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A validade dos recibos de saúde para o Imposto de Renda condicionada ao endereço do profissional

O texto assinala que está na hora do Direito Tributário ter como fim o ser humano e não o tributo, que deve ser um meio para que se atinja a justiça social.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Atualizado em 26 de outubro de 2011 12:25

Renato Lúcio de Toledo Lima

A validade dos recibos de saúde para o Imposto de Renda condicionada ao endereço do profissional

A dedutibilidade das despesas de saúde na apuração do Imposto de Renda, legalmente assegurada, vem encontrando novas formas de recusa pela Receita Federal do Brasil. Via de regra, as rejeições às despesas declaradas atinem a sua comprovação.

Atualmente ganharam força as glosas concernentes aos recibos emitidos pelos profissionais de saúde que não ostentem os endereços dos prestadores, requisito elencado no art. 8.º, § 2.º, inc. III, da lei 9.250/95 (clique aqui).

Em desfavor dos contribuintes, as autoridades fiscais vêm entendendo que o recibo não serve, em si, como comprovante de pagamento; como se pagar em dinheiro não fosse meio inteligente de quitar suas obrigações, porque, segundo o raciocínio fazendário, esse tipo de pagamento seria inoponível à tributação.

A Receita Federal, em seu auxílio, tem evocado o §3.º do art. 11 do Decreto-Lei 5.844 (clique aqui), de 1943, no sentido de que todas as deduções estarão sujeitas a comprovação ou justificação, a juízo da autoridade lançadora, afirmando um despotismo compatível somente com a ordem constitucional daquele tempo, a Constituição outorgada de 1937, cujo veio autoritário rendeu-lhe o apelido de "A Polaca", tamanha a semelhança com os desmandos absolutistas permitidos pelo diploma polonês daquela época.

Hoje, porém, vivemos num estado democrático que deve respeitos a seus cidadãos. O direito tributário, a par do administrativo, serve para proteger o contribuinte.

Não se pode olvidar o antropocentrismo trazido pelo Estado Democrático de Direito na definição dos contornos das relações jurídicas entre o Poder Público e o cidadão. O professor Renato Lopes Becho assinala em sua recente obra Filosofia do direito tributário:

"Colocar o homem no centro do Direito Tributário implica afirmar que a simples arrecadação não é mais o fim último do Direito Tributário. A finalidade do Direito Tributário é fazer da arrecadação um ato de justiça social, com limites, com proteções ao contribuinte diante da força e da voracidade do Estado. O legislador não é mais a fonte do Direito. A Constituição, como única fonte, confere poderes tributários significativos tanto para o legislador quanto para o pagador de tributos. Os sujeitos passivos que recolhem os tributos aos cofres públicos têm poderes constitucionais, que são instrumentos de defesa, destacando-se as possibilidades de oposição a uma tributação desmedida (...)".

(in. Filosofia do direito tributário. São Paulo: Ed. Saraiva, 2009. p. 342)

Aos intérpretes do Direito cumpre a tarefa de sopesar a aplicação das normas jurídicas considerando o ser humano (contribuinte), e não mais o tributo, como centro do Direito Tributário, a despeito de interpretações aparentemente mais utilitárias. Lopes Becho anota que esse prisma requer:

"(...) a arrecadação com respeito ao ser humano, não simples ato de força estatal, em benefício apenas dos detentores do poder".

(in. Filosofia do direito tributário. São Paulo: Ed. Saraiva, 2009. p. 342)

Em outras palavras, a função social humanista e o interesse público não contrastam, senão pela odiosa ótica do interesse público secundário, o qual prestigia a interpretação literal dos direitos cabentes à Administração Pública tão-somente por ser ela sujeito (capaz, portanto, de direitos e obrigações), olvidando-se que a existência da pessoa política apenas se justifica como meio de atender aos interesses de toda a sociedade.

Não há porque prestigiar, ao arrepio do princípio da função social, os interesses meramente arrecadatórios do Estado, manifestação típica de interesse público secundário, a exemplo do que ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 4.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1993. p. 22.):

"Também assim melhor se compreenderá a distinção corrente da doutrina italiana entre interesses públicos ou interesses primários - que são os interesses da coletividade como um todo - e interesses secundários, que o Estado (pelo só fato de ser sujeito de direitos) poderia ter como qualquer outra pessoa, isto é, independentemente de sua qualidade de servidor de interesses de terceiros: os da coletividade. Poderia, portanto, ter o interesse secundário de resistir ao pagamento de indenizações, ainda que procedentes, ou de denegar pretensões bem fundadas que os administrados lhe fizessem, ou de cobrar tributos ou tarifas por valores exagerados. Estaria, por tal modo, defendendo interesses apenas 'seus', enquanto pessoa, enquanto entidade animada do propósito de despender o mínimo de recursos e abarrotar-se deles ao máximo. Não estaria, entretanto, atendendo ao interesse público, ao interesse primário, isto é, àquele que a lei aponta como sendo o interesse da coletividade: o da observância da ordem jurídica estabelecida a título de bem curar o interesse de todos. Por isso os interesses secundários não são atendíveis senão quando coincidentes com os interesses primários, únicos que podem ser perseguidos por quem axiomaticamente os encarna e representa. Percebe-se, pois, que a Administração não pode proceder com a mesma desenvoltura e liberdade com que agem os particulares, ocupados na defesa das próprias conveniências, sob pena de trair sua missão própria e sua própria razão de existir."

Não se pode, portanto, perder do horizonte tais premissas, sob pena de agredir os fundamentos sobre os quais a ordem jurídica foi erigida.

Se, pois, há de um lado uma pessoa física com direito subjetivo a abater tudo o que depender com sua saúde da base de cálculo do tributo, e de outro o Poder Público, exigindo-lhe o pagamento do imposto a pretexto do descumprimento de obrigações kafkianas (comprovação do pagamento em dinheiro, quiçá mediante a anotação dos números de série de cada cédula de real) e de um apego à forma que raia o cinismo, já que todas as informações a respeito dos prestadores são por eles fornecidas à Receita Federal, que as pode acessar e cruzar os dados.

Ou será que somente lhe são acessíveis os dados para efetuar glosas? Não seria ordinária diligência fiscal cotejar as despesas declaradas pelo contribuinte com as receitas que os prestadores declaram e pinçar-lhes da mesma declaração o supervalorizado endereço?

Tal informação habitualmente sequer consta das emissões eletrônicas. Muitos softwares não consignam o endereço nos recibos eletronicamente emitidos.

Não que o endereço seja insignificante para o documento. Há, porém, excesso de rigor e exagerado apego à forma na exigência de pagamento de imposto em razão da ausência desse elemento, sobretudo porque a fiscalização detém consigo elementos suficientes a promover a complementação; afinal, o prestador é também contribuinte da União e possui junto a ela dados cadastrais que incluem seu endereço, dados estes que estão disponíveis a partir do número do CPF - invariavelmente estampado nos recibos dos profissionais liberais.

O cruzamento sistêmico de dados da contribuinte em poder da Fazenda, ademais, é meio idôneo e necessário a revelar a veracidade das alegações. Aliás, somente a declaração de IRPF dos prestadores, se contivesse - e não contém! - elementos contrastantes com as arguições da contribuinte seria meio hábil a refutá-las.

No magistério de Gilberto Ulhôa Canto, para quem as presunções podem ser erigidas em meio de prova: "As presunções, ao contrário (dos indícios), podem ser adotadas com método perceptivo pelo aplicador da norma, servindo então como critério para entendimento dos fatos tais como eles se apresentam, ou como meio de prova." (in Presunções no Direito Tributário (coletânea), Res. Tributária, 1984, p.6).

É inconcebível que a administração volte as costas aos acontecimentos. Beira o descaro atribuir à falta de endereço a inocorrência do fato, negando ao contribuinte o que lhe é direito apenas para assegurar a arrecadação superavitária que anualmente supera seus próprios recordes.

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*Renato Lúcio de Toledo Lima, advogado sócio do escritório Fernando Corrêa da Silva Sociedade de Advogados

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