Conciliação no Processo Civil" (Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, Orientação do Professor Celso Neves, junho de 1978).

3"Art. 160. Nas cíveis e nas penais civilmente intentadas poderão as partes nomear juízes árbitros. Suas sentenças serão executadas sem recurso, se assim o convencionarem as mesmas partes."
"Art. 161. Sem se fazer constar que se tem intentado o meio da reconciliação, não se começará processo algum".

4"Art. 447. Quando o litígio versar sobre direitos patrimoniais de caráter privado, o juiz, de oficio, determinará o comparecimento das partes ao início da audiência de instrução e julgamento. Parágrafo único. Em causas relativas à família, terá lugar igualmente a conciliação, nos casos e para os fins em que a lei consente a transação."
"Art. 448. Antes de iniciar a instrução, o juiz tentará conciliar as partes. Chegando a acordo, o juiz mandará torná?lo por termo." "Art. 449. O termo de conciliação, assinado pelas partes e homologado pelo juiz terá valor de sentença."

5"Art. 277. O juiz designará a audiência de instrução e julgamento, deferindo as provas que nela houverem de produzir-se.
Art. 278. (...) § 1º - Na audiência, antes de iniciada a instrução, o juiz tentará conciliar as partes, observando-se o disposto no art. 448." (Redação dada pela Lei nº 5.869/73, posteriormente alterada pela Lei nº 9.245, de 26.12.1995).

6(i) Lei n° 5.478, de 25.7.1968 (Lei de Alimentos) ? art. 9°;
(ii) Lei n° 6.515, de 26.12.1977 (Lei do Divórcio) ? art. 3°, §§ 2° e 3°;
(iii) Lei n° 7.244, de 7.11.1984, instituiu os Juizados de Pequenas Causas? arts. 22 e 23;
(iv) Lei n° 9.099, de 26.9.1995, que revogou a Lei n° 7.244/84 e instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais? arts.21e 22;
(v) Lei n° 9.307, de 23.9.1996 (Lei de Arbitragem)? arts. 7, § 2° e 21, § 4°;
(vi) Lei n° 10.259, de 12.7.2001, que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal ? arts. 9° e 10, § único.

7Nos termos do artigo 4º, § 1º do referido Provimento: "Antes do ajuizamento da ação, comparecendo o interessado, facultativamente, por si, ou encaminhado através do Juizado Especial Cível, ou do Ministério Público na atividade de atendimento ao público, o funcionário ou voluntário do Setor de Conciliação ouvirá sua reclamação, sem reduzi-la a termo, emitindo, no ato, carta-convite à parte contrária, informativa da data, horário e local da sessão de conciliação; a carta será encaminhada ao destinatário, pelo próprio reclamante, ou pelo correio, podendo esse convite ser feito, ainda, por telefone, fax,ou meio eletrônico; a única anotação que se fará sobre o litígio se refere aos nomes dos litigantes, na pauta das sessões do Setor."

8Artigo 8º, do Provimento nº 893/2004, do Conselho Superior da Magistratura.
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*Advogados do escritório Pinheiro Neto Advogados

* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.

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