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A livre circulação de pessoas no âmbito do Mercosul

Gabriel R. Kuznietz e Agnes Pinto Borges

A livre circulação atingirá as pessoas físicas e jurídicas de maneira igualitária, podendo cada uma delas entrar e se estabelecer da maneira que lhe aprouver em qualquer dos Estados Membros, exercendo qualquer atividade econômica.

quarta-feira, 26 de março de 2003

Atualizado em 1 de abril de 2003 11:49

A livre circulação de pessoas no âmbito do Mercosul

Gabriel R. Kuznietz

Agnes Pinto Borges*

1. Antecedentes

O Mercado Comum do Sul - Mercosul foi criado pelo Tratado de Assunção, seguido pela assinatura do Protocolo de Ouro Preto, que completou a estrutura institucional do bloco.

Desde sua criação, o Mercosul teve como objetivo a constituição de um mercado comum, que é uma das etapas mais avançadas de um processo de integração, antecedido apenas pela zona de livre comércio e pela união aduaneira. Hoje, o Mercosul é uma união aduaneira imperfeita, visto que a TEC - Tarifa Externa Comum -, característica essencial de uma união aduaneira, possui uma extensa lista de exceções.

Contudo, no mês de dezembro de 2002 o Mercosul deu um importante passo para a constituição do mercado comum, qual seja a assinatura de um acordo sobre a livre circulação de pessoas. Vale lembrar que a constituição de um mercado comum pressupõe a existência de quatro liberdades: (i) livre circulação de pessoas (assalariadas ou não); (ii) livre circulação de capital; (iii) livre circulação de mercadorias, e (iv) livre circulação de serviços.

O Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul ("Acordo sobre Residência"), celebrado no dia 6 de dezembro de 2002 na cidade de Brasília juntamente com os países associados Bolívia e Chile, sem dúvida nenhuma marca o início de uma nova etapa na história da integração dos Estados Membros do Mercosul. Podemos dizer que este foi o acontecimento mais significativo no domínio da livre circulação de pessoas e da consolidação do mercado comum ocorrido até hoje.

A livre circulação atingirá as pessoas físicas e jurídicas de maneira igualitária, podendo cada uma delas entrar e se estabelecer da maneira que lhe aprouver em qualquer dos Estados Membros, exercendo qualquer atividade econômica.

Os procedimentos e tarefas para colocar em prática a liberdade de circulação de pessoas e, conseqüentemente, a liberdade de estabelecimento no âmbito do Mercosul certamente não é fácil, em virtude do conflito de interesses e da ausência de uma legislação uniforme entre os Estados Membros. Porém, esta tampouco é uma tarefa impossível.

Os Estados Membros precisarão implementar um programa geral de liberação das atividades comerciais de maneira a atingir as principais atividades existentes dentro do Mercosul. Para tanto, será necessária uma aproximação das legislações vigentes nos Estados Membros, e será importante avançar em diferentes matérias, tais como, (i) reconhecimentos de diplomas, certificados e outros títulos, a fim de permitir a livre circulação dos profissionais dentro dos Estados Membros do Mercosul, e (ii) harmonização dos sistemas de seguridade social e de saúde.

2. A Experiência Européia

Tomemos como exemplo a experiência da União Européia, onde não se admite a existência de fronteiras internas ou de obstáculos à liberdade de circulação das pessoas. O próprio Tratado de Roma veda o tratamento discriminatório entre nacionais dos Estados Membros baseado na nacionalidade.

Fazendo um breve resumo da evolução da livre circulação de pessoas no âmbito da União Européia, vimos que o conceito de liberdade de circulação de pessoas primeiramente foi tratado como liberdade de circulação de sujeitos econômicos, quer como trabalhadores assalariados, quer como prestadores de serviços. O Tratado de Roma1, em seu artigo 48, já falava da liberdade de circulação de trabalhadores. Aliás, o direito dos trabalhadores de circular livremente para trabalhar ou para encontrar trabalho em outro Estado Membro foi também disciplinado por Regulamento e Diretiva já em 19682.

Com o passar do tempo, o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias começou a ampliar a interpretação do conceito de trabalhador na Europa. Em meados da década de 80, com o Ato Único3 e devido ao objetivo de completar o Mercado Único Europeu4, ficou óbvio que o controle nas barreiras entre Estados Membros da Europa deveriam ser removidas. Já em 1990, a União Européia adotou três Diretivas muito importantes no que diz respeito à livre circulação de pessoas; contemplando a situação dos estudantes, aposentados e de nacionais não protegidos por outras disposições.

Assim, um cidadão da União Européia pode residir em qualquer Estado Membro, desde que coberto por um seguro de saúde e que tenha recursos suficientes para viver naquele país. Aliás, a "cidadania européia" foi outro passo à consolidação da livre circulação de pessoas, tendo sido criada em 1992 pelo Tratado de Maastrich. Um cidadão alemão ou francês, por exemplo, passou a ser visto, assim, como um "cidadão europeu", gozando de todas as prerrogativas inerentes a tal condição.

Em suma, é garantido ao cidadão da União Européia a mobilidade geográfica e profissional no âmbito de seus Estados Membros.

Com a assinatura do Tratado de Amsterdam em 1997, o Acordo de Schengen5 foi incorporado à legislação comunitária. Pela assinatura deste Acordo, as fronteiras internas e os controles para todas as pessoas foram sendo paulatinamente suprimidas e acompanhadas por medidas que visaram reforçar os controles nas fronteiras externas. Isto compreendia uma política comum de vistos, a possibilidade de examinar os pedidos de asilo, a cooperação policial e judicial e o intercâmbio de informações. Essencialmente, para o seu funcionamento eficaz, foi criado um Sistema de Informação Schengen ("SIS") que fornece informações sobre a entrada de cidadãos de terceiros países, a emissão de vistos e a cooperação policial, instrumento este reservado às policias e autoridades responsáveis pelos controles nas fronteiras externas.

No âmbito da União Européia, os direitos inerentes à livre circulação de pessoas estão sujeitos apenas às limitações justificadas por razões de segurança, ordem e saúde pública. Em regra, não há necessidade de pedido de visto, residência ou de qualquer formalidade deste tipo. O simples fato de uma pessoa ser nacional de um Estado Membro confere a ela o direito à mobilidade geográfica e profissional dentro da União Européia.

3. Conclusão

Como se pode ver através da experiência européia, no âmbito do Mercosul há muito o que ser feito no que se relaciona à livre circulação de pessoas, mas o Acordo sobre Residência de dezembro de 2002 pode e deve ser o início da efetivação de um dos objetivos do bloco: a constituição de um mercado comum.

Para entrar em vigor, o Acordo sobre Residência ainda necessita ser ratificado ainda pelos Congressos de alguns dos Estados Membros. Uma vez em vigor, os Estados Membros deverão concentrar seu trabalho em criar os alicerces legais necessários para assegurar a livre circulação de pessoas entre os diferentes países do Mercosul.

Lembremos que até agora o Mercosul vem sendo apenas uma integração econômica, o que acaba por afastar o cidadão do processo integracionista. Quando os cidadãos dos Estados Membros do Mercosul puderem sentir de perto os efeitos reais da integração regional em sua vida diária, os cidadãos certamente terão uma visão diferente do Mercosul, que desta forma ganhará o apoio de cada um de nós.

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1. Celebrado em 1957 pelos seis Estados Membros iniciais (França, Alemanha, Itália, Bélgica, Holanda e Luxemburgo), instituiu a Comunidade Econômica Européia, posteriormente denominada de Comunidade Européia.

2. Regulamento 1612/68 e Diretiva 68/360/CEE. Regulamentos e Diretivas são tipos de instrumentos legais estabelecidos pelo Tratado de Roma para disciplinar a Comunidade Européia. A diferença essencial entre Regulamento e Diretiva é que esta deverá ser transposta na legislação nacional de cada Estado Membro antes de entrar em vigor, enquanto o Regulamento é diretamente aplicável aos Estados Membros.

3. Tratado este celebrado em 1986 e em vigor desde Julho de 1997, foi a primeira revisão substancial dos Tratados originais, a saber: Tratado de Paris (1951); Tratado de Roma (1957) e Tratado EURATOM (1957).

4. Também conhecido por mercado interno, entende-se por mercado único europeu a totalidade da atividade econômica e comercial existente dentro dos Estados Membros.

5. Celebrado em 14 de junho de 1985. Atualmente fazem parte deste Acordo França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Portugal, Espanha, Áustria, Grécia, Itália, Dinamarca, Finlândia, Suécia, Islândia e Noruega.

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*advogados do escritório Demarest e Almeida Advogados.

 

 

 

 

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