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Ilusão norte-americana

É natural que, ante as surpreendentes agressões terroristas, os EUA tenham aumentado o seu apego à democracia e que em grande parte de sua população tenha vingado, por contraste, uma espécie de paradoxal fundamentalismo democrático, até o ponto de considerar sua missão a defesa e a propagação universal.

terça-feira, 13 de maio de 2003

Atualizado às 08:04

Ilusão norte-americana

Prof. Miguel Reale *

Aos Estados Unidos da América somos devedores de fundamentais ensinamentos no que se refere às suas criações no plano político-constitucional, bem como à sabedoria experiencial com que souberam converter os mandamentos legais em realidades concretas.

Em primeiro lugar, foram os chamados fundadores que lograram fundir as idéias ou ideais abstratos de liberdade, igualdade e fraternidade com os fatos sociais, constituindo modelos depois seguidos, mas jamais alcançados, pelos mais avançados povos da Terra. Foram eles que, a partir da reduzida experiência histórica própria, conseguiram conceber novas estruturas políticas, merecendo dentre elas especial referência ao regime presidencial.

Foi o amor à praxe ou, por melhor dizer, o primado conferido à concreção dos fenômenos sociais que tornou possível superar certas perigosas abstrações do iluminismo triunfante no século 18, o que não ocorreu na Revolução Francesa, cujos mentores não souberam prevenir e impedir o trágico advento da época do Terror, com Robespierre à frente.

É estudando a Constituição norte-americana, que com poucas e oportunas alterações vigora há mais de 200 anos, que podemos compreender o que significa para o político ou o jurista o amor facti, a obediência ao valor da concretude, que nos ensina a preservar os mandamentos essenciais, fazendo-se abstração do acessório e secundário.

Pois bem, foram esse estado de espírito e essa metodologia política que caracterizaram a experiência democrática na grande nação do Norte, condicionando um diversificado e livre desenvolvimento cultural, em harmoniosa correlação entre o Estado e a sociedade civil.

Não é surpresa, por conseguinte, que o povo norte-americano haja transformado a democracia em causa ou condição sine qua non de seu incomparável progresso, a salvo das agressões externas.

Compreende-se, desse modo, a perplexidade dessa gente com os trágicos acontecimentos de 11 de setembro de 2001, quando ela julgava poder gozar os merecidos frutos de suas conquistas culturais, e isso logo após o fim da "guerra fria", com o soçobro do totalitarismo soviético, tornando-se os Estados Unidos o único líder inconteste do mundo contemporâneo.

É natural que, ante as surpreendentes agressões terroristas, a prodigiosa nação do Norte tenha aumentado o seu apego à democracia e que em grande parte de sua população tenha vingado, por contraste, uma espécie de paradoxal fundamentalismo democrático, até o ponto de considerar sua missão a defesa e a propagação universal, até mesmo pelas forças armadas, do ideal da democracia em todos os países, quaisquer que possam ser as razões histórico-culturais que se lhe contraponham.

É nesse contexto que, a meu ver, deve ser situado o governo de George W.

Bush, com a sua decisão unilateral de declarar guerra ao Iraque de Saddam Hussein, com apoio do Congresso Nacional e da maioria da população, afrontando as decisões contrárias do Conselho de Segurança da ONU e a opinião pública mundial.

Ninguém contestará que a democracia constitui o regime político mais próprio ao desenvolvimento cultural, no sentido pleno desta palavra, que abrange toda a gama de valores da civilização, do científico ao artístico, do econômico ao estatal, mas não tem sentido pensar que todos os povos do planeta possam ou devam aceitar aquele primado, sem levar em contra outros valores arraigados em sua tradição, como os resultantes da concepção político-religiosa consagrada pelo Alcorão.

Estou convencido de que, se George W. Busch compartilhasse do espírito de realismo e de concretude dos founders, ele teria sabido vencer seu ódio a Saddam Hussein para estudar um pouco a história do Iraque e os valores culturais dominantes em sua gente, há tantos anos reprimidos por aquele déspota. Essa omissão representa um dos riscos, ou melhor, o risco maior que ameaça a vitória militar fulminante da coligação anglo-americana, podendo convertê-la em uma vitória de Pirro.

É que o povo do Iraque, como o do Irã e da grande maioria das nações muçulmanas, não coloca a democracia no topo da pirâmide do poder, e isso não poderia ser ignorado pelo primeiro-ministro Tony Blair, tão longo e poderoso foi o domínio colonial exercido pela Inglaterra.

O risco a que me refiro consiste na possibilidade de ser trocado o tirano Saddam por um aiatolá xiita, tanto ou mais do que ele inimigo declarado dos norte-americanos.

Não é necessário ser especialista em problemas demográficos do Iraque para saber quanto será difícil a missão do general reformado Tommy Franks para obter o apoio da diversificada e complexa população local, e montar um quadro administrativo que possibilite ao governo vitorioso tornar realidade a sua promessa de que não se trata de uma "guerra de ocupação, mas de libertação democrática".

Quanto às camadas populacionais, somente se pode falar com relativa segurança dos curdos, esse povo infeliz que, conformado com a inviabilidade de um Estado próprio, se contenta, por ora, com uma autonomia concedida pelos países em que vive, tratado sempre como corpo estranho.

Como anunciam os meios de comunicação, cresce, dia a dia, a força dos xiitas no Iraque, não somente em virtude de representarem 60% da população, mas também por formarem a tribo mais bem organizada, com chefes de real prestígio como o aiatolá Ali Sistani. São eles que representam o maior poder tribal - cuja existência já é insuperável obstáculo à causa democrática -, como o demonstrou a imensa peregrinação a Kerbala, lugar sagrado dos xiitas, por ter sido nele sacrificado Hussein, neto de Maomé, consagrado fundador da tribo.

Donde poder-se concluir que uma das causas da malsinada Guerra do Iraque foi a ingênua ilusão de que a democracia representaria um ideal universal, capaz de prevalecer entusiasticamente sobre o fundamentalismo islâmico.

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* Jurista, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras, sócio do escritório Reale Advogados Associados.

 

 

 

 

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