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Valor do novo Código Civil

Os preconceitos têm mais força do que se pensa, como o demonstra o descabido julgamento de um escritor que eu julgava sensato, por escrever, de modo geral, sobre o que sabe ou procurou saber. Refiro-me a um acadêmico que, sem razão e fundamento, se considerou habilitado a escrever, em artigo no Jornal da Tarde, com todas as letras, o seguinte: "O próprio novo Código Civil, que envelheceu e em parte caducou durante o quarto de século que levou tramitando pelos escusos labirintos do Congresso, abre novas e temíveis brechas para a ampliação do arbítrio irresponsável dos aristocratas nacionais."

terça-feira, 28 de outubro de 2003

Atualizado em 27 de outubro de 2003 07:06

Valor do novo Código Civil

 

Prof. Miguel Reale*

 

Os preconceitos têm mais força do que se pensa, como o demonstra o descabido julgamento de um escritor que eu julgava sensato, por escrever, de modo geral, sobre o que sabe ou procurou saber. Refiro-me a um acadêmico que, sem razão e fundamento, se considerou habilitado a escrever, em artigo no Jornal da Tarde, com todas as letras, o seguinte: "O próprio novo Código Civil, que envelheceu e em parte caducou durante o quarto de século que levou tramitando pelos escusos labirintos do Congresso, abre novas e temíveis brechas para a ampliação do arbítrio irresponsável dos aristocratas nacionais."

 

Se a ofensa atingisse apenas a mim pessoalmente, seguiria o ensinamento de Dante: "Non ti curar di lor, ma guarda e passa." Mas ela atinge também quatro insignes juristas falecidos que compuseram comigo a Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil, assim como o Congresso Nacional e a própria comunidade brasileira, o que explica este, para mim, desagradável revide.

 

É claro que jamais considerei o novo Código Civil isento de críticas judiciosas, pois não pode jamais ser considerada perfeita uma obra de tamanha relevância, mas, a esta altura dos acontecimentos, já houve o pronunciamento favorável de jurisconsultos que têm competência para fazê-lo.

 

À vista do ocorrido, sou obrigado a fazer referência a uma obra de 1.423 páginas, intitulada O Novo Código Civil, publicada em minha homenagem, por iniciativa e coordenação de três ilustres ministros de nossos tribunais superiores, Domingos Franciulli Netto, Gilmar Ferreira Mendes e Ives Gandra da Silva Martins Filho. Nesse livro, editado pela LTR, os coordenadores escreveram: "Uma obra de tal envergadura não poderia, como é óbvio, deixar de receber críticas, daqueles que a tiveram como tímida, onde foi cautelosa, e a reputaram revolucionária, onde foi inovadora. Mas as críticas, quando construtivas, são algo que naturalmente se espera, pois toda obra humana está marcada pela imperfeição dos seres falíveis que somos. E um Código da envergadura deste não poderia estar infenso a defeitos e imperfeições tópicas."

 

Como exemplo da opinião dos 65 colaboradores, seja-me permitido transcrever o que escreve o insigne jurista Arnoldo Wald, que assim se pronuncia:

 

"Podemos afirmar, assim, que está ultrapassada uma fase do direito comercial que fazia prevalecer sempre a vontade e o interesse dos detentores do capital. Na nova fase, que se inicia com o Código Civil, instituiu-se uma verdadeira democracia empresarial que deve corresponder à democracia política, vigorante em nosso país, substituindo-se o poder arbitrário do dono da empresa por um equilíbrio que deve passar a existir entre as diversas forças que cooperaram para a realização das finalidades empresariais."

 

Quanto ao "quarto de século que o Código levou tramitando", qualquer pessoa de bom senso há de reconhecer que houve permanente atualização da nova Lei Civil, ao receber o projeto emendas, primeiro, na Câmara dos Deputados, depois no Senado Federal, com retorno final à Câmara, onde se acolheram correções e sugestões enviadas pelas principais instituições jurídicas nacionais.

 

Na Câmara dos Deputados foram apresentadas nada menos que 1.056 emendas, muitas delas repetidas ou sem manifesta razão de ser. Apresentados os relatórios parciais pelos deputados então nomeados, coube a Ernani Sátyro a elaboração do relatório-geral, obra concisa, mas de grande valor, que justificou sua aprovação pela Câmara.

 

Em 1984, no Senado Federal foram apresentadas 366 emendas, merecendo referência especial as de autoria do senador Nelson Carneiro, porquanto elas iam servir de base para as profundas alterações introduzidas pela Assembléia Nacional Constituinte na matéria de Direito de Família.

 

Foi, aliás, em virtude dessa assembléia que o Senado houve por bem suspender a tramitação do projeto de Código Civil, na expectativa de relevantes mudanças no ordenamento jurídico nacional. Na realidade, foi só no atinente à Família que se deram alterações de fundo.

 

Retomados os trabalhos legislativos, foi nomeado novo relator-geral o saudoso senador Josaphat Marinho, a cujos méritos de grande jurista se deve a aprovação do projeto na Câmara Alta, a qual se louvou no seu parecer final para fazê-lo. Retornou, então, o projeto à Câmara dos Deputados, à vista das modificações nele introduzidas pelo Senado.

 

A apreciação final da matéria, em virtude da Resolução n.º 1 de 2000, que reformou o Regimento Comum do Congresso Nacional, foi feita pelas Comissões de Constituição de Justiça tanto da Câmara dos Deputados como do Senado Federal. Nessa ocasião, houve novas manifestações não somente de operadores do Direito como de entidades de classe, o que demonstra o cuidado de ajustar cada vez mais a lei aos interesses da coletividade.

 

Só então é que o projeto foi submetido à sanção do presidente Fernando Henrique Cardoso, que o sancionou, promulgando a Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que entrou em vigor em 11 de janeiro do corrente ano, sendo objeto de minuciosos comentários que têm sabido reconhecer o valor da nova Lei Civil, por sinal que já altamente elogiada pelo Simpósio Internacional realizado em Roma em janeiro deste ano.

 

Nesse certame, com representantes da Itália, de Portugal e do Brasil, foi reconhecida a posição pioneira do Código Civil Brasileiro, ao estabelecer, no artigo 421, que "a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato".

 

Foi longa, em verdade, a tramitação legislativa do projeto de Código Civil, submetido ao Congresso Nacional em 1975, mas não houve oportunidade perdida no sentido de aperfeiçoá-lo para disciplinar as relações das pessoas naturais e jurídicas.

 

Seu grande mérito foi proceder à revisão do código anterior, preservando, na medida do possível, o imenso acervo de doutrina e de jurisprudência acumulado durante 84 anos de vigência. Isso sem prejuízo da necessidade de atender a novos valores sociais e econômicos, superando-se a mentalidade individualista que presidira à legislação de 1916.

 

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* Jurista, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras, sócio do escritório Reale Advogados Associados.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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