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O livre-arbítrio dos fumantes como causa de exclusão da responsabilidade civil dos fabricantes de cigarros

Paulo Couto e Eliane Leve

A jurisprudência nacional tem maciçamente rechaçado as ações indenizatórias em que os fumantes, ex-fumantes ou seus familiares tentam obter dos fabricantes de cigarros indenizações pelas doenças que imputam ao fumo. Em quase quinze anos de litígio, mais de 500 ações foram ajuizadas contra os fabricantes de cigarros. Dessas, mais de 350 contam com decisões rejeitando as pretensões indenizatórias, sendo 247 decisões definitivas. Há 12 decisões em sentido em contrário, todas pendentes de recurso. Todas as decisões definitivas já proferidas pelo Judiciário brasileiro rejeitaram demandas dessa natureza.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Atualizado às 08:55


O livre-arbítrio dos fumantes como causa de exclusão da responsabilidade civil dos fabricantes de cigarros

Paulo Rogério Brandão Couto*

Eliane Leve**

A jurisprudência nacional tem maciçamente rechaçado as ações indenizatórias em que os fumantes, ex-fumantes ou seus familiares tentam obter dos fabricantes de cigarros indenizações pelas doenças que imputam ao fumo. Em quase quinze anos de litígio, mais de 500 ações foram ajuizadas contra os fabricantes de cigarros. Dessas, mais de 350 contam com decisões rejeitando as pretensões indenizatórias, sendo 247 decisões definitivas. Há 12 decisões em sentido em contrário, todas pendentes de recurso. Todas as decisões definitivas já proferidas pelo Judiciário brasileiro rejeitaram demandas dessa natureza.

Em todos os tribunais do país, inclusive no TJ/RS, conhecido por suas posições de vanguarda, prevalece o entendimento de que essas demandas são improcedentes, ao contrário da percepção que, às vezes, é transmitida pela mídia. Naquele Tribunal específico, foram proferidos 24 acórdãos favoráveis à indústria e apenas 6 contrários, que pendem de recurso.

Uma das principais razões para a improcedência desse tipo de demanda, além da ausência de defeito no produto e demais elementos necessários para a configuração do dever de indenizar é, sem sombra de dúvidas, o livre arbítrio. Parte do senso comum, a noção de que a pessoa fuma porque quer, ciente dos riscos envolvidos, já que esses riscos são universalmente conhecidos, para não dizer intuitivos. Se é assim, nada mais justo que o próprio indivíduo responda pelas eventuais conseqüências indesejáveis (mas previsíveis) da sua escolha.

Ainda que o fumante não tenha desejado adoecer em razão do fumo (ninguém o deseja), é certo que assumiu esse risco e com ele anuiu a partir do momento em que acendeu o seu cigarro. Infelizmente não é possível apartar o risco do produto, já que ele o integra.

Citando Aguiar Dias, Teresa Ancona Lopez refere que a assunção de risco pelo fumante "é semelhante ao que sucede com o dolo eventual. Diríamos nesse caso que o consumidor de tabaco assume o risco de produzir determinado resultado, embora diretamente não o queira. O fumante quer o prazer, não os possíveis danos que, tendo em vista todas as circunstâncias, advenham. É o mesmo que passar no farol fechado sem olhar para os lados".1

Em razão de estar naturalmente associado a riscos para a saúde, o cigarro é um produto de periculosidade inerente (art. 8º, do Código de Defesa do Consumidor - clique aqui). Assim como o cigarro, muitos outros produtos apresentam essa característica, podendo-se citar as bebidas alcoólicas, os alimentos gordurosos, o chamado "fast-food", o sal, os medicamentos e tantos outros.

Uma vez conhecida a natureza de tais produtos, os danos porventura experimentados pelos consumidores em virtude da sua periculosidade inerente não podem ser imputados ao fornecedor. Conforme explica Arnaldo Rizzardo:

"O cigarro está excluído do regime jurídico da responsabilidade por acidente de consumo porque possui um risco inerente. Trata-se de produto que intrinsecamente implica perigo à saúde, na medida em que se constitui fator de risco de inúmeras doenças, o que é de conhecimento público há décadas e vem sendo advertido aos consumidores constantemente. O consumidor conhece e é advertido dos males do tabaco. Assim, os riscos à saúde são razoavelmente esperados pelo fumante, razão pela qual não há que falar em defeito no produto. Lícito que o cidadão possui o livre arbítrio de fumar cigarros ou deixar o vício, utilizando apenas a sua força de vontade".2

Rui Stoco compartilha do mesmo entendimento:

"Não se há de desprezar, ainda, o fato de que o ato de fumar, a aquisição do vício e deliberação de continuar usando substância nociva à saúde traduz livre-arbítrio do consumidor, que insiste em manter o vício, mesmo sabendo dos males que o fumo provoca. O uso voluntário de cigarro, o propósito de mostrar-se socialmente integrado, a intenção de fazer prevalecer a autonomia da vontade também constituem óbices à responsabilidade do fabricante (...)".3

O livre-arbítrio do fumante configura o que a lei denomina de culpa exclusiva da vítima (art. 12, §3º, III do Código de Defesa do Consumidor), que é uma excludente de responsabilidade civil, pois rompe o nexo causal entre a conduta do ofensor e o dano. A título meramente ilustrativo, podem-se citar os seguintes acórdãos, todos pelo afastamento da responsabilidade civil do fabricante de cigarros em razão da culpa exclusiva da vítima:

"Além disso, cabe salientar que o vício não impede que a pessoa deixe de fumar. Com força de vontade e determinação, é possível ao fumante largar o cigarro, e os exemplos estão por aí. O Sr. Aguiar, entretanto, mesmo após orientado pelo seu médico a parar de fumar, não o obedeceu. A doença foi culpa exclusiva sua. É o livre arbítrio" (TJ/RS. 2ª CC. AC 70005727748. Rela. Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira, julg. 1/12/2003)

"A 'alma de escravo' está mais difundida do que poderíamos pensar. Na verdade, estamos diante do maior caso de pessoas acometidas pela depressão da consciência de que já se teve notícia, que resiste a negar a razão humana, a capacidade deliberativa, bem como qualquer outra. Uma consciência individual que não apreende o que é essencial a sua própria saúde e a sua existência, não pode invocar ou pretender responsabilizar outrem pelas conseqüências de fatos cuja causa lhe cabia evitar" (TJ/PR. 9ª CC. AC 166.633-3. Rel. Cunha Ribas, julg. 7/4/2005)4

É um alento que a jurisprudência tenha, de forma sólida, se posicionado nesse sentido. O reconhecimento judicial do livre arbítrio nas demandas envolvendo a questão do cigarro reflete a maturidade do Estado Democrático de Direito, instituído com a Constituição Cidadã de 1988 (clique aqui). Privilegia-se a liberdade enquanto valor fundamental ao ordenamento jurídico.

O caput do art. 5º da Constituição Federal de 1988 garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país "a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". O inciso X, desse dispositivo, acrescenta que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas" (grifamos).

Esses dispositivos vêm em defesa das liberdades individuais, garantindo ao cidadão o direito de gerir a sua vida privada, tomando as decisões que bem entender, ainda que essas decisões consistam na adoção de comportamentos que possam implicar risco para a saúde ou mesmo para a própria vida. Tal como fumar; beber; ingerir alimentos gordurosos; saltar de asa-delta; sentir o vento na face em cima de uma motocicleta veloz.

Esses são exemplos de comportamentos que as pessoas podem adotar, pois são atividades permitidas pela lei. Embora possam trazer riscos para a saúde, as pessoas que se engajam em tais atividades fazem uma opção consciente entre prazer e risco. Porque são livres, podem dirigir a vida como melhor lhes parecer.

Nas palavras de Daniel Sarmento: "não cabe ao Estado, a qualquer seita religiosa ou instituição comunitária, à coletividade ou mesmo à Constituição estabelecer os fins que cada pessoa deve perseguir, os valores e crenças que deve professar, o modo como deve orientar sua vida, os caminhos que deve trilhar. Compete a cada homem ou mulher determinar os rumos de sua existência, de acordo com suas preferências subjetivas e mundividências, respeitando as escolhas feitas por seus semelhantes. Esta é uma idéia central ao Humanismo e ao Direito Moderno: a idéia da autonomia privada - que, como se salientou acima, constitui uma das dimensões fundamentais para a noção mais ampla de liberdade".5

Na mesma linha, Maria Celina Bodin de Moraes faz a perfeita correlação entre a liberdade e a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III da Constituição Federal):

"O princípio da liberdade individual se consubstancia, hoje, numa perspectiva de privacidade, de intimidade, de livre exercício da vida privada. Liberdade significa cada vez mais, poder realizar, sem interferências de qualquer gênero, as próprias escolhas individuais, mais, o próprio projeto de vida, exercendo-o como melhor lhe convier. Como exemplos de situações violadoras da dignidade humana em razão da lesão ao princípio de liberdade, cabe referir desde a revista íntima a que é submetido o empregado, o exame toxicológico determinado pelo empregador e outros exames em geral, como, por exemplo, a submissão ao chamado 'bafômetro' ou ainda a impossibilidade de não receber tratamento médico por motivos religiosos, até a impossibilidade de controle acerca dos próprios dados pessoais (...)".6

Pelas mesmas razões, parece evidente que seria atentatório à liberdade que, por exemplo, o Estado, a fim de proteger a saúde de seus cidadãos, os impedisse de fumar. Ou de comer demais, ou de consumir bebidas alcoólicas. Tratam-se de intervenções na esfera privada que simplesmente são inadmissíveis em uma sociedade livre e democrática como a brasileira, que prima pela liberdade e pela dignidade humana.

Mas, ao passo que o indivíduo opta, de maneira livre e consciente, dentro da sua esfera de livre-arbítrio, por praticar certas atividades, ele também assume o risco dos eventuais resultados danosos dessas atividades. É o preço da liberdade: a responsabilidade individual. O livre arbítrio sempre e necessariamente vem acompanhado da responsabilidade, sob pena de se tolerar uma sociedade imatura, fundada em mera transferência de culpabilidades.

No caso do cigarro, a assunção de risco é evidente e suficiente para elidir a responsabilidade civil do fabricante. Resta claro que fumar, assim como praticar as várias atividades antes citadas, integra o livre arbítrio de cada um, faz parte de uma opção por um estilo de vida, pelo qual somente responde aquele que o escolheu, ou seja, o bebedor, o guloso, o saltador de asa-delta, o motociclista e o fumante. Isso, especialmente, diante da notoriedade dos riscos envolvidos em tais atividades.

Na verdade, a tentativa do fumante de transferir ao fabricante de cigarros a sua responsabilidade pelas conseqüências danosas do fumo viola o princípio da boa-fé objetiva, tão e voga desde a entrada em vigor do Código Civil de 2002 (clique aqui). Segundo Calvão da Silva:

"É que quem provoca culposamente o dano deve poupar o lesante, por forma a não se sancionarem comportamentos incoerentes contrários à boa fé...Logo, se o consumidor (...) está consciente do perigo e apesar disso age deliberadamente sob a sua conta e risco, deve suportar as conseqüências, sendo apropriado dizer-se volenti (et scienti) non fit injuria e sibi imputet. Nestes casos, a responsabilidade do produtor cessa, porque, apesar do defeito do produto, a causa do dano está no comportamento consciente e voluntário do lesado."7

Apesar de essas evidências serem salutares, há quem defenda que o livre arbítrio do fumante não seria completo, de modo que não poderia afastar a responsabilidade civil do fabricante. A tese parte de duas justificativas: primeiro, o fumante não seria livre para começar a fumar em razão da publicidade massiva que era veiculada na mídia em décadas passadas. Depois, o fumante não seria livre para abandonar o cigarro em razão da invencível dependência provocada pela nicotina.

Com o devido respeito aos defensores da tese, a tentativa de afastar o livre arbítrio do fumante a partir das justificativas acima citadas não coaduna com o amadurecimento das liberdades individuais antes ressaltadas. É como a criança que, às escondidas da mãe e contrariando suas recomendações, se entope de chocolate e depois tem dor de barriga. Sucede que a sociedade não é formada por inimputáveis, razão pela qual as pessoas devem, uma vez que lhes foi garantida a essencial e ansiada liberdade, responder pelas conseqüências do seu exercício.

O afastamento do livre arbítrio do fumante com o fim de responsabilizar o fabricante de cigarros, como se tem visto em raríssimas decisões judiciais pontuais e isoladas, normalmente não é verdadeiramente fundado em razões lógico-científicas, mas em posicionamentos ideológicos anti-tabagistas. O cigarro é de fato um produto polêmico, capaz de despertar ódios e paixões. No entanto, Carlos Maximiliano já alertava que "a ausência de paixão constitui um pré-requisito de todo o pensamento científico"8

Enfrentemos, de todo modo, as justificativas que seriam, na visão de poucos, hábeis a elidir o livre-arbítrio do fumante.

A propaganda. É óbvio que a simples veiculação de publicidade, quando ainda era permitida na mídia, não é hábil a fazer as pessoas começarem a fumar. Decorre da observação cotidiana a conclusão de que as pessoas não começam a fumar porque viram um belo comercial na TV, mas influenciadas por exemplos dos pais, dos familiares, dos amigos e do meio social em geral. Caso contrário, todas as pessoas que foram expostas à publicidade de cigarros seriam fumantes. É na opção (ou não) do consumo de cigarros e de quaisquer outros produtos que reside o livre-arbítrio.

Sobre essa questão, pode-se citar Judith Martins-Costa, que. com a necessária contundência, ponderou:

"Seria atentatório ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e aos próprios princípios reitores do Código de Defesa do Consumidor, expressos no seu art. 4º, considerar que somos totalmente manipuláveis pela propaganda, ou que o totalitarismo mediático não deixa nenhum espaço ao exercício da autonomia e da liberdade individuais. Seria conotar ao conceito de consumidor a idéia de inimputabilidade, de uma total irresponsabilidade pelos próprios atos e pelas próprias escolhas. Porém, assim não acontece, nem a ordem jurídica toleraria essa possibilidade. Por mais difícil que seja parar de fumar, quem assim deseja proceder tem sempre, à sua frente, a possibilidade de uma opção: parar ou não de fumar. A tomada de decisão é, consciente ou inconscientemente, determinada por um balanceamento de valores entre o prazer momentâneo e o dever para consigo próprio, para com a própria saúde e para com os próprios familiares.

(...) Contraria frontalmente a boa-fé (podendo importar venire contra factum proprium) a conduta de quem, tendo, por anos a fio, mantido o hábito de fumar, estando bem esclarecido (até por médicos) acerca de seus possíveis malefícios, vem, depois, imputar o seu hábito a uma imaginosa vis compulsiva absoluta da propaganda de cigarros, para tirar proveito econômico de seu próprio hábito".9

Com efeito, o homem é um ser racional, capaz de ponderar prós e contras e tomar a sua decisão independentemente do que diz a publicidade de determinado produto. Mesmo porque o consumidor percebe a publicidade como tal e sabe que a ela está ligada à idéia natural de fantasia10, que busca ressaltar as qualidades do produto anunciado; não poderia ser diferente. Mas é fora de dúvidas que a simples veiculação de publicidade não afasta a racionalidade humana, pois:

"o homem não é um ser que não possa abster-se de ceder ao impulso que mais urgentemente lhe exija satisfação. O homem é um ser capaz de subjugar seus instintos, emoções e impulsos: que pode racionalizar o seu comportamento. É capaz de renunciar a satisfação de um impulso ardente para satisfazer outros desejos. O homem não é um fantoche de seus apetites.(...) O que distingue o homem de uma besta é precisamente o fato de que ele ajusta seu comportamento deliberadamente. O homem é o ser que tem inibições, que pode controlar os seus impulsos e desejos, que tem o poder de reprimir desejos e impulsos instintivos."11

A jurisprudência corretamente tem encampado esse entendimento, como se segue:

"(...) seria um despropósito debitar uma força crepuscular à propaganda publicitária veiculada, como capaz de influenciar na liberdade de decisão através da racionalidade que é inerente ao ser humano. Ainda mais, pela observação de nem todos os meios de comunicação veicularem os prazeres do tabaco. Em todos os tempos, vários setores da comunicação de da própria sociedade (família, escola, igreja, amizades) revelaram a influência do cigarro e as conseqüências de sua utilização. Na rodas sociais sempre existiram grupos que jamais fumaram. As advertências quanto aos males causados pelo cigarro ou pelo fumo são públicas e notórias" (TJ/PR. 9a CC. AC 166.633-3. Rel. Des. Cunha Ribas, julg. 7/4/05).

"Prova nesse sentido, são os dados trazidos pelas demandadas, inclusive, baseados em pesquisas que mostram que a propaganda não chega a influenciar na decisão da pessoa passar a fumar algum cigarro, mas outros fatores, como: amigos/conhecidos fumam ou fumavam; curiosidade/vontade; porque pai/mãe/parentes fumavam; porque achava bonito/charmoso. Então, o que se observa no caso é que o autor passou a fumar e continuou fumando por sua livre e espontânea vontade ou por seu livre arbítrio, não por ser induzido a tanto, em razão da publicidade das marcas de cigarros produzidos e comercializados pelas demandadas" (TJ/RS. 5ª CC. AC 70005752415. Rela. Marta Borges Ortiz, julg. 4/11/2004).

"A atividade de fumar é daquelas que tem início e continuidade mediante livre arbítrio do cidadão, não se podendo reconhecer que a atividade de fumar tenha início e se dê tão somente por força de propaganda veiculada pela indústria fabricante de cigarros. Também é certo afirmar que eventual vício contraído pelo usuário do fumo não é permanente e irreversível, já que a cessação da atividade de fumar é um fato notório e que depende única e exclusivamente do consumidor." (TJ/RS. 10ª CC. AC 70022408231. Rel. Des. Paulo Antônio Kretzmann, Julg. 8/5/2008).

Quanto à dependência, também não se presta a afastar o livre arbítrio do fumante. Assim como é notório que fumar faz mal para a saúde, também é notório que pode ser difícil parar de fumar. Como essa circunstância já era conhecida do fumante, a eventual dificuldade em interromper o fumo não pode ser lançada sobre os ombros do fabricante. O consumidor também assumiu esse risco.

Além do mais, é fato que qualquer pessoa pode parar de fumar, desde que motivada e empenhada a tanto. Para isso são necessários força de vontade e determinação, mas é certo que, ainda que seja difícil, parar de fumar é uma conquista possível e acessível a qualquer fumante. Diversas pessoas param de fumar a cada dia, fato que pode ser observado no cotidiano de cada um. Todos conhecem pessoas que pararam de fumar, sendo que a maioria delas abandonou o fumo socorrendo-se apenas da sua força de vontade, sem a necessidade de qualquer tratamento psicoterápico ou medicamentoso. Aliás, milhões de pessoas pararam de fumar muito antes de existirem no mercado quaisquer medicamentos de auxílio nesse sentido.

Essa evidência, como não poderia deixar de ser, é reconhecida pela jurisprudência amplamente majoritária, assim:

"Sustentar, no caso em exame, que o autor restou viciado com 'a nicotina' e, por sua dependência física e mental, não teve forças para se livrar de tal vício, não encontra respaldo sério na experiência comum, conforme destacam as demandadas nem nos elementos de convicção colhidos nos autos. (...) Certamente, pelas longas digressões feitas pelos litigantes, nem a eventual prova pericial garantiria tamanha dependência, a ponto de bloquear qualquer reação voluntária e firme do autor, para deixar do alegado vício, mesmo que não se negue, como não se pode negar, os graves malefícios que o cigarro causa à saúde das pessoas, do que todos temos plena consciência" (TJ/RS. 5ª CC. AC 70005752415. Rel. Des. Marta Borges Ortiz, julg. 4/11/2004).

"Ademais, a experiência ordinária, prevista no art. 335 do CPC, nos ensina que nem todos os fumantes transformam-se em seres absolutamente dominados pelo tabagismo. Isso porque a motivação e a disciplina pessoais são instrumentos relevantes para que o fumante deixe de ostentar essa condição, havendo notícia de que pessoas que fumaram por longos anos conseguiram afastar-se do vício. Assim sendo, a constatação genérica de que a nicotina produz dependência de nada valeria como prova judicial, porque é sabido que uma infinidade de fumantes abandona o cigarro sem grande esforço, de modo que a proposição científica que concluísse positivamente, informando que a nicotina é capaz de criar dependência, não provaria que o autor, mesmo tendo fumado durante vários anos, ficou dependente dessa substância". (TJ/MG. 18ª CC. AC 1.0596.019579-1. Rel. des. Unias Silva, julg. 16/9/08, publ. 7/10/08).12

Enfim, o livre-arbítrio do fumante é argumento insuperável e suficiente à improcedência das ações indenizatórias movidas contra os fabricantes de cigarros, tendo julgado com acerto as centenas de decisões judiciais que afastaram, sob esse fundamento, a responsabilidade civil do fabricante. Como se disse, a análise das decisões proferidas nesse tipo de demanda demonstra a maturidade da sociedade no que diz respeito à interpretação das garantias constitucionais e, ainda, a correta interpretação do Código de Defesa do Consumidor e das excludentes ali expressamente previstas.

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1 LOPEZ, Teresa Ancona. Nexo causal e produtos potencialmente nocivos: a experiência brasileira do tabaco. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 148.

2 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 870/871.

3 STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 7ª ed., 2007, p. 795.

4 No mesmo sentido: TJSP. 1ª CC. AC 235.799-4/9. Rel. Laerti Nordi, julg. 9/9/03; TJRJ. 4a CC. AC 20321/2006. Des. Rel. Jair Pontes de Almeida, julg. 28/8/06; TJSC. 2ª CC. AC 2005.021834-1. Rel. Newton Janke, julg. 5/11/2008; TJRN. 1ª CC. AC 2008.002843-5. Rel. Des. Vivaldo Pinheiro, julg. 12/8/2008, dentre tantos outros.

5 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004, p. 175.

6 SARLET, Ingo Wolgang (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. MORAES, Maria Celina Bodin. O conceito de Dignidade Humana: Substrato axiológico e conteúdo normativo, p. 136.

7 CALVÃO DA SILVA, João. Responsabilidade Civil do Produtor, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídicas na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Livraria Almedina, coleção teses jurídicas, p. 734/735.

8 Maximiliano, Carlos. Hermeneutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 16ª ed., 1996, p. 103.

9 MARTINS-COSTA, Judith Martins. Ação indenizatória - dever de informar do fabricante sobre os riscos do tabagismo. Revista dos Tribunais, nº 812.

10 Não fosse assim e a totalidade das propagandas de plano de saúde e hospital, por exemplo, serem enganosas, pois não há hospital em que os pacientes estejam sempre sorrindo e as enfermeiras e enfermeiros pareçam-se com deuses gregos, como aparece nos comerciais. E de que o que seria o comercial de certa esponja de aço com 1001 utilidades ou do remedido que, tomou, e a dor sumiu?

11 VON MISSES. LUDWIG. Ação Humana - um tratado de economia, 1995, 2ª ed., p. 18.

12 No mesmo sentido, por exemplo: TJRS. 6ª CC. AC 70006322226. Rel. Des. Cacildo de Andrade Xavier, julg. 10/03/2004; AC 199011048788-9, 2a TC TJ/DF. Rel. Des. Adelith de Carvalho Lopes, julg. 20/6/02.

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*Sócio do escritório Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados

**Advogada do escritório Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados









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