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Sobre a desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais

A colega Cintia Yazigi brindou-nos recentemente com uma oportuna reflexão , que diz não apenas com a Justiça do Trabalho. Prova disso é o presente trabalho, que se refere a um caso sub judice, motivo pelo qual são omitidos dados identificadores dos envolvidos. Servirá sua leitura, quando menos, para demonstrar um fato alarmante que se vai tornando moeda corrente no foro: o desprezo que muitos magistrados dedicam ao estudo dos assuntos que devem decidir. Como disse um deles recentemente, importante para o juiz é ter bom-senso.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Atualizado em 18 de setembro de 2009 11:06


Sobre a desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais

Adauto Suannes*

"Piercing the corporate veil - Judicial process whereby court will disregard usual immunity of corporate officers or entities from liability for wrongful corporate activities."1

A colega Cintia Yazigi brindou-nos recentemente com uma oportuna reflexão (Migalhas 2.223 - 10/9/09 - clique aqui), que diz não apenas com a Justiça do Trabalho. Prova disso é o presente trabalho, que se refere a um caso sub judice, motivo pelo qual são omitidos dados identificadores dos envolvidos. Servirá sua leitura, quando menos, para demonstrar um fato alarmante que se vai tornando moeda corrente no foro: o desprezo que muitos magistrados dedicam ao estudo dos assuntos que devem decidir. Como disse um deles recentemente, importante para o juiz é ter bom-senso.

Como está demonstrado nos autos, a empresa "A" move Ação Monitória contra a sociedade "B", entidade beneficente sem fins lucrativos, a qual, a rigor, não possui sócios, mas associados, tanto que os bens que compõem seu patrimônio, pois é "sociedade" sem fins lucrativos, jamais reverterão aos associados, mas, em caso de dissolução, "reverterão em benefício de outra instituição congênere", como consta dos seus estatutos.

Tendo sido promovida execução contra a entidade, formulou a credora, por ignorância ou má fé, um pedido estapafúrdio: a desconsideração da pessoa jurídica, pois "se torna devida a inclusão dos últimos sócios registrados no pólo passivo", ainda que os Estatutos afirmassem que "os associados não respondem pelas obrigações sociais". Eis os termos de tal pedido: "Requer o exequente não só a desconsideração da personalidade jurídica, como também, o imediato arresto das contas bancárias de todos os sócios".

Incrivelmente, inaceitavelmente, sem qualquer indicação de lei, doutrina nem jurisprudência, aquele Juízo deferiu aquele estapafúrdio pedido, proferindo a seguinte decisão:

"Vistos,

Observando o andamento da presente execução verifica-se que a executada não foi encontrada para cumprimento de suas obrigações.

Diligências efetuadas durante o andamento do feito revelaram a inexistência de bens e de valores da executada que possam garantir o juízo.

Tal situação é inaceitável tratando-se a executada de pessoa jurídica.

Diante disso, acolho o pedido de desconsideração da personalidade jurídica para incluir os sócios da executada no pólo passivo do presente feito.

Efetuadas as anotações de praxe proceda-se à citação dos co-executados.

Sem prejuízo, defiro o bloqueio de valores via Bacenjud em relação às contas de titularidade dos co-executados acima mencionados.

Int."

Cuida-se, como se vê, de decisão nula, pois não contempla qualquer das hipóteses previstas no art° 50 do Código Civil3 (clique aqui) para deferir o singelo pedido do credor. Há mais: o associado G.S., que não foi citado para responder aos termos da Ação Monitória, desligou-se da Associação beneficente em 8 de janeiro de 1997, enquanto a dívida ajuizada se refere ao período de fevereiro a julho de 2005.

Conforme comprovado nas Apelações interpostas nos embargos de terceiro que tramitam em apenso, G.S., que não foi parte na relação processual original, em seus últimos dias de vida, quando se encontrava sedado em UTI hospitalar, onde veio a falecer, sofreu bloqueio on line de todas as suas disponibilidades financeiras, o que atingiu as contas do casal, conforme listadas abaixo, descabidamente, uma vez que, como sabem até as crianças, os bens que compõem a meação da cônjuge supérstite não integram os bens do espólio.

Os valores bloqueados totalizaram cerca de R$ 200.000,00, sendo que a metade desse valor constitui a meação que já era da viúva, sendo apenas a outra metade propriedade do espólio.

Lembremos as esquecidas aulas de Direito Sucessório, quando se aprendia que meação é

"a metade ideal do patrimônio comum a que, no inventário, tem direito o cônjuge sobrevivente, na qualidade de sócio dos bens da sociedade conjugal por ter-se casado com o cônjuge falecido sob o regime de comunhão universal ou parcial, pois a outra metade consiste na herança, que será partilhada entre os herdeiros do de cujus."4

E também se aprendia naqueles bons tempos que espólio é

"o acervo hereditário administrado e representado, ativa e passivamente pelo inventariante, até a sua partilha entre os herdeiros e legatários."5

Ou seja, os bens do Espólio de G.S. não se confundem com os bens da meeira e viúva. Sendo isso assim, qual o motivo do bloqueio dos valores pertencentes à meeira? Digam lá os sábios.

Como quer que seja, tal bloqueio proveio de decisão claramente nula também por inobservância da legislação que rege a desconsideração das pessoas jurídicas, como se demonstra em seguida.

A ação em que se deu tal bloqueio é promovida contra a Sociedade "B" e, sendo esta uma associação sem fins lucrativos, não há como confundir o patrimônio da entidade com o patrimônio de seus associados.

Theotônio Negrão nos dá conta de que, para o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, "as pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos ou de fins não-econômicos estão abrangidas no conceito (sic) de abuso da personalidade jurídica".6 Assim também já teria decidido o E. TJ/SP.7

O equívoco é manifesto.

Como se colhe da doutrina, o que se visa punir com a desconsideração (que não se confunde com despersonalização) da pessoa jurídica é a promiscuidade na administração do patrimônio da empresa, graças à qual os sócios ficam com os lucros enquanto a sociedade arca com os prejuízos, a dano dos credores dela. Se o administrador da pessoa jurídica não-lucrativa atua contra a lei ou contra disposição estatutária, ele responde pessoalmente pelo ato ilícito, sem precisarmos recorrer à desconsideração da pessoa jurídica, até porque, como no caso presente, não há como haver confusão entre o patrimônio de uma entidade beneficente e o patrimônio de seus associados.

É, aliás, o que se colhe do V. Aresto citado, que deixa clara a distinção:

"A despeito de se cuidar de associação sem fim lucrativo, autoriza-se a desconsideração de sua personalidade jurídica, não para atingir seus associados, mas para atingir seus dirigentes, que a representam na forma dos estatutos".8

Com todo respeito, isso nada tem a ver com a disregard doctrine, até porque a norma do art° 50 do Código Civil, que contempla situações excepcionais envolvendo empresas voltadas para o lucro, não pode ser interpretada ampliativamente. Em vista disso, onde está a lei que diz que a desconsideração da pessoa jurídica se aplica aos bens de associados de associações sem fim lucrativo? Onde está a lei que diz que a desconsideração da pessoa jurídica implica o envolvimento dos bens dos ex-diretores, como tais? E os bens de sua viúva? Não existe.

Voltemos aos bancos escolares:

"O processo de exegese das leis de tal natureza é synthetizado na parêmia célebre, que seria imprudência eliminar sem maior exame - interpretem-se restrictivamente as disposições derrogatórias do Direito Comum - brocardo esse correspondente ao dos romanos - exceptiones sunt strictissimæ interpretationis."9

Diz a doutrina:

"O direito do sócio de ver intangíveis os seus bens em face das obrigações da sociedade não é mais absoluto. Havendo fraude ou abuso de direito cometido por meio da personalidade jurídica que a sociedade representa, os sócios não ficaram imunes a sanções, pois permitida estará a desconsideração dessa personalidade, para que seus integrantes sejam responsabilizados pela prática daquele abuso. Essa doutrina tem por escopo responsabilizar os sócios pela prática de atos abusivos sob o manto de uma pessoa jurídica, coibindo manobras fraudulentas e abuso de direito, mediante a equiparação do sócio e da sociedade, desprezando-se a personalidade jurídica para alcançar as pessoas e bens que nela estão contidos".10

Tecnicamente não há como confundir sociedade e associação, nem sócio com associado.

Repete a jurisprudência:

"A respeito da extensão da aplicabilidade da disregard doctrine, a jurisprudência pátria vem se posicionando no sentido de que existem pressupostos específicos relacionados à fraude ou ao abuso de direitos de terceiros, que devem ser observados."11

Guilherme da Gama dá-nos conta de inúmeros julgados onde essa doutrina é ventilada, transcrevendo criticamente julgados do STJ, do TJ/RJ e do TJ/MG.

Sintetizando o assunto, esclarece ele que "a disregard doctrine é subdividida na teoria maior da desconsideração, que é associada ao abuso do direito e ao desvio de função, e da teoria menor, que permite o afastamento da autonomia patrimonial mesmo que não se verifique a indevida utilização da pessoa jurídica."12 No primeiro caso deve ser "demonstrado o desvio de finalidade da pessoa jurídica ou a confusão patrimonial", ao passo que no segundo, como ocorre nas relações de consumo, a má administração da sociedade insolvente é presumida juris et de jure.

Ainda que se aceitasse, pois, o cabimento da desconsideração da pessoa jurídica no que diz com entidades não-lucrativas, as exigências seriam maiores do que as que se contêm no art° 28, § 5°, do CDC (clique aqui).

De fato, como deixou claro o C. TJ/SP,

"A insuficiência de bens (da sociedade) ou seu encerramento irregular isoladamente considerado não basta para decretar a medida extrema."13

"Destaque-se que, na forma do disposto no art. 50 do Código Civil, a desconsideração é cabível em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial."14

"O só fato de a empresa ter encerrado suas atividades sem reservar bens para satisfação dos credores, não expressa necessariamente fraude."15

"É imprescindível que se prove abuso da personalidade jurídica, violação do contrato social e/ou dilapidação do patrimônio - Inexistência de tais provas - A insuficiência de bens não basta para decretar a medida."16

"Frise-se, outrossim, que ainda que a empresa-executada tivesse encerado suas atividades, tal fato não seria o bastante para a pretendida desconsideração da personalidade jurídica, pois a inatividade da empresa ou a inexistência de bens suficientes para garantir a execução, não configuram, de pronto, infração à lei ou fraude na administração da sociedade."17

Nada disso consta da decisão mencionada, que se limitou a deferir o pedido do credor, o qual também não se atém ao contido no art° 50 do CC.

Há mais: interpostos, pelo espólio e pela viúva, o cabível e necessário remédio dos Embargos de Terceiro, foram as petições iniciais rejeitadas sumariamente, ao equivocado argumento de que o espólio "figura no pólo passivo da ação principal" e a meeira "não tem legitimidade" para defender seus bens.

Cuida-se de afronta a dispositivo legal expresso que deixa claro que

"considera-se também terceiro o cônjuge quando defende a posse de bens dotais, próprios, reservados ou de sua meação."18

As decisões que extinguiram os processos de Embargos de Terceiro, mantendo, com isso, a desconsideração da personalidade da sociedade B, também são nulas porque não preenchem minimamente os requisitos legais, pois o princípio constitucional do devido processo legal não tolera decisões desfundamentadas, até porque recorrer de uma decisão é analisar e contraditar seus argumentos.

Diz, de fato, o art° 458 do CPC (clique aqui):

"São requisitos essenciais da sentença:

I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;

II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;

III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeterem."

Se a penhora recaiu sobre interesses do espólio e da viúva meeira, era de aplicar ao caso a lição da doutrina que assim repercute na jurisprudência:

"Os terceiros alcançados pela desconsideração da personalidade jurídica da falida estão legitimados a interpor, perante o próprio juízo falimentar, os recursos tidos por cabíveis, visando a defesa de seus direitos."19

Aliás, repetindo ad nauseam,

"a desconsideração da pessoa jurídica é medida excepcional que reclama o atendimento de pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito em prejuízo de terceiros, o que deve ser demonstrado sob o crivo do devido processo legal."20

Depois de sua equipe resumir e analisar 66 Acórdãos do TJ/RJ, 36 do TJ/MG e 19 Acórdãos do E. STJ sobre tal tema, Guilherme Calmon Nogueira da Gama conclui:

"A teoria da desconsideração consiste na possibilidade de se ignorar a personalidade jurídica autônoma da entidade moral sempre que esta venha a ser utilizada para fins fraudulentos ou diversos daqueles para os quais foi construída. Extrai-se desse conceito que esse instituto tem cabimento quando presentes (a) o abuso - cujo conceito encontra-se inscrito no art. 187 do Código Civil; (b) o desvio de finalidade - verificado nas hipóteses em que se afasta do objeto social enquanto atividade autorrealizada ou causa do negócio."21

"Simples despachos, em processos de execução movidos contra a sociedade empresarial, determinando a penhora de bens dos sócios, importam flagrante desobediência ao direito constitucional e ao devido processo legal."22

"A teoria maior não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade, ou a demonstração de confusão patrimonial."23

A decisão que decretou a penhora on line não demonstra cuidar-se de "situação excepcional", nem esclarece porque os bens do espólio de um ex-diretor de uma associação beneficente devem passar a integrar o patrimônio dessa entidade, mesmo havendo disposição estatutária dizendo o contrário disso. Menos ainda os bens de sua esposa!

Além disso confundiu "bens de sócios" com "bens de diretor", com a agravante de ser ela uma associação e não uma sociedade, pese o erro técnico de quem redigiu o seu estatuto.

Desnecessário seria registrar que nossos tribunais vêm enfatizando a inaceitabilidade das fundamentações implícitas, tal como aquela de que aqui se cuida:

"Um dos aspectos relevantes levados à consideração do Tribunal de origem, posto com claridade nos embargos declaratórios, foi a questão das escrituras de compra e venda assinadas pelas partes conterem dimensão menor do que aquela indicada na propaganda ou no recibo de pagamento. Isso significaria que não seria possível considerar mais a diferença entre a metragem divulgada e aquela real do bem. Em consequência, outra questão deveria ser enfrentada, assim, aquela do parágrafo único do art. 1.136 do Código Civil de 1916, porquanto não haveria diferença superior a 1/20, sendo, portanto, a referência às metragens meramente enunciativa. O Tribunal não cuidou desse aspecto, limitando-se a afirmar no acórdão dos declaratórios que haveria decisão implícita suficiente para afastar a alegada omissão. Ocorre que não é factível aceitar a decisão sem apropriados fundamentos, impedindo o acesso ao especial, sob pena de violação do art. 458 do Código de Processo Civil. Recurso especial conhecido e provido"24;

"O juiz precisa explicar (fundamentar, enfim) todos os seus passos. E, para tanto, cativo a este raciocínio, adequar o fato à norma. Esta é extensa (sentido lógico do termo). O fato, por seu turno, posto nessa extensão. Em outras palavras, o ser compreendido no dever-ser. Dessa forma, na motivação o juiz precisa adequar o fato à norma. E mais: fazê-lo expressamente. Não há fundamentação implícita."25

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1 Black's Law Dictionary, 1990

2 A Desconsideração da pessoa Jurídica na Justiça do Trabalho e a Segurança do Administrador, publicado no Migalhas de 10 do corrente.

3 Verbis: "Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte... que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica."

4 Maria Helena Diniz, Dicionário Jurídico, Editora Saraiva, 1998, volume 3, p. 232

5 Cf. Maria Helena Diniz, ob. cit., volume 2, p. 392

6 Cf. Código Civil e legislação civil em vigor, Editora Saraiva, 2009, nota 3 ao artº 50, Enunciado 284 do CEJ

7 Agravo de Instrumento n° 7.281.690-3/SP

8 AI citado

9 Carlos Maximiliano, Hermeneutica e Applicação do Direito, Edição da Livraria do Globo, 1925, p.s 252/253

10 Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil, 1° volume, Editora Saraiva, 2005, p. 296

11 STJ, REsp 35.281, rel. Ministro Rosado de Aguiar

12 Cf. Desconsideração da Personalidade da Pessoa Jurídica, Editora Atlas, p. xviii

13 Agravo de Instrumento n° 1.250.518-0/3, rel. o Des. Romeu Ricupero

14 Agravo de Instrumento n° 7.308.041-6, rel. o Des. Coutinho de Arruda

15 Agravo de Instrumento n° 652.514-4/0-00, rel. o Des. Morato de Andrade

16 Agravo de Instrumento n° 1.259.108-0/4 rel. o Des. Romeu Ricupero

17 Agravo de Instrumento n° 7.347.691-4, rel. sorteado o Des. Luis Carlos de Barros

18 Código de Processo Civil, art° 1.046, parágrafo 3°

19 Cf. ROrd em MS nº 12.872/SP

20 Cf. REsp n° 347.524/SP

21 Ob. cit., p. 228, n° 1

22 Idem, p. 231, n° 10.1

23 Ibidem, n° 12.1

24 Cf. Recurso Especial 594610/PR (2003/0174232-5), relator o Min. Menezes Direito

25 Cf. Habeas Corpus 9584/RJ (1999/0045793-5), relator o Min. Luiz Vicente Cernicchiaro

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Autor da coluna Circus





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