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O desajuste da sentença e a fuga ao Judiciário

Muito se decanta em torno da interpretação e da aplicação das normas, a figura do juiz e, conseqüentemente, do Poder do Estado ao qual ele pertence é colocada em absoluta proeminência. Como reiteradamente afirma a doutrina, é do juiz e do Poder Judiciário a palavra final para a materialização e concreção do Direito.

terça-feira, 9 de agosto de 2005

Atualizado às 09:18

O desajuste da sentença e a fuga ao Judiciário


Sílvio de Salvo Venosa*

Muito se decanta em torno da interpretação e da aplicação das normas, a figura do juiz e, conseqüentemente, do Poder do Estado ao qual ele pertence é colocada em absoluta proeminência. Como reiteradamente afirma a doutrina, é do juiz e do Poder Judiciário a palavra final para a materialização e concreção do Direito. A sentença transforma a realidade e o destino das partes. É fato que por tanto tempo essa posição vem sendo repetida, que poucas vezes percebemos que nem sempre essa é a realidade ou que essa não mais é ou deve ser a realidade constante.

Embora tanto se diga em torno de litigiosidade reprimida e de facilitação de acesso ao Judiciário, o que se nota, na contemporaneidade, é a crescente tendência, em alguns segmentos sociais, de evitar tanto quanto possível as cortes estatais. São vários os fatores e as causas que concorrem para isso, não apenas aquela mais apontada, a morosidade do Judiciário. Pode-se aventar que a argumentação das decisões judiciárias não tem sido convincente e adequada. Para essa situação indesejada concorrem a pletora de feitos, o despreparo do magistrado, seu noviciado, inexperiência e insuficiente vivência das questões sociais, sua postura burocrática e por vezes excessivamente conservadora ou sua apatia perante as rápidas transformações sociais e políticas etc.

Todos os que têm contato com o meio empresarial, como os grandes conglomerados que atuam em todo o globo, sabem que a empresa multinacional ou a grande empresa mui raramente se utiliza e se utilizará do Poder Judiciário para suas questões fundamentais, qualquer que seja o país envolvido. Há, na verdade, nesse meio, uma verdadeira idiossincrasia em torno da ação judicial. Não se concebe, por exemplo, que duas marcas famosas de refrigerantes, que se digladiam no mercado mundial, possam litigar em uma corte judiciária uma contra a outra. Não se concebe, da mesma forma, que empresas montadoras de veículos, de atuação mundial, litiguem da mesma forma, assim como laboratórios, grupos financeiros etc. Na verdade, muitas querelas e quesilhas, por vezes de amplo espectro, surgem entre elas: seus advogados simulam com freqüência todas as possibilidades de litígio, que efetivamente nunca vêm a ocorrer.

Há uma razão muito clara para isso. Não fosse a morosidade, imprevisibilidade e vicissitudes da ação judicial, qualquer processo judicial entre empresas desse nível expõe sua marca, deprecia seus produtos e serviços e prejudica a atuação mercadológica de cada uma delas. Por isso mesmo, a razão primeira dessa fuga ao Judiciário é eminentemente mercadológica. Desse modo, podemos afirmar, sem risco de exagero, que as grandes questões jurídico-econômicas de caráter eminentemente privado não são relegadas ao juiz, não formam assim jurisprudência, não vão dar ao Judiciário, que continuará decidindo a respeito de questões de menor grau ou importância para essas pessoas jurídicas. Mas há, efetivamente, outras razões ponderáveis para essa postura, com, por exemplo, retaliação do mercado e vantagem para os concorrentes que não participam da refrega. No entanto, em tantas e tantas questões concretas que enfrentamos envolvendo empresas desse porte, mormente para a situação do direito pátrio, essa fuga ao Judiciário também se revela pela instabilidade de nossos julgados, pela ausência de credibilidade nas instituições políticas, parca confiança no Judiciário, não só de nosso País, diga-se, demora excessiva na decisão final e, fundamentalmente, todas as questões que envolvem esses grandes grupos de produção e serviços trazem matérias que exigem elevado conhecimento técnico e demandam também conhecimentos de macro e microeconomia. Lembre-se do que ocorreu entre nós durante as privatizações, quando liminares impeditivas espocavam em todo o país e o governo federal mantinha procuradores de plantão para cassá-las. Essa situação é exemplo claro que concorre para a incredibilidade do Poder Judiciário.

O juiz togado, mercê da tradição de sua formação e de sua carreira, não está preparado, como regra, para decidir questões de nível técnico e econômico complexo. Se não lhes faltar experiência de vida, o que ocorre com freqüência com os jovens magistrados, falta-lhes experiência e conhecimento dos meandros tecnológicos cada vez mais sofisticados. As perícias técnicas, que funcionam como auxiliar do magistrado, mostram-se cada vez mais inócuas e inconvenientes, para dizer o mínimo. Por mais que os juízes se valham de peritos, numa postura processual que diríamos clássica, o que por si só já retarda o andamento dos processos, as decisões, na grande maioria das vezes serão excêntricas, senão na técnica, nas necessidades de mercado, com repercussões desastrosas para o consumidor, para o nível de empregos e para a economia em geral. O risco, portanto, é de ser proferida sentença desajustada, ainda que toda diligência e técnica interpretativa sejam utilizadas. Em menor grau, o mesmo pode ser aplicado a emotivas decisões em questões de família, que exigem um perfil todo especial dos operadores do Direito, que, antes de serem juristas, devem ser humanistas.

Essa a razão pela qual, de há muito, valem-se as empresas de porte da arbitragem e, antes desta, de uma ampla fase de negociação e conciliação, na qual se busca de todas as formas uma solução para o impasse. Nesse campo, todo contrato ou contratação acima de determinado grau de importância será unicamente objeto de deslinde por árbitros, após as fases antecedentes de solução da pendenga. Nosso país ficou largo tempo marginalizado, excluído da arbitragem, pois no sistema do Código Civil de 1916, embora presente o compromisso arbitral, não se obstava o acesso ao Judiciário. Somente com a Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, o Brasil integrou-se a esse sistema internacional, mercê desse diploma legal que torna compulsória a arbitragem quando convencionada pelos interessados.

Com a arbitragem, as partes têm possibilidade de optar por um tribunal arbitral, que pode estar sediado em qualquer país; portanto uma modalidade de Justiça que acompanha o interesse das partes; escolher árbitros de sua confiança, versados na matéria sob discussão; obter uma decisão rápida e, principalmente, manter a questão em sigilo. Assim, o juiz e o árbitro se postam ambos com intérpretes da norma.

É real que, em princípio, somente questão de direito disponível pode ser submetida à arbitragem, embora apenas mais recentemente venha ela sendo incentivada para ser utilizada por toda sociedade. Não podem ser submetidas à arbitragem as matérias de direito indisponível, como de direito público e as questões de família. Tudo porém aconselha que mesmo essa matéria possa ser submetida à negociação e à conciliação, o que contribuirá em muito para reduzir o excesso de feitos judiciais. Todos sabemos que as questões de família, principalmente envolvendo filhos menores, são trágicas, acarretando mais problemas do que soluções. Nem sempre o juiz tem plena disponibilidade e estrutura para abrir ampla fase de negociação e conciliação, o que requer contato direto com os envolvidos e contínua dedicação. Mas, em princípio, toda questão pecuniária é passível de arbitragem e a decisão arbitral possui a mesma força executória da sentença judicial.

A arbitragem, contudo, representa apenas o ápice do processo que denominamos fuga ao Judiciário. Antes de ser atingida a arbitragem, que é um julgamento, há todo um procedimento, como acentuamos, o qual inclusive antecede às próprias fases de negociação e conciliação. Essas soluções podem e devem ser aplicadas a todos os campos do Direito e, ainda, ser instrumento eficaz para que os menos favorecidos tenham pleno acesso à Justiça. Não apenas os operadores do Direito devem ser envolvidos, mas especialistas auxiliares que se tornam importantes nas fases prévias, como psicólogos, sociólogos, pedagogos, biólogos, biomédicos, cientistas de todas as áreas enfim. Nunca o Direito necessitou tanto de ciências auxiliares como nesta chamada pós-modenidade. Já há experiências positivas neste país em torno da problemática. É fato que não podemos mais assistir inertes à situação de o Judiciário ser o repositório cartorial de todas as querelas da sociedade e, assim, ineficiente, moroso e desacreditado.

Desse modo, há que se entender que existem e devem existir outras formas de concretizar o Direito, desde os conselhos acatados pelas partes em uma pré-negociação, passando pela transação ou acordo que se obtém na conciliação perante conciliadores leigos ou não até a decisão arbitral e a glorificada sentença judicial. Nesse diapasão, negociadores e conciliadores também materializam o Direito, ao obter das partes dissidentes comprometimento e novas regras de conduta. É certo que toda técnica hermenêutica pertence ao especialista, mas não é dado só a ele realizar a justiça em concreto. Cada vez mais que nos conscientizarmos desse fato, mis teremos possibilidade de termos uma sociedade mais justa e menos desigual.

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*Juiz aposentado e advogado





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