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Advogado do Diabo: Profissão de fé

Muitos já devem ter notado, advogados ou não, que não raramente, à falta de outra ofensa à mão, nós, advogados, somos jocosa e pretensamente ofendidos só com o fato de sermos... advogados. Basta uma discussão acirrada, a perda da esportiva do interlocutor, e logo vem o ataque: "advogado!".

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Atualizado em 25 de outubro de 2007 07:13


Advogado do Diabo: Profissão de fé

Mário Gonçalves Júnior*

Muitos já devem ter notado, advogados ou não, que não raramente, à falta de outra ofensa à mão, nós, advogados, somos jocosa e pretensamente ofendidos só com o fato de sermos... advogados. Basta uma discussão acirrada, a perda da esportiva do interlocutor, e logo vem o ataque: "advogado!".

À boca pequena, nas rodas de amigos e até no seio das próprias famílias, não falta quem nos discrimine, como quem só cumprimentaria o advogado com luvas de borracha. O anedotário popular está cheio de caricaturas sobre nossa profissão: de esperto, ladrão mesmo, a mercenário. Somos, nesse álbum das caricaturas, gêmeos quase univitelinos dos judeus.

Esse ranço sociológico tem, certamente, forte contribuição, principalmente, do ofício de "advogado do diabo".

A expressão "advogado do diabo" consagrou-se no imaginário popular por herança histórica desse ofício, com as distorções, claro, que a tradição entre várias gerações invariavelmente agrega ao modelo original. É utilizada para designar, genericamente, "aquele que defende uma proposta contrária à do interlocutor para testar sua firmeza e convicção". Existiu nos processos de canonização da igreja católica, onde havia um "Promotor da Fé" ("Promotor Fidel", do latim) e, como oponente, o "advogado do diabo" (também do latim, "advocatus diaboli"), ambos os papéis desincumbidos por advogados designados pela própria igreja. Ao Promotor cabia a defesa da canonização; ao advogado do diabo, impedi-la, mediante exploração do ceticismo, busca de brechas do processo que revelassem falsidade nos milagres atribuídos ao candidato a santo. Esse ofício, de advogado do diabo, foi instituído em 1587 e abolido pelo Papa João Paulo II em 1983 (portanto, não faz muito tempo).

De origem latina, a etimologia do nome da profissão vem de "ad vocare", que, traduzido livremente, significa "chamar para junto". Há derivação de outra expressão latina, "ad vocatus", que significa protetor, patrono.

As pessoas geralmente não compreendem --- ao contrário, têm raiva, repulsa --- os deveres de sigilo e de lealdade do advogado com seus clientes. Imaginam que isto só é possível, ao menos para boa parte dos advogados, à custa de despudor ou de falta de escrúpulos pessoais. A maioria não sabe, ou não imagina, ou não quer sequer cogitar, o sofrimento íntimo que às vezes pode assaltar o espírito do advogado na preservação desse dever de sigilo e lealdade ao constituinte. E é com essa imagem errada sobre o cumprimento dos deveres da advocacia que os incultos ou ignorantes imaginam ofender o advogado conhecido, com a jocosidade a que me referia no início, pensando atingir ferida que nós, advogados, nem temos.

Ainda assim deve incomodar-nos, advogados, essa dificuldade insuperável dos leigos em entender a dignidade da profissão e ainda estigmatizá-la. Se, quando se está doente, vale o agradecimento pela pílula e ao médico; se, quando se está perdido, sorriem à boa informação... Será que só os "outros", ou os "maus", precisarão um dia de defesa?

O senso comum é arrogante. Só os outros erram. Ou, pelo menos, os erros alheios são sempre mais graves que os próprios. Mas ainda quando os outros não errem, a própria sorte é sempre mais bem-aventurada do que a deles: injustiças nunca recairão sobre as próprias cabeças.

A profissão de advogado deve ser a mais, ou dentre as mais, incompreendidas para os arrogantes, infalíveis e puros de nascença, e, paradoxalmente, balsâmicas para os que se experimentam a condição de "acusados". Nem o padre, nem o psicanalista, nem o colo de mãe. Nada transmitirá segurança, ou a mínima esperança palpável, do que a de um bom advogado quando o problema é da sua alçada técnica resolver. Mesmo assim, em tempos de paz a maioria pragueja contra o advogado, ainda que nenhum da espécie lhe tenha feito mal algum.

Se a palavra humana prescindisse de garantias legais, se o ser humano fosse perfeito, realmente seríamos meros oportunistas. Do mesmo modo que não precisaríamos de médicos se fôssemos imortais, ou de carteiros, tivéssemos todos o dom da telepatia.

Ainda assim, persevera a caricatura do advogado, cravada na mente coletiva, e por melhores e óbvios que sejam os argumentos dignificantes, provavelmente ela atravessará, ainda, muitas gerações. De tal sorte que nessa disputa entre quem nos defende (promotor da fé) e quem nos acusa (advogado do diabo), vença, esquisitamente sempre, o advogado, o advogado do diabo, qual uma maldição (da incompreensão, do ceticismo).

Por que a doméstica, ou, sei lá, o professor, não carregam esse estigma, útil até num entrevero de vizinhos? "De você eu não poderia esperar nada melhor, afinal você é um professor, não é mesmo?"

A matéria-prima fundamental do advogado, ao contrário do imaginário popular, não é a mentira, ou a "arte de mentir". É o dever de sigilo e fidelidade com o cliente. A lei não permite ao advogado atuar contra os interesses de quem (o pleonasmo é proposital) defende. Menos ainda que revele do que soube por intermédio do seu cliente ou do exercício profissional, no silêncio do seu recanto de trabalho ou em qualquer lugar. Esse dever, que tem muito de sacrossanto, porque inviolável, rende-nos, todavia, a feição de demônios, desonestos. Para alcagüetar, ninguém precisa de "defesa", mormente se for contratada e paga: que estupidez seria, ninguém jamais assinaria um contrato insano desses.

Quando erramos, e sabemos que erramos, é a Deus que (os crentes) rogam misericórdia, porque identificam a misericórdia como uma característica que só pode ser divina porque depende de perfeição. Já a misericórdia do advogado é identificada com o diabo, e é culpado o advogado fiel.

Se a sociedade quiser o fim da profissão, então talvez esse fosse um meio eficaz, rápido, de se banir o estigma. Bastariam algumas dezenas de inocentes condenados por falta de defesa, ou mesmo de culpados que, por não terem quem tecnicamente fale em seus nomes, acabem pagando mais do que devem. Quem sabe então, assim, praguejariam contra Deus (a arrogância humana invariavelmente busca algum culpado exterior). Porque o diabo (ou melhor, o seu advogado) seria a única salvação.

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* Advogado do escritório
Demarest e Almeida Advogados












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