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A solidão da justiça

O Governo, não faz muito, impôs uma dieta não demasiadamente severa ao Judiciário mas o suficiente para ouvi-lo reclamar de anemia. Os Presidentes dos Tribunais, que pouco entendem de nutricionismo, reivindicam mais e mais suprimentos para cumprir as suas metas de modernização, abrangência e celeridade, sem perceber a silhueta, antes esbelta, mas hoje disforme pela gordura e decrepitude daquela mulher ainda tão cobiçada de vendas nos olhos.

terça-feira, 26 de junho de 2007

Atualizado em 25 de junho de 2007 14:22


A solidão da justiça

Francisco de Assis Chagas de Mello e Silva*

O Governo, não faz muito, impôs uma dieta não demasiadamente severa ao Judiciário mas o suficiente para ouvi-lo reclamar de anemia.

Os Presidentes dos Tribunais, que pouco entendem de nutricionismo, reivindicam mais e mais suprimentos para cumprir as suas metas de modernização, abrangência e celeridade, sem perceber a silhueta, antes esbelta, mas hoje disforme pela gordura e decrepitude daquela mulher ainda tão cobiçada de vendas nos olhos.

Não foram os magros recursos que a tornaram irreconhecível, mas a inércia, a opulência, a má nutrição. Para ela construíram palácios, vestiram-na de seda e de ouro, deixando de lado o essencial. Há muito, a Justiça não toma um banho, não se exercita, não lê um bom romance e, por isso, não se renova e não se embeleza. Ao contrário, entopem-na, os seus agentes e executores, de códigos de processo, de leis de toda a ordem, geralmente desnecessárias e muitas vezes obtusas, de doutrinas maçantes, prolixas e inteiramente supérfluas. Ou seja, a Justiça, ultimamente, só come porcaria.

Assim, esqueceu que para cumprir o seu papel neste mundo deve retornar para a morada da simplicidade, do asseio e da compostura. Pode ser que lá, em algum local próprio para o retiro do espírito, a Justiça renove os seus votos de virtude, relembre o propósito de sua existência e compreenda que a sua única obrigação é dar a cada homem, independentemente de quem seja e dos títulos que ostente, o direito e o dever de colher nesta terra o fruto que semeou.

Embora muitos juristas abnegados e de indiscutível talento a ajudassem, no princípio, a alcançar, tecnicamente, o seu objetivo mediante o desbravamento dos caminhos, a criação de alternativas, a superação dos obstáculos de toda a sorte, a interpretação dos textos, o afastamento das inconsistências, tudo no intuito de aperfeiçoar a aplicação da sua inestimável tarefa, o excesso de preceitos virou a Justiça de pernas para o ar.

Tanto lhe ensinaram, tão refinados e complexos se tornaram os seus curadores, que o aprofundamento do preciosismo processual e doutrinário transformou-se para ela em anabolizante agônico e desestabilizador. Os esteróides do tecnicismo tiveram o condão de não apenas afastá-la do rumo em passo trôpego e em absoluto desequilíbrio, como também a fizeram esquecer a própria identidade. A Justiça não mais se reconhece e nem aqueles que, infelizmente, vez por outra nela tropeçam.

O atual estado de estupor da Justiça tem cura se acaso ela vier a se sujeitar aos rigores do tratamento para sua reabilitação: abstinência total de ingestão suplementar de medidas provisórias, leis, decretos, códigos de processo e doutrina; terceirização da maior parte das suas atividades para as Cortes de Arbitragem; reler Dostoievsky, Balzac, Shakespeare, Machado, Eça, Aristóteles, Tomás de Aquino, Kant; correr nas areias de Copacabana, no Parque do Ibirapuera, nos lençóis maranhenses, no planalto dos candangos, na Chapada dos Guimarães, correr, correr, correr, o suficiente para, enfim, ter fôlego para subir as ladeiras dos morros cariocas, trafegar pela periferia das grandes cidades, pelos campos dos agricultores descalços e pelo árido solo dos sertanejos.

No momento a Justiça está só. Depois de ter percorrido todos os tribunais do país, involuntariamente incógnita, sumiu para lugar incerto. Alguns magistrados, aqui ou acolá, puderam reconhecê-la mesmo com dificuldade, por outros passou despercebida, a maioria sequer logrou enxergá-la. No Supremo, há quem diga que a Ministra Ellen Gracie, por um breve instante, ao vê-la cerrou as sobrancelhas como querendo lembrar (...), mas qual, a memória lhe fugiu e logo voltou para os afazeres da Presidência.

Parece ter sido esta a última aparição da Justiça. Entretanto, há quem afirme tê-la visto à noite em uma modesta manjedoura no interior do Brasil, adormecida e de mãos postas, como se o sono a tivesse alcançado em meio a uma prece.

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*Advogado do escritório Candido de Oliveira - Advogados

 

 

 

 

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