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Um intelectual de coragem

Lembramos ontem o aniversário de Ruy Barbosa, nascido em 5 de Novembro de 1849. Por um acaso significativo, festejamos no dia 6 de novembro os anos de mestre Reale, como Ruy um intelectual militante e combatente.

quinta-feira, 6 de novembro de 2003

Atualizado às 08:44

Um intelectual de coragem

 

Gilberto de Mello Kujawski*

 

Que Miguel Reale é uma das inteligências mais completas do Brasil todos nós sabemos. Filósofo (em primeiro lugar), fértil em contribuições originais para o pensamento, bastando citar seu livro "Verdade e conjectura", professor com a vida inteira dedicada ao magistério, jurista que imprimiu sua marca no novo Código Civil, administrador de visão larga, como provou na reitoria da USP, Miguel Reale está consagrado, nacionalmente e internacionalmente, por sua gloriosa trajetória intelectual.

 

Para não recair no óbvio, preferimos escrever aqui sobre o caráter de Reale, centrado firmemente na virtude da coragem. Quem lê seu livro de memórias acompanha, passo a passo, a luta titânica do autor para conquistar o lugar que hoje ocupa na galeria das personalidades mais significativas do nosso país. Coragem moral mista de coragem física no desafio diuturno à parede formada pelos alunos, que o impediam de dar aula, depois que ganhou a cátedra de Filosofia do Direito, na velha Faculdade do Largo de S.Francisco. Dia após dia, com a classe sabotando seu uso da palavra, abandonando a sala, vaiando, motejando, e o professor impávido, enfrentando a massa dos acadêmicos rebeldes com a firmeza de um romano da República e o rosto moldado em bronze, como um escudo. Custou, mas ele venceu a guerra. Passados os anos, os líderes daquele resistência obtusa e irracional fazem parte de seu círculo de amigos, perdoados e aceitos com magnanimidade.

 

A coragem não é virtude comum nos intelectuais. Nem todos eles imitam Sócrates, que assumiu sua condenação à morte para não contrariar a lógica da polis, recusando-se a fugir da cicuta, embora não lhe faltassem oportunidades. O intelectual é muitas vezes covarde. E costuma reagir contra a covardia, sonhando com todo tipo de ações violentas contra a ordem constituída, apoiando o terrorismo, as guerrilhas, os atentados contra a segurança pública, da mesma forma que a pessoa tímida entra em euforia ao assistir filmes de violência na tranqüilidade de sua casa.

 

Se a coragem marca a conduta de Reale em todos os níveis, isso é sinal de que para ele a relação com as idéias não se limita à mera contemplação, à teoria desligada da prática. Reale sabe melhor do que ninguém que as idéias são propostas para a transformação das coisas, e exigem coragem para serem aplicadas e concretizadas na ordem institucional, jurídica, moral e política.

 

Sua coragem política é conhecida. Não hesitou em cerrar fileiras com o integralismo, quando este se apresentava como uma proposta de transformação orgânica do nosso país. E, sobretudo, não recuou depois, quando passou a ser cobrado pela sua militância num movimento classificado, geralmente, como fascista. Reale não teme passar pelo que ele não é, para afirmar-se como o que ele é autenticamente. Com imperturbável tranqüilidade, demonstra por a + b que a aparência fascista do integralismo não passou disso mesmo, uma aparência condicionada pelo contexto político da época. Sua vocação democrática resiste a todas as difamações e injúrias que lhe são disparadas, em parte por má informação, em parte por pura má-fé.

 

Alguém escreveu que existe uma coragem do escritor frente ao papel. É a coragem intelectual, da qual Reale sempre soube dar prova, desafiando nossa pasmaceira ideológica, dominada pelo sub-positivismo e pelo sub-marxismo, com suas colocações de vanguarda, contribuindo para superar o fácil maniqueísmo das teses que se contrapõem, e se excluem em caráter irredutível, pelo espírito flexível da conciliação e da complementaridade, que é uma de suas idéias chaves juntamente com a tridimensionalidade (fato, valor e norma) no campo da filosofia do direito.

 

A coragem de Reale raiou pela temeridade ao fundar em São Paulo, há cerca de 50 anos atrás, o Instituto Brasileiro de Filosofia e a Revista Brasileira de Filosofia, isso num Brasil tido e havido como totalmente estranho à especulação filosófica, acreditando-se, falsamente, que o brasileiro é inepto para o pensamento, e que no passado brasileiro nunca houve filósofos, nem interesse pela filosofia. Reale desmentiu em cheio essa lenda emanada da ignorância, estudando e reeditando as obras de um Tobias Barreto, um Farias Brito, no século XIX, e um Vicente Ferreira da Silva, no século XX, provando que existe em nossa terra sólida tradição filosófica.

 

Lembramos ontem o aniversário de Ruy Barbosa, nascido em 5 de Novembro de 1849. Por um acaso significativo, festejamos no dia 6 de novembro os anos de mestre Reale, como Ruy um intelectual militante e combatente, que fez da sua coleção de idéias liberais uma trincheira de combate diuturno contra as forças do obscurantismo intelectual, político, moral e jurídico, antecipando o perfil de Reale, misto raríssimo de intelectual e homem de ação, como temos poucos em nossa galeria de celebridades.

 

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* Gilberto de Mello Kujawski é membro do Instituto Brasileiro de Filosofia, colaborador assíduo dos jornais O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde, e autor de vários livros de filosofia, entre os quais "Idéia do Brasil", "O Ocidente e sua sombra" e "Império e terror".

 

 

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