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Linguagem jurídica

José Barcelos de Souza

Vi na televisão uma matéria que propunha tornar a linguagem dos advogados e juízes mais acessível ao leigo. Dentre os exemplos de usos a evitar, estava o de dizer na petição ou sentença que o autor postulava isso assim assado.

terça-feira, 7 de junho de 2005

Atualizado em 6 de junho de 2005 09:30

Linguagem jurídica


José Barcelos de Souza*

Vi na televisão uma matéria que propunha tornar a linguagem dos advogados e juízes mais acessível ao leigo. Dentre os exemplos de usos a evitar, estava o de dizer na petição ou sentença que o autor postulava isso assim assado.

Não
vejo por que deixar de empregar o vocábulo, preciso no sentido de solicitar, rogar. Ou não usar a expressão "capacidade postulacional", ou seja, existência de habilitação profissional para requerer em juízo. Mesmo porque a expressão está na própria lei. Nem seria de cortar o uso de vocábulos como intempestivo (isto é, fora do prazo) e incompetente (não ser da competência), embora esta última possa até confundir o leigo. É conhecida a anedota de a parte dizer ao juiz que era modéstia dele considerar-se incompetente para julgar certo caso. O advogado não pode prescindir (estou falando difícil?) de termos técnicos.

O que não se deve aceitar é a linguagem empolada, o estilo rebuscado. Ou inventar certas expressões, como "caderno acusatório", para referir-se à denúncia do Ministério Público. Empregar palavreado ininteligível para o leigo ao falar com ele é demais. Foi o que fez uma funcionária ao dizer à parte que o processo poderia demorar. Isso porque, explicava, os autos ainda deviam subir ao TRF (Tribunal Regional Federal), com possibilidade de recurso especial para o STJ (Superior Tribunal de Justiça). Lembrei-me de um auxiliar de enfermagem que recomendou a outro "tomar a P.A.", isto é, medir a pressão arterial.

Conceitos difíceis, como termos técnicos, são, porém, inevitáveis. O que o leigo tem de entender claramente são as perguntas a que deva responder numa audiência ou no júri. Ou as exposições dirigidas a jurados.

Fato interessante relatou-me o Prof. Hermínio Marques Porto. Ao chegar à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco para integrar, também como ele, uma banca examinadora de concurso para professor titular, já o encontrei, devidamente paramentado, na sala dos professores. Logo que também vesti a beca trazida por um funcionário já entramos em um bom bate-papo, enquanto aguardávamos os outros examinadores. A conversa descambou para acontecimentos do júri, quesitos mal redigidos, etc. Foi então que ele me contou sobre um jurado, que lhe pareceu emburrado num julgamento, se não me engano em Ribeirão Preto ou em Guarulhos. É que o juiz presidente, procurando recomendar aos jurados que evitassem qualquer atitude que pudesse levar um outro jurado a perceber qual seria a sua decisão, falou-lhes que não deviam "exalar seu convencimento", que não deixassem transparecer seu convencimento. Um jurado ficou um tanto carrancudo. Dias depois, encontrando-o na rua, explicou-lhe o jurado a razão de seu amuo (está caprichado?). Não gostara de o juiz tê-lo chamado de convencido.

E é justamente em plenário do júri que têm acontecido coisas horríveis, não por causa da linguagem jurídica, mas por procurar o advogado falar difícil.

Vou citar dois casos curiosos. Um ocorrido nos Estados Unidos, que li no interessante livro The art of cross-examinatoin (A arte de inquirir testemunhas).

Querendo perguntar à testemunha onde ela morava, o advogado lhe indagou: Where do you reside? A testemunha não entendia, e o advogado repetia, elevava a voz, escandia as sílabas, caprichava no "reside", e nada. Então o oficial de justiça soprou-lhe aos ouvidos: "Pergunte assim, Where do you live?". Não deu outra. A testemunha respondeu prontamente: moro na rua tal, número tal.

O outro fato - a mim contado por testemunha ocular da história - aconteceu aqui mesmo em Minas Gerais, protagonizado por bom advogado, que se tornou depois desembargador.

Desejando que a testemunha informasse se o tiro foi dado durante a luta da vítima com o réu, o advogado perguntou assim: "O tiro foi antes, no meio ou depois da refrega?". A testemunha engolia em seco, mostrava-se inibida, ficou vermelha, mas não respondia. Indagada se entendera a pergunta, e instada (opa!) a responder, explicou: "Não foi antes nem depois; foi entre a refrega e o umbigo". Uma gargalhada geral ecoou no salão.

O pior foi que a sessão teve de ser encerrada antes de terminar o julgamento. Porque, tudo já acalmado, quando menos se esperava, quando parecia que tudo corria normalmente, alguém iniciava uma risadinha, que acabava contagiando todo o auditório.
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*Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Diretor do Departamento de Direito Processual Penal do IAMG - Instituto dos Advogados de Minas Gerais.







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