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Acesso pleno à Justiça: dever constitucional do Estado e de toda a sociedade

Mateus Faeda Pelizari

O artigo 5º inciso LXXIV da Constituição Federal dispõe que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.

sexta-feira, 29 de julho de 2005

Atualizado em 14 de julho de 2005 07:54


Acesso pleno à Justiça: dever constitucional do Estado e de toda a sociedade

Mateus Faeda Pelizari*

O artigo 5º inciso LXXIV da Constituição Federal1 dispõe que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.

O primeiro elemento do serviço de assistência jurídica é de ser prestado de forma gratuita, aos que comprovarem insuficiência de recursos. Uma primeira reflexão pode nos levar a questionar porque o serviço deve ser prestado somente aos necessitados e não a toda a população, como se esse segmento fosse uma pequena parcela da sociedade.

Na verdade, diante da realidade social brasileira poderemos verificar que a situação é justamente o inverso, isto é, a maioria da população se encontra na pobreza e miséria.

Portanto o serviço de assistência jurídica gratuita deve ser prestado para esses seguimentos de sociedade que são a maioria e vivem no cotidiano toda espécie de segregação e espoliação de seus direitos.

Poderíamos definir como necessitados todos os indivíduos carentes de recursos e grupos de indivíduos que sofrem lesão ou ameaça de lesão a seus direitos e interesses.

Entre o que está escrito no novo texto constitucional e a realidade há uma grande distância. Para que esta norma constitucional venha a ter eficácia nos Estados e Municípios e para que a população tenha condições mais concretas de reivindicar os seus direitos perante o Estado, o Poder Público terá que reordenar a qualidade deste serviço até então prestado, pois, conforme a doutrina de Nelson Saule Júnior, com a ampliação da abrangência do serviço de assistência jurídica, a sua intervenção deverá ser cada vez maior, em razão do enorme número de conflitos sociais enfrentados pela maioria da população na sua vida cotidiana (SAULE JÚNIOR In: DI GIORGI, CAMPILONGO, PIOVESAN, 1995, p.162-3).

Inegavelmente, dentre todos os textos constitucionais brasileiros, foi o atual, promulgado em 5 de outubro de 1988, o que mais inovações trouxe no que diz respeito especificamente à questão do acesso à justiça.

Com relação à assistência jurídica aos carentes, a Constituição Federal inovou, ao estabelecer no inciso LXXVI do artigo 5º o dever do Estado em prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Esse dispositivo legal merece uma análise mais acurada do seu texto.

Em primeiro lugar ele se refere à assistência jurídica e não à assistência judiciária, termo que vinha sendo historicamente utilizado pela legislação pátria. Nesse sentido, o que se verifica com tal modificação é que o constituinte teve o objetivo de ampliar a assistência aos carentes, dando-lhes, além daquela necessária para o ingresso em juízo, também as assessorias preventiva e extrajudicial.

Ao utilizar também o adjetivo integral, o legislador constituinte reforça a idéia da assistência jurídica integral ser entendida como aquela que propicie ao interessado todos os instrumentos necessários antes, durante e posteriormente ao processo judicial e mesmo extrajudicialmente, quando aquele não for necessário.

O adjetivo gratuita, em conjunto com o anterior (integral), quer significar que aquele que não possui recursos suficientes para arcar, sem onerar o sustento familiar, com as despesas provenientes de uma demanda, será isento de todo o qualquer gasto que se fizer necessário para o efetivo acesso à justiça. Nesse sentido a constituição também estabelece gratuidade do acesso, na forma que a lei estabelecer, a todos os demais atos necessários ao exercício pleno da cidadania2.

Fundamental para que o preceito legal que estabelece o direito à assistência jurídica integral e gratuita possa atingir seus objetivos, prevê o artigo 134 da Magna Carta a Defensoria Pública como sendo a instituição essencial à função do Estado de prestar a assistência jurídica gratuita, incumbindo-lhe, a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados. O texto constitucional estabelece que Lei Complementar organizará as defensorias públicas da União, do Distrito Federal e dos territórios, fixando também, as normas gerais a serem seguidas pelos estados-membros na organização de suas defensorias (art.134, parágrafo único). Essa regulamentação ocorreu através da Lei Complementar n.º 80/94, que organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos estados.

Vale lembrar, que as modernas Constituições do mundo ocidental trazem em seu texto um capítulo reservado à declaração e positivação de uma gama de direitos tidos como fundamentais a serem seguidos, protegidos e respeitados, por toda a sociedade, em favor da pessoa humana.

Com efeito, a democrática Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em outubro de 1988, elencou em seu bojo um extenso rol de direitos fundamentais que acabaram por criar regras a serem observadas e cumpridas por todos. A opção do legislador em trazer declarado no texto constitucional esses princípios de cunho humanitário, necessariamente estabelece o compromisso do Estado em ser o primeiro, mas não o único, garantidor da efetiva concretização material dos direitos humanos.

Realmente, a constitucionalização dos direitos do homem acaba redundando na positivação de direitos fundamentais fazendo com que estes direitos alcancem a qualidade de "normas jurídicas vinculativas". Por tal razão, toda e qualquer violência ou desrespeito aos direitos fundamentais protegidos constitucionalmente, merece a imediata e enérgica desaprovação. Por isso, quando observamos a omissão social em exigir o respeito, a proteção e o cumprimento dos diretos elencados na Constituição e a falta de vontade política no sentido de tornar efetiva a implementação das instituições constitucionalmente vocacionadas a prestar a tão necessária assistência jurídica ao necessitado, estamos diante de uma verdadeira violação, por omissão, dessa parcela dos direitos humanos fundamentais, desrespeitando o legislador, inclusive, a postura democrática que a Constituição lhe exige. Diante disso, e como bem salienta Glauco Gumerato Ramos, bem se vê o quão importante é a efetiva concretização da assistência jurídica ao necessitado, até mesmo para que outros direitos fundamentais sejam plenamente realizados. (RAMOS In: FUNDAÇÃO KONRAD ADENAUER, 2000, p. 41-2)

Para assegurar o cumprimento dessa norma constitucional, torna-se essencial a organização e estruturação dos órgãos responsáveis pela prestação desse serviço nos Estados e Municípios.

Segundo a própria Constituição, a União e os Estados têm competência concorrente para legislar sobre assistência jurídica e Defensoria Pública, cabendo a União, no âmbito dessa competência estabelecer as normas gerais.

Diante da competência concorrente atribuída aos Estados para legislar sobre o termo, independente da existência da lei federal estabelecendo as normas gerais, a assistência jurídica foi matéria das Constituições Estaduais.

A despeito da regra contida na Constituição, no Brasil, infelizmente, poucos são os entes federados que se propuseram a instituir suas respectivas Defensorias Públicas, situação essa que inequivocamente acaba por inviabilizar o necessário auxílio jurídico a que faz jus o necessitado, tornando-se, cada vez mais evidente, a importância dos Núcleos de Prática Jurídica das Faculdades de Direito como fonte de conhecimento e defesa dos interesses dos cidadãos desse nosso país.

Com seu trabalho, os Escritórios Modelo, que são parte essencial dos Núcleos de Prática Jurídica, demonstram a possibilidade de se pensar em soluções alternativas às tradicionais, adequadas à realidade social e regional, servindo como elemento de reflexão para todas aquelas pessoas preocupadas com a questão do acesso efetivo à justiça e com a criação de mecanismos práticos que permitam a sua real efetividade e não apenas sua simples positivação.

Um grande exemplo que levantamos no sentido de realizar o objetivo primordial de oferecer a um maior número de pessoas a oportunidade efetiva de acesso à justiça é a realização de um trabalho em conjunto entre os Escritórios Modelo, Defensoria Pública e a própria Sociedade. Nesse sentido, o apoio do Governo deverá ir além do simples repasse de verbas, é preciso além de apoio financeiro também existir o apoio organizacional no sentido de oferecer a todos os interessados um serviço que além de atingir um número maior de pessoas seja também de grande qualidade.

Todos nós somos responsáveis por essa transformação, onde os direitos não devem estar apenas positivados mas sim efetivamente defendidos e protegidos. Somente com o auxílio de toda a sociedade poderemos fazer com que discursos tornem-se realidade, que projetos sejam realizados e que o nosso país seja um país de oportunidades e não um país de diferenças onde a sociedade é omissa, o poder público inoperante e nós, privilegiados, universitários, pesquisadores, advogados, professores, membros do judiciário, empresários, políticos que tivemos oportunidades continuemos entendendo a Justiça como a Deusa que, de olhos fechados, encontra-se cada vez mais distante da realidade que nos cerca.

Referências:

BRASIL. Constituição federal, código civil, código de processo civil. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2004.

 

RAMOS, Glauco Gumerato. Realidade e Perspectivas da Assistência Jurídica aos Necessitados no Brasil, In: FUNDAÇÃO KONRAD ADENAUER. Cadernos Adenauer 3: Acesso à justiça e cidadania. São Paulo: Annablume Editora, maio 2000. p.41-2.

 

SAULE JÚNIOR, Nelson. A Assistência Jurídica como instrumento de garantia dos direitos urbanos e cidadania. In: DI GIORGI, Beatriz; CAMPILONGO, Celso Fernandes e PIOVESAN, Flávia. DIREITO, CIDADANIA E JUSTIÇA: Ensaios sobre Lógica, Interpretação, Teoria, Sociologia e Filosofia jurídicas - vários colaboradores. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 157-64.

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1

Esse artigo, que compõe o Capítulo I - Dos direitos e deveres individuais e coletivos - do Título II que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, em seu inciso LXXIV, que nos interessa de maneira especial, dispõe:

"Art. 5º . Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (....)

LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos; "

2vide artigo 5º, XXXIV da Constituição Federal que garante independente de pagamentos de taxas, o direito de petição aos poderes públicos tanto para a defesa de direitos contra ilegalidade , bem como a obtenção de certidões em repartições públicas, visando a defesa de direitos ou esclarecimento de situações de interesse pessoal e também inciso LXXVII que estabelece a gratuidade do acesso nas ações de Habeas-corpus e Habeas-data.

O artigo 134 da Constituição Federal tem a seguinte disposição:

"Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.

Parágrafo único. Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios, e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais."
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*Advogado e Mestrando do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro - Jacarezinho/PR





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