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O Direito e a segurança jurídica como fatores preponderantes na criação e desenvolvimento das empresas

Francis Fernandes

O tema abordado nesse trabalho compõe um ponto sensivelmente discutido nos dias de hoje pelos estudiosos das ciências jurídicas e econômicas, e, principalmente por nossos governantes, qual seja, o fato da necessidade de se editar normas claras e, principalmente, que essas normas sejam interpretadas de maneira uniforme, criando, assim, um sentimento de estabilidade, confiança e segurança jurídica para a sociedade.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

Atualizado às 07:36


O Direito e a segurança jurídica como fatores preponderantes

na criação e desenvolvimento das empresas


Francis Fernandes*


O tema abordado nesse trabalho compõe um ponto sensivelmente discutido nos dias de hoje pelos estudiosos das ciências jurídicas e econômicas, e, principalmente por nossos governantes, qual seja, o fato da necessidade de se editar normas claras e, principalmente, que essas normas sejam interpretadas de maneira uniforme, criando, assim, um sentimento de estabilidade, confiança e segurança jurídica para a sociedade.


Torna-se fundamental privilegiar a discussão relativa à importância do direito e da segurança jurídica como fator de estabilidade social, bem como a repercussão de sua existência na decisão de criação de novos negócios ou no desenvolvimento de outros.


Pretende-se aqui focar o direito como ciência cultural e valorativa, a partir da qual são criadas normas de conduta, que objetivam transformar o mundo natural, como é, num mundo melhor ou ideal aos olhos da sociedade.


No entanto, várias são as interpretações dadas à norma jurídica pelo Estado, por meio do Poder Judiciário, já que são derivadas do enfoque de indivíduos que possuem formação humanística distinta, os quais interpretam e aplicam o direito segundo suas convicções e aspirações do que é certo ou errado.


Por outro lado, não se pode esquecer que uma mesma situação de fato pode ser regulada por várias normas, o que também gera dúvidas sobre qual conduta praticada por determinado indivíduo será considerada lícita, ou, ao revés, ilícita.


Esse conflito subjetivo quanto à análise do que determinada norma consideraria certo ou errado, ou, de outro giro, o conflito de normas, gera o que se denominará aqui de insegurança jurídica, situação que se reflete nas decisões dos empreendedores, especialmente no que diz respeito à criação de novos negócios e desenvolvimento de outros já existentes.


Demonstrar-se-á nesse trabalho, por meio de exemplos práticos, que muitas empresas podem deixar de existir e outras de se desenvolver dada a ambigüidade de decisões judiciais acerca de conflitos de interesses praticamente idênticos, situação que pode afligir até o íntimo de indivíduos que atuam na seara jurídica, o que dizer então da opinião dos empreendedores quanto essa incerteza interpretativa.


Fato é que o Poder Judiciário, por meio do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, trabalha no sentido de tentar uniformizar os entendimentos acerca da interpretação das normas jurídicas, mas, como também se verá adiante, está longe de pacificar totalmente as divergências nesse sentido.


O Poder Legislativo vem contribuindo para criar um sentimento de estabilidade normativa, mormente com o advento da Emenda Constitucional 45, a qual previu a criação da súmula vinculante, que, em linhas gerais, possibilita ao Supremo Tribunal Federal padronizar decisões judiciais controvertidas acerca de uma mesma norma constitucional.


Colocadas todas essas considerações, pode-se dizer que o presente trabalho visa demonstrar, de forma concisa e clara, as conseqüências negativas que um ambiente de insegurança jurídica pode gerar às empresas de forma geral, bem como apontar algumas soluções que vêm sendo tomadas pelo Estado no sentido de minorar esse problema.


O direito, a criação da norma jurídica e sua interpretação


Desde os primórdios, a natureza do homem revela que sua sobrevivência só é possível em sociedade, fato que levou Aristótoles a afirmar que "(...) o homem é naturalmente um animal político (...)" (SORMANI, apud ARISTÓTOLES, 2004, p.3).


Necessitando do convívio mútuo para que sua própria vida seja preservada, o homem deve manter certa organização para que essa sociedade não se dissipe, daí a necessidade de criação de regras e sua imposição a todos os membros do ambiente social.


Surge então o direito como fato ou fenômeno social, que tem por objetivo precípuo manter a harmonia em sociedade, como bem expõe Vicente Ráo:


Encontra-se, pois, a origem do direito na própria natureza do homem, havido como ser social.

E é para proteger a personalidade deste ser e disciplinar-lhe sua atividade, dentro do todo social de que faz parte, que o direito procura estabelecer, entre os homens, uma proporção tendente a criar e manter a harmonia na sociedade (RAO, 1999, p. 53).


E o direito, no intuito de materializar sua pretensão de regulamentar o convívio social, serve-se da norma jurídica, que "(...) é a expressão formal do direito, disciplinadora das condutas, (...) (VENOSA, 2003, p.30).


Porém, não é qualquer comportamento humano passível de regulamentação normativa, mas, tão-somente, determinado fato social que demonstre valor expressivo à sociedade na qual ocorreu.


A existência de um fato social relevante, sua valoração pelo direito, bem como a normatização de uma conduta, formam o que Miguel Reale denomina Teoria Tridimensional do Direito, assim especificada por ele:

"(...) onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem técnica, etc.); um valor, que confere determinada significação a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e finalmente uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor (REALE, 1995,p.65).

E, nesse sentido, o valor dado ao fato social é exatamente transportado à norma, como bem exemplifica Venosa (2003): diga-se que exista uma grande quantidade de indivíduos numa sociedade, e que eles não são proprietários de suas casas, então, precisam alugá-las. A quantidade de casas é ínfima e, aumentando a demanda, a tendência do preço do aluguel é de ascensão. O legislador, ciente da vulnerabilidade dos inquilinos, cria uma norma tendente a protegê-los, denominada Lei do Inquilinato.


O que há, em suma, é o fato de que o direito pinça certas condutas relevantes no mundo natural ou real, transportando-as para a forma sob a qual deverão ser realizadas, criando um mundo normativo imaginário, denominado mundo do "dever ser".


Fixando como premissa inicial que o direito é a ciência do dever ser, por intermédio da qual se pode valorar que determinada conduta é lícita e a outra, ao revés, ilícita, o Estado, por meios próprios considerados teoricamente legítimos, tem o poder-dever de dizer que conduta praticada por determinado indivíduo será tolerada pela sociedade.


Contudo, este mister de dizer o direito não se dá aleatoriamente, mas sim por intermédio de descrições legais as quais possam valorar determinada conduta. Consoante preleciona Silvio de Salvo Venosa, a este conjunto de descrições se dá o nome de tipicidade, senão veja-se:

Para atingir esse objetivo do Direito, para que o Direito tenha a certeza de que existe e deve ser cumprido, joga com predeterminações formais de conduta, isto é, descrições legais na norma que obrigam determinado comportamento, quer sob forma positiva, quer sob forma negativa. A isso se dá o nome de tipicidade.

Os fatos típicos existem em todas as categorias jurídicas, notando-se com mais veemência no campo do Direito Penal, direito punitivo por excelência, em que condutas criminosas reprimidas pela lei são por ela descritas. Só há crime se houver lei anterior que o defina.

Contudo, o fenômeno da tipicidade é universal no Direito. No Direito Privado, seus vários institutos são delineados com uma descrição legal. Daí por que a lei define o que é obrigação, o que é propriedade, como se extingue (VENOSA, 2003, p. 32).

Segundo a abalizada tese citada acima, para que uma conduta seja considerada ilícita, seus atos coordenados devem preencher os requisitos contidos em determinado tipo, ou seja, numa descrição predeterminada da atividade humana.


E as normas tipificadas no ordenamento jurídico, com finalidade de regular as ações dos membros da sociedade, são aplicadas e interpretadas pelo Estado, na forma de um Poder por ele constitucionalmente instituído: o Poder Judiciário.


No entanto, por mais transparente que seja a redação de uma norma, ela precisa ser interpretada pelo Poder Judiciário para ser efetivamente aplicada, e, segundo Maria Helena Diniz, são funções da interpretação:

1) conferir a aplicabilidade da norma jurídica às relações sociais que lhe deram origem; 2) estender o sentido da norma a relações novas, inéditas ao tempo de sua criação; 3) dosar o alcance do preceito normativo, para fazê-lo corresponder às necessidades reais e atuais de caráter social (DINIZ, apud MAXIMILIANO, 2004, p.420).

Ora, o interprete/juiz, ao conferir a aplicabilidade da norma, entender seu sentido e dosar o alcance do preceito normativo, executará essa tarefa de acordo com sua formação humanística angariada até aquele momento, pelo que se pode afirmar que, se dois indivíduos analisarem a redação de um mesmo texto legal, na maioria das vezes o entendimento de sua aplicabilidade será distinto.


Isso ocorre porque não existem verdades absolutas, mas sim a verdade como um juízo de valor humano, mutável de acordo com o sujeito cognoscente que o propõe e por seu conhecimento empírico.


Assim, o que é verdadeiro acerca da interpretação da norma depende em grande parte do sentido dado pelo intérprete, pois, como bem já expressou Leibniz, "verdade é a correspondência das proposições que estão no espírito do homem, aquilo que pensamos ou afirmamos em relação às coisas de que se trata" (SOUZA apud LEIBNIZ, 1996, p. 59).


E, em suma, o Poder Judiciário, por meio de seus juízes legalmente constituídos, busca, ao decidir o destino de pessoas e empresas, determinar o que é verdadeiro e legítimo de acordo com a legislação nacional, para, assim, chegar a uma decisão acerca de um caso concreto, a qual, segundo SOUZA (1996), é formada, de um lado, pela prova dos fatos concretos e, de outro, pela adequação à regra jurídica aplicável, sem excluir a incidência das experiências pessoais do julgador.


Por isso pode-se dizer que as diferentes experiências pessoais de vários juízes aplicadas à interpretação normativa, caso a caso, culminam na formulação de decisões judiciais distintas acerca de uma mesma situação de fato.


Essa divergência de entendimentos judiciais, por mais normal e cotidiana que possa parecer aos olhos da comunidade jurídica, cria, para os empreendedores, um ambiente de instabilidade quanto ao que é certo ou errado, tornando-os cautelosos e muitas vezes recalcitrantes em investir seu capital nesse contexto de incertezas, o que acaba por frustrar a criação de novas empresas, bem como o crescimento de outras.


Daí porque será demonstrado, a partir do próximo tópico, de forma prática e efetiva, como o ambiente de insegurança jurídica vivenciado hodiernamente vem afetando a criação e desenvolvimento dos negócios empresariais.


A INFLUÊNCIA EFETIVA DA INSEGURANÇA JURÍDICA NAS DECISÕES DE CRIAR OU EXPANDIR AS EMPRESAS


É sabido que "a atividade empresarial é econômica no sentido de que busca lucro para quem a explora" (COELHO, 2005, p.13).


Visando maximizar o lucro de sua empresa, ou, por outro lado, o preço de suas ações no mercado mobiliário, o empreendedor utiliza como critério decisório dois fatores de extrema importância: o risco e o retorno do capital investido.


No conceito de Lawrence J. Gitman (2005), risco é, fundamentalmente, a possibilidade de perda financeira, enquanto retorno é o ganho ou a perda total sofrido por um investimento em certo período.


E sem qualquer dúvida, os empreendedores/administradores e os investidores do mercado mobiliário avaliam os riscos antes de tomar decisões de investimento, sendo regra que eles "são avessos ao risco. Para certo aumento de risco, exigem aumento de retorno. Geralmente, tendem a ser conservadores, e não agressivos, ao assumir riscos em nome de suas empresas" (GITMAN, 2005, p. 187).


Pode-se exemplificar como fatores de risco analisados para decisão de investimento: a variação da taxa de câmbio, alteração do poder aquisitivo do público consumidor alvo e a ausência ou mudança repentina da legislação afeta ao negócio.


Nesse ponto existe uma ressalva a ser feita, pois, a divergência radical de interpretação da lei, abordada no tópico anterior, equipara-se à própria desregulamentação da matéria tratada, dada a instabilidade como é aplicada a norma, o que culmina na desconfiança perante o ordenamento jurídico.


É justamente o que ocorre no perfeito exemplo dado por Alexandre Sormani, no qual é estabelecido um jogo e uma regra, sendo esta última alterada após o inicio da partida, ao alvedrio de alguns organizadores do evento:

Imagine-se uma competição cuja regra para vencê-la fosse chegar em primeiro lugar na corrida de obstáculos. Se durante a ocorrência do torneio a regra fosse suscetível de alteração, como, por exemplo, considerar o vencedor o último colocado, certamente afetaria a confiabilidade dos competidores na lisura da competição, frustrando-a (SORMANI, 2004, p. 35).

A divergência radical de interpretações judiciais, analisada sob o enfoque do empreendedor, nada mais é do que a alteração sistemática da regra do jogo durante a partida, traduzindo-se no que se denomina aqui de insegurança jurídica.


E nesse cenário, a inexistência da norma quanto ao setor que se quer investir é talvez mais benéfica do que a existência de uma norma interpretada ambiguamente, já que mais vale a certeza do risco radical do que a incerteza da estabilidade superficial.


Para ilustrar o que se está tratando aqui, será tomado como exemplo a regulamentação do setor energético, a qual, em princípio, serviria de norte para decisão de investimento do empresariado nas concessionárias de serviços públicos de energia.


A regulamentação do setor energético tem como marco a Lei número 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previstos no artigo 175 da Constituição Federal.


E se tratando de um serviço público concedido, a concessionária executa-o por delegação do Poder Público e, para tanto, é remunerada por tarifas cobradas dos usuários desse serviço, fixadas nos termos das normas contidas no Capítulo IV da Lei 8.987/95.


O artigo 6º da Lei 8.987/95 estabelece ainda que, no caso de inadimplemento do usuário, o fornecimento de energia pode ser suspenso, nos seguintes termos:

Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.

§ 3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:

I - Motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações;

II - por inadimplemento do usuário, considerando o interesse da coletividade.

Analisando-se a redação da norma acima transcrita, não há como pairar qualquer dúvida acerca da legalidade da suspensão do fornecimento de energia quando verificada a inadimplência do usuário, não se os interpretes da norma resolvessem deixar de lado um outro dispositivo legal, o artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor (Lei número 8.078, de setembro de 19990), que assim estatui:

Art. 22 - Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias, ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Parágrafo único - Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código.

Haja vista a vigência dessas duas normas, instaurou-se um contexto de dúvidas quanto à possibilidade de suspensão do fornecimento de energia aos usuários inadimplentes, derivada das mais diversas interpretações judiciais acerca do tema.


Essa divergência de entendimentos era verificada em todos os graus de jurisdição, como se exemplifica nas duas decisões abaixo, completamente distintas, exaradas no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

MANDADO DE SEGURANÇA - Denegação - Suspensão de fornecimento de energia elétrica no Paço Municipal - Falta de pagamento das respectivas tarifas - Débitos, aliás, objeto de parcelamentos não honrados pela impetrante - Possibilidade da suspensão - Recurso oficial não provido. (TJSP - Apelação Cível n. 60.906-5 - Junqueirópolis - 9ª Câmara de Direito Público - Relator: De Santi Ribeiro - 09.09.98 - V.U.).


MEDIDA CAUTELAR - Liminar - Suspensão - Inadmissibilidade - Fornecimento de energia elétrica à Prefeitura inadimplente - Invocação da exceptio non adimpleti contratus - Não cabimento - Paralisação dos serviços - Medida que causaria irreparável prejuízo à população local - Aplicação, ademais do princípio da continuidade dos serviços públicos - Recurso não provido. (TJSP - Relator: Lair Loureiro - Agravo Regimental em Suspensão de Segurança n. 19.633-0 - São Paulo - 15.09.93).

Mesmo no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a controvérsia se alojou por algum tempo, eis que, até o ano de 2002, alguns Ministros desse tribunal ainda defendiam a tese de que a suspensão do fornecimento de energia não poderia ser efetivada no caso de inadimplemento do usuário, como se passa a demonstrar na decisão abaixo consubstanciada, em que foi relator o Ministro José Delgado:

Não resulta em se reconhecer como legítimo ato administrativo praticado pela empresa concessionária fornecedora de energia e consistente na interrupção do fornecimento da mesma em face de ausência de pagamento de fatura vencida.

A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível sua interrupção (STJ - RESP número 442.814).

No entanto, já a partir do ano de 2003, o Superior Tribunal de Justiça posicionou firmemente seu entendimento no sentido de ser possível a suspensão do fornecimento no caso de inadimplemento do usuário, desde que ele tenha sido avisado com antecedência, como se pode depreender da decisão relatada pelo Ministro Humberto Gomes de Barros:

ADMINISTRATIVO - ENERGIA ELÉTRICA - CORTE - FALTA DE PAGAMENTO - É lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica, se, após aviso prévio, o consumidor de energia elétrica permanecer inadimplente no pagamento da respectiva conta (Lei 8.987/95, Art. 6º, § 3º, II) (STJ - RESP 363.943).

A decisão acima aventada foi prestigiada, posteriormente, por várias outras exaradas na mesma corte, dentre as quais se pode citar as constantes nos recursos especiais números 257.084; 460.271 e 769.456, pelo que hoje se pode afirmar, sem qualquer dúvida, ser entendimento pacífico no âmbito do Superior Tribunal de Justiça a possibilidade do corte de energia ao usuário que não quita suas contas tempestivamente, o que não impede, por outro lado, que qualquer juiz de primeiro grau decida ao contrário.


Em suma: o empresariado do setor, ao tomar sua decisão de investir, não poderia mensurar o grau de inadimplência dos usuários do serviço que prestava, já que o poder judiciário não tinha um entendimento firmado sobre a matéria.


Não se está aqui a defender um entendimento ou outro, o que se quer demonstrar é o quanto essa ambigüidade de interpretações pode ter contribuído para a ausência de investimentos no setor energético, frustrando o desenvolvimento das concessionárias de serviços públicos, a qualidade do serviço prestado, e, por outro lado, o pior: afetando a própria coletividade.


Isso porque, nesse caso, não sabendo o empreendedor se o corte de energia é considerado lícito ou ilícito por nossos tribunais, não pode mensurar o retorno do investimento, o que aumenta consideravelmente o risco do negócio e gera desestímulo de aplicação do capital e frustração na criação e desenvolvimento de novos negócios.


Como se vislumbrou outrora, o risco é basicamente inimigo do investimento estável, e "uma responsabilidade básica dos administradores financeiros é rever e analisar decisões de investimento propostas para garantir que sejam implantadas apenas aquelas que contribuem positivamente para o valor da empresa" (GITMAN, 2005, p. 323).


E o Estado, atentando para o fato dos reflexos negativos dessa insegurança jurídica vivenciada pela sociedade, vem tentando, ao seu modo, minorá-la, e, um grande passo nesse sentido, entende-se, foi a aprovação da Emenda Constitucional número 45, a qual previu a criação da súmula vinculante, que, em linhas gerais, possibilita ao Supremo Tribunal Federal padronizar decisões judiciais controvertidas acerca de uma mesma norma constitucional, em relação a qual se tecerá considerações específicas no próximo tópico.


A EMENDA CONSTITUCIONAL 45 E A SÚMULA VINCULANTE


A Emenda Constitucional número 45, do ano de 2004, por meio da introdução do artigo 103-A, estabelece efeito vinculante para as decisões definitivas de mérito exaradas pelo Supremo Tribunal Federal, por iniciativa dessa própria corte, ou, de outro giro, por provocação dos legitimados no artigo 103, caput, da Constituição Federal, quais sejam: o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, O Governador de Estado ou do Distrito Federal, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, e, finalmente os partidos políticos com representação no Congresso Nacional.


O Supremo Tribunal Federal pode, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria estritamente constitucional, aprovar e revisar súmula que vinculará as demais decisões do Poder Judiciário e a Administração Pública Direta e Indireta, ou seja, esses órgãos do Estado terão que acolher o entendimento da Suprema Corte, não havendo espaço para interpretações divergentes quanto à redação de determinada norma integrante da Constituição Federal.


A súmula objetiva, justamente, declarar a validade, a forma de interpretação e a eficácia de normas constitucionais determinadas, em relação as quais exista controvérsia atual entre órgãos judiciários, ou entre esses e a administração pública, a qual possa acarretar insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.


Salienta-se que o § 3º do artigo 103 da Constituição Federal ainda prevê, de forma concisa, que a decisão judicial ou ato administrativo que se opor a súmula aplicável poderá ensejar reclamação, a ser proposta diretamente no Supremo Tribunal Federal, que, se julgá-la procedente, cassará a decisão judicial ou anulará o ato administrativo.


Veja-se, por oportuno, que o legislador constitucional deu um grande passo no sentido de tentar estabilizar a ordem jurídica nacional, garantindo a segurança jurídica, obtemperando unificar os entendimentos jurisdicionais acerca de questões relevantes para a sociedade.


Utilizando o exemplo outrora firmado, com a edição da súmula vinculante, "não haverá possibilidade de se inverter a regra do jogo durante a partida", ou seja, o empresariado nacional poderá, muito bem, calcular os riscos de investimento do negócio no que diz respeito à sua afetação pelas normas contidas na Constituição Federal, fato que, sem dúvida, gera segurança jurídica e é um claro incentivo ao investimento na criação de novas empresas e desenvolvimento de outras.


Trata-se de passo importante na medida em que, com certeza, gerará ao Poder Judiciário e, acima de tudo, ao Brasil, credibilidade no que diz respeito à estabilidade com que são tratadas as controvérsias sociais nos tribunais pátrios.


Mas, por outro lado, as normas não estatuídas na Constituição Federal não podem ser alvo da súmula vinculante, e continuarão gerando, por certo, os conflitos relativos à aplicabilidade da norma outrora elencados.


CONCLUSÃO


O direito, como ciência integrante do mundo da cultura, surge em determinado momento histórico como um objeto de satisfação da necessidade humana: regular a vida em sociedade e torná-la melhor.


Cria-se, então, a norma jurídica como um mecanismo de alteração da sociedade, que visa transformar, o mundo como realmente é, num utópico mundo ideal.


Mas o que é ideal ou correto está descrito tão-somente nos textos da norma objetiva, tornando-se uma conduta quase impraticável transportar essa ideologia do que é adequado para o mundo do ser, o mundo da realidade.


E essa tarefa árdua, quase utópica, é atribuída ao Estado, que a executa na forma do Poder Judiciário, por meio de homens com visões distintas de mundo e convicções na maioria das vezes opostas em relação ao que é certo ou errado, se interpretado a partir da aplicabilidade da norma jurídica.


Assim é que, num ambiente de incertezas, que o empresariado se vê frente à decisão de investir ou não o seu capital, objetivando maximizar o seu lucro em determinada empresa, ou, por outro lado, aumentar o preço de suas ações.


Nesse sentido, quanto maior o grau de incerteza, ou, como denominou-se aqui, de insegurança jurídica, maior o risco do negócio, e, por conseqüência lógica, a possibilidade de desistência do empresário quanto à decisão de criar ou expandir seus negócios.


A decisão de não investir, gerada pela insegurança jurídica, não afeta somente o empresariado, mas a sociedade como um todo, que padece sob os efeitos do desaquecimento da economia nacional, geradora da recessão e do desemprego.


O Estado, atento a esse ambiente de instabilidade da ordem jurídica, tenta, sob várias as formas, criar mecanismos para retomada da credibilidade nesse sentido, seja por meio do Poder Judiciário, que vem tentando unificar seus entendimentos sobre a interpretação de determinadas normas jurídicas, ou, mais recentemente, por parte do Poder Legislativo, pela criação da Emenda Constitucional 45, da qual se originou a denominada súmula vinculante.


Essas ações podem ser consideradas tímidas num clima de tantas incertezas, mas são bem vindas para a grande maioria de brasileiros que aguardam o crescimento da economia nacional, o qual só pode ocorrer, sabe-se muito bem, de um modo: pela aplicação do capital privado na criação de novas empresas e no desenvolvimento de outras.

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BIBLIOGRAFIA


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DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 16. Ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

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SORMANI, Alexandre. Inovações da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004.

SOUZA, Carlos Aurélio Mota. Segurança jurídica e jurisprudência: um enfoque filosófico - jurídico. São Paulo: LTr, 1996.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 3. Ed. São Paulo: Atlas, 2003.

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Advogado do escritório Demarest e Almeida Advogados.










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