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Reale aos 95

Em novembro o professor Miguel Reale completará 95 anos. É um aniversário para ser comemorado. Merece celebração uma vida que tem como uma das suas características essenciais o incessante e criativo exercício da inteligência voltado para o entendimento do mundo e das coisas. É o que sabem os leitores de O Estado de S. Paulo pelos artigos que publica com regularidade neste espaço.

sexta-feira, 4 de novembro de 2005

Atualizado às 11:01


Reale aos 95*


Celso Lafer**


Em novembro o professor Miguel Reale completará 95 anos. É um aniversário para
ser comemorado. Merece celebração uma vida que tem como uma das suas características essenciais o incessante e criativo exercício da inteligência voltado para o entendimento do mundo e das coisas. É o que sabem os leitores de O Estado de S. Paulo pelos artigos que publica com regularidade neste espaço.


Além do seu significado geral para o Direito, a Filosofia e a Cultura, o pensamento de Reale tem uma dimensão específica para as sucessivas gerações dos seus alunos na Faculdade de Direito da USP. É o meu caso, pois fui seu aluno e assistente e tenho hoje, na faculdade, responsabilidades pela disciplina de Filosofia do Direito, da qual foi, durante 40 anos, o atuante professor catedrático, com ampla irradiação nacional e internacional. É neste contexto que evoco, afetuosamente, algo da minha experiência com o abrangente pluralismo dos ensinamentos de um grande mestre.


Conheço o professor Reale desde menino. Meus pais moraram no mesmo quarteirão da
sua residência na Avenida 9 de Julho, e as relações de família numa São Paulo mais pacata eram de boa convivência. Meu pai - seu contemporâneo mais velho na Faculdade de Direito - tinha alto apreço pelas suas qualidades de jurista e meu tio Horácio admirava a amplitude do conhecimento e a penetração de sua indagação filosófica, tendo a ele se associado na criação, em 1950, do Instituto Brasileiro de Filosofia. Favorecido e incentivado por este acesso de base familiar, em 1963, preparando-me para o curso de Filosofia do Direito do ano letivo de 1964, li com cuidado dois dos seus livros que me autografou com palavras de estímulo e confiança: Horizontes do Direito e da História (1956) e Pluralismo e Liberdade (1963).


Em Pluralismo e Liberdade, impactou-me o ensaio em que discute o processo histórico de
integração dos valores da convivência coletiva que fundamentam a democracia, ou seja, o legado da Grécia (a liberdadede pensar como pluralidade de pensar), o de Roma (o papel próprio do Direito), o do cristianismo (a dignidade da pessoa independentemente dos invólucros da cidadania), o do liberalismo(o significado da liberdade individual), o do socialismo (a exigência da igualdade perante a vida). A importância da efetivação desses valores, descortinada por Reale, me ajudou a afirmar, no correr dos tempos, como devem ser encarados na sua indivisibilidade e interdependência, por meio de abrangente tutela dos direitos humanos.


Em Pluralismo e Liberdade, Reale também discute a correlação Direito-poder. O poder,
como diz Bobbio, é um tema que juristas e cientistas políticos compartilham, mas a cujo respeito, regra geral, se ignoram uns aos outros. No seu ensaio, Reale constrói uma ponte entre a teoria jurídica e a política que me influenciou em função da minha recorrente dedicação a esses dois campos de conhecimento. Mostra Reale que não dá para pensar o Direito sem pensar o poder. A criação da norma jurídica representa a escolha de uma diretriz de conduta. É uma opção que requer a interferência decisória do poder para sua efetivação.Não há, no entanto, ato decisório absoluto, não condicionado, em maior ou menor grau, pelo conjunto de fatos e valores prevalecentes em cada conjuntura. É nessa moldura que examina a institucionalização progressiva do poder no mundo moderno, por meio de sua "jurisfação".Esta indica como as lutas sociais e políticas numa democracia se dão no enquadramento jurídico do poder. Em síntese, Reale aponta, por meio do tridemensionalismo jurídico que expunha no seu curso de Filosofia do Direito, as insuficiências tanto do puro decisionismo, ao modo de Carl Schmitt, quanto do puro normativismo à maneira de Kelsen.


Horizontes do Direito e da História recolhe um belo ensaio sobre cristianismo e razão de Estado no Renascimento português. Nele, Reale fez uma leitura de Gil Vicente e
Camões - duas admiráveis figuras da literatura portuguesa sobre as quais escrevi - para discutir como, na expansão ultramarina lusitana, se conjugaram fé e império. Esse ensaio foi a minha primeira aproximação com o conceito da razão de Estado e sua importância para a política externa, com o qual subseqüentemente me confrontei no estudo e na condução da diplomacia brasileira.


Em Horizontes Reale também trata de Grócio, ao mesmo tempo o grande teórico inaugural do Direito Internacional e o elaborador do primeiro tratado autônomo de Filosofia do Direito. O seu ensaio contribuiu para que eu assumisse, com naturalidade, na minha trajetória, na dialética realeana de mútua implicação e polaridade, a convergência dessas duas disciplinas.

Em 1964 o professor Reale me convidou - juntamente com Tércio Sampaio Ferraz Jr. - para igualmente assistir ao curso de pós-graduação que estava dando sobre Vico e Kant. Vico inaugurou uma nova abordagem da História e fez a descoberta conceitual do mundo da cultura, como nos desvendou Reale, destacando a sua originalidade de grande antecipador de novos temas. O Kant que Reale expôs na seqüência foi o da Idéia da História Universal de um ponto de vista cosmopolita e o dos seus desdobramentos
nos escritos kantianos. Foi o meu primeiro contacto com o desafio do uso da razão na abrangente perspectiva da espécie e dos caminhos que a "social insociabilidade" humana abre para o futuro, inclusive na perspectiva da construção da paz. A paz como idéia reguladora da razão inspira minha leitura do que se deve buscar na vida internacional. Devo ao que aprendi com Reale, desde 1964, o empenho em buscar, para favorecer, na fragmentação dos eventos, os sinais premonitórios kantianos, que permitem conjeturar sobre o progresso do gênero humano.
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*Texto publicado no jornal O Estado S. Paulo no dia 16/10/2005
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**Professor titular da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores no governo Fernando Henrique Cardoso







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