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Espírito da nova Lei Civil

Antes de mais nada, desejo deixar aqui o reconhecimento dos altos méritos do código que vai ser revogado, obra monumental do insigne jurista Clóvis Beviláqua, que pensava poder situá-lo entre as linhas da tradição e do progresso, sem prever, todavia, as revoluções sociais e tecnológicas que iriam ocorrer logo após a 1.ª Grande Guerra.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2003

Atualizado em 1 de abril de 2003 11:49

 

Espírito da nova Lei Civil

Professor Miguel Reale

O novo Código Civil entrará em vigor no próximo dia 11. Para comemorar esse evento não me é possível, porém, nos limites de um artigo de jornal, selecionar as contribuições mais relevantes da nova Lei Civil, parecendo-me mais aconselhável salientar as diretrizes seguidas em sua longa, mas proveitosa, tramitação.

Antes de mais nada, desejo deixar aqui o reconhecimento dos altos méritos do código que vai ser revogado, obra monumental do insigne jurista Clóvis Beviláqua, que pensava poder situá-lo entre as linhas da tradição e do progresso, sem prever, todavia, as revoluções sociais e tecnológicas que iriam ocorrer logo após a 1.ª Grande Guerra.

Isto não obstante, a "Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil", da qual fui supervisor, estabeleceu, entre os seus propósitos iniciais, o de conservar o máximo possível o disposto no código de 1916, objeto de preciosos estudos doutrinários e de valiosa jurisprudência, que ainda continuarão a exercer benéfica influência na história do Direito pátrio.

Acontece, porém, que, devido às imensas alterações operadas no decurso do século passado, tanto no plano científico e tecnológico como no campo social, era impossível manter disposições legais tornadas incompatíveis com os interesses e necessidades do mundo atual.

Bastará dizer que Clóvis Beviláqua redigiu seu anteprojeto de Código Civil em fins do século 19, quando ainda prevaleciam princípios de marcante individualismo. No caso do Brasil, acrescia o fato de nossa civilização ainda corresponder a uma sociedade rural e agrária, com a maior parte da população vivendo no campo, ao passo que, hoje em dia, predomina o sentido inverso, da vida urbana aberta aos imperativos da socialização do progresso.

Por outro lado, nos domínios da Ciência do Direito prevalecia a preocupação oitocentista da escola francesa da Exegese ou da germânica dos Pandectistas visando a resolver as questões sociais tão-somente à luz de categorias jurídicas, enquanto, nos tempos atuais, se compreende o Direito em perene vinculação com valores sociais e éticos.

Eticidade e socialidade, eis aí os princípios que presidiram à feitura do novo Código Civil, a começar pelo reconhecimento da necessária indenização de danos puramente morais, e pela exigência de probidade e boa-fé tanto na conclusão dos negócios jurídicos como na sua execução.

Estabelecidos esses princípios, não foi mais considerada sem limites a fruição do próprio direito, reconhecendo-se que este deve ser exercido em benefício da pessoa, mas sempre respeitados os fins ético-sociais da comunidade a que o seu titular pertence. Não há, em suma, direitos individuais absolutos, uma vez que o direito de um acaba onde o de outrem começa.

Nessa ordem de idéias, passou a ser disciplinado de nova forma o direito de propriedade, mesmo porque esta, de conformidade com o inciso XXIII do artigo 5.º da Constituição de 1988, "atenderá a sua função social".

Decorrência lógica desse entendimento é a compreensão da "função social do contrato", o qual representa uma justa composição de interesses individuais e coletivos, de tal forma que, se ele se rescinde devido ao inadimplemento de uma das partes, também pode ser resolvido se acontecimentos imprevisíveis tornarem por demais onerosa a prestação de um dos contratantes.

Na mesma linha de pensamento, o novo Código Civil prevê vários casos em que é facultado ao juiz atuar como árbitro, fixando, por exemplo, o valor de uma indenização segundo critérios de eqüidade, não acolhendo pretensões abusivas.

É claro que, no quadro de uma compreensão ético-social do Direito, não se concebe mais a teoria da responsabilidade civil com base apenas no elemento subjetivo da culpa, sendo aquela considerada devida, objetivamente, quando a natureza mesma da atividade desenvolvida pelo autor do dano já implica grandes riscos para quem dela participa.

Além disso, havia necessidade de atender à nova estrutura da família, reconhecendo-se a igualdade dos cônjuges e dos filhos, o que os elaboradores do anteprojeto já haviam levado em conta, e que a Constituição de 1988 veio proclamar com admirável amplitude.

Daí não se falar mais em "pátrio poder", apresentado o marido como chefe da sociedade conjugal, passando-se a falar em "poder familiar", estabelecido sobretudo em razão da prole.

Ademais, tendo em vista que no mundo contemporâneo, que é o da comunicação e informação, mais prontamente se adquire ciência e consciência dos próprios direitos e deveres, a maioridade não é mais declarada aos 21 anos, mas aos 18, descendo a responsabilidade relativa a 16 anos, quando, aliás, já começa o adolescente a ser eleitor, no exercício da cidadania.

Outro ponto que se procurou superar foi o do excessivo formalismo da legislação anterior, que exigia, por exemplo, que o testamento particular fosse redigido de próprio punho, lido na presença de cinco testemunhas, ficando na dependência da sobrevivência de três delas. Hoje, em circunstâncias excepcionais, declaradas na cédula, o testamento particular de próprio punho poderá ser confirmado sem testemunhas, a critério do juiz, o qual poderá também reconhecer a validade do testamento apenas assinado pelo testador, se uma das três testemunhas exigidas o reconhecer.

A mesma dispensa de formalidades desnecessárias ocorre no mundo empresarial, cuja escrituração contábil poderá valer-se de todos os atuais processos eletrônicos.

Essa matéria passou ao campo do Direito Civil devido a uma das inovações do novo código, que foi acrescido de mais um livro especial intitulado Direito da Empresa, conseqüência lógica da unidade das obrigações civis e comerciais, a qual já havia sido consagrada pela praxe em razão de obsoletismo do Código do Comércio de 1850.

Como se vê, é sob múltiplos aspectos que se comprova a modernidade da nova Lei Civil, talvez a mais atualizada de nosso tempo.

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