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O Dia Seguinte

Fincar-se num ponto, acreditando só nas mesmas coisas, recitando um mantra que de tão antigo ninguém mais aguenta, é enxergar a praça vazia garantindo silêncios e, por isso, achar sempre que as veias nunca sangrarão.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Atualizado em 14 de janeiro de 2009 14:21


O Dia Seguinte

Edson Vidigal*

Fincar-se num ponto, acreditando só nas mesmas coisas, recitando um mantra que de tão antigo ninguém mais aguenta, é enxergar a praça vazia garantindo silêncios e, por isso, achar sempre que as veias nunca sangrarão.

Sangram, sim.

E se sangram as veias que oxigenam as pulsações da credibilidade e do respeito é colapso, é o sucesso da incapacidade, a vitória do marasmo, a consagração do despreparo, o triunfo das nulidades, a glória momentânea dos deslumbrados.

Veja só como estão abertas, hoje até mais que ontem, e lembrando Galeano, sangrando, e como sangram, essas veias abertas da América Latina. Só que isto aqui, amiga, amigo, é Brasil, é Maranhão, não é apenas um pouquinho de América Latina. É desafio de revolução.

Por aqui ainda vicejam realidades tristes e revoltantes que só nos envergonham. Mas que nos mantém nos compromissos e nos incitam à ação.

Como justificar que num Estado tão rico em suas potencialidades ainda haja tanta pobreza esparramada, a não ser aceitando como verdade a única constatação possível, essa de que os cenários tristes resultam mesmo é da indiferença, que é tanta, e do abandono, que chega a ser doloso.

Estou aqui entre dois calendários. Reluto em jogar fora a coletânea dos dias e meses do ano que passou.

Ensaio uma sinfonia na tecla de retrocesso da digitação mental, revendo em cenas rápidas um pouco do tudo que passou, e nem bem ainda passou.

Só a lembrança de que as pessoas nos espaços-chaves ainda são as mesmas, e elas parecem não estar nem aí para as inspirações criadoras, só essa certeza de que será ainda esse mesmo espetáculo com essas mesmas figuras decadentes de roteiros ultrapassados, isso por si só me causa um misto de náuseas e de medo. E me faz sentir revoltado, muito revoltado.

Os compromissos assumidos, as bandeiras desfraldadas, as vibrações sonantes nas esperanças despertadas, as energias dos jovens que erguendo os braços nas passeatas e palanques mais pareciam empunhar com mãos firmes as emoções coletivas de um único coração, o coração do Povo, e as promessas que tocavam a todos no interesse de todos, então isso tudo que aconteceu, nas jornadas antigas e nas jornadas de agora há pouco, isso tudo vai continuar sendo para que?

Não estamos sabendo nos aperceber das enormes possibilidades com que, mesmo com essas veias abertas, as certezas de cada dia nos instigam e nos acenam. Falo assim no plural só para me incluir. É que eu também, embora imobilizado, sou parte nesses compromissos, nessas promessas, nessas responsabilidades.

Se cada um de nós ceder ao demônio, pelo menos, um pouco mais da metade do que temos sido em soberba, ineficiência, incompreensão, egoísmo e projeto político pessoal, Deus nos recompensará.

Se cada um de nós se dispuser a viver todo dia do ano novo cumprindo os compromissos, realizando as promessas, buscando a compreensão, reagindo à intolerância, praticando a caridade, sendo generoso, querendo a bondade, nossa alma rejuvenescerá.

Se cada um de nós trabalhar, e até lutando contra si próprio, para que as coisas aconteçam assim, nunca nos desprendendo da coragem com que devemos cumprir as promessas, jamais renunciando à nossa fé, seremos pessoas melhores.

E nos sentindo verdadeiramente assim, melhores, estaremos aptos a melhorar o mundo. Então, o Povo nos reconhecerá.

E, assim, conscientes da missão, estaremos mais leves e mais felizes quando nos depararmos com a certeza, como esta de agora, de que o calendário já é outro, de que não adianta querer ficar se agarrando ao que passou, lamentando, deplorando.

Temos que insistir com essa certeza de que o mundo aqui pelas nossas paragens não acabou, nem está para acabar. Nunca irá acabar. Mas se acabar, amiga, amigo, não tem problema. Haverá o dia seguinte.

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*Ex-Presidente do STJ e Professor de Direito na UFMA





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