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Ulisses e a liberdade de imprensa

No livro XII da epopéia Odisséia de Homero o herói Ulisses é alertado pela feiticeira Circê dos perigos e provas que enfrentará em sua viagem de retorno para a ilha de Ítaca, dentre os quais, duas sereias cujo canto fascina, hipnotiza e destrói.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2005

Atualizado em 10 de fevereiro de 2005 09:12

Ulisses e a liberdade de imprensa


Eduardo Simões Neto*

No livro XII da epopéia Odisséia de Homero o herói Ulisses é alertado pela feiticeira Circê dos perigos e provas que enfrentará em sua viagem de retorno para a ilha de Ítaca, dentre os quais, duas sereias cujo canto fascina, hipnotiza e destrói.

Desta forma, pouco antes de chegar nas águas habitadas pelas sereias, Ulisses determina a seus homens que amassem pedaços de cera e os coloquem sobre seus ouvidos, impedindo assim que sucumbam ao canto letal. Mas, querendo escutá-lo, manteve seus ouvidos descobertos, ordenando entretanto à tripulação que o amarrasse no mastro da embarcação e que desconsiderasse quaisquer ordens posteriores para que fosse solto antes que estivessem em águas seguras.

Ainda insatisfeito, determinou Ulisses que a cada pedido para que fosse desamarrado fossem usadas novas cordas para prendê-lo ainda mais.

Tais ordens assumiram, assim, tamanha rigidez que nem mesmo Ulisses, cuja autoridade permaneceu inalterada, poderia revogá-las. Com tal medida, protegeu-se o herói da "miopia" que, de acordo com David Hume, faz com que o ser humano abandone a razão e comprometa o seu bem estar futuro por uma satisfação imediata.

De modo similar a Ulisses, os arquitetos da Constituição Brasileira de 1988 protegeram parte de sua obra contra alterações posteriores que busquem a sua abolição (artigo 60, § 4º), vedando ainda a reforma de quaisquer das suas cláusulas em momentos de navegação por águas turbulentas (vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio - artigo 60, § 1º).

Embora a comparação entre deva ser vista com reservas, acertou Jon Elster, seu idealizador, ao identificar que em ambos os casos objetivou-se a autopreservação através da criação de normas que impeçam a supressão de outras normas. Noutras palavras: foram criadas normas que garantem a rigidez e a proteção de normas consideradas importantíssimas e essenciais para a sobrevivência do todo.

Pois bem, dentre as determinações protegidas pela nossa Constituição até mesmo contra emendas ao seu texto, encontram-se a garantia à liberdade de transmissão e recepção de conhecimento e o direito à livre manifestação de pensamento (Art. 5º, incisos IV e XIV e parágrafo 2º, conjugados com o já mencionado § 4º do art. 60). E destas decorrem a liberdade de imprensa e de plena informação jornalística e a vedação à censura (art. 220).

Desta forma, conforme ensina Valmir Pontes Filho, somente com a derrocada completa da ordem constitucional vigente é possível subverter tais matérias, de modo que, enquanto vigente a Lei Maior de 1988, impossível a censura ou a subversão das liberdades de imprensa e de informação.

Por todo o exposto, a liberdade de imprensa, a liberdade de informação e a vedação à censura devem, sempre, serem resguardadas contra quaisquer medidas que as afrontem. O alerta parece desnecessário, mas não é. Assim como o canto das sereias, o poder fascina e torna nebulosos os pensamentos. Mesmo dos melhores homens.
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*Advogado do escritório Siqueira Castro Advogados









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