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Caso Battisti: Eureka! Agora tudo tem lógica!

Eureka! Assunto resolvido (para mim). É o seguinte: a doutrina jurídica (até onde sei) não distingue entre crime político puro e crime político contra a humanidade. No caso Battisti essa diferenciação é fundamental. Por quê? Porque seus crimes não são políticos puros, sim, crimes políticos contra a humanidade.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Atualizado em 14 de janeiro de 2011 14:15

Caso Battisti: Eureka! Agora tudo tem lógica!

Luiz Flávio Gomes*

Eureka! Agora tudo tem lógica! Lendo o artigo de Renato Janine Ribeiro (Professor titular de Ética e Filosofia da USP), no O Estado de S. Paulo de 09/01/11, p. J3, desatei finalmente um nó terrível que se encontrava na minha cabeça.

Ontem eu havia escrito que não concordava com a decisão do min. Peluso, que não concedeu liberdade a Battisti. Meu argumento foi o seguinte: se o STF disse (por 5 a 4) que a palavra final na Extradição era do Presidente da República e se este decidiu que não iria extraditar, acabou o processo de extradição. Sem o processo de extradição não se justifica a prisão. Parabenizei o advogado Luís Roberto Barroso pela sua argumentação brilhante. Quanto ao mérito do assunto, extraditar ou não, sempre faltava algo.

Eureka! Assunto resolvido (para mim). É o seguinte: a doutrina jurídica (até onde sei) não distingue entre crime político puro e crime político contra a humanidade. No caso Battisti essa diferenciação é fundamental. Por quê? Porque seus crimes não são políticos puros, sim, crimes políticos contra a humanidade.

E por que não são crimes políticos puros? Porque ele lutava contra um governo legítimo, formalmente legal (governo eleito, democrático em tese). Aqui no Brasil os opositores ao regime (Dilma, Serra, Genoíno, Gabeira, etc.) lutaram contra um governo ditatorial, opressivo e ilegal. Na Itália, Battisti (e seu grupo) lutava contra um governo eleito pelo povo. Isso faz toda a diferença.

Qual é a diferença entre eles? A seguinte: os primeiros são prescritíveis, anistiáveis e não extraditáveis. Os segundos são o contrário: imprescritíveis, não anistiáveis e extraditáveis. Agora tudo tem lógica!

Se você gosta de ler textos jurídicos e quer aprender conceitos jurídicos, leia meu texto que segue:

O controvertido caso Battisti (Extradição pedida pelo Governo italiano, de Cesare Battisti) nos obriga a aclarar o conceito de crime contra a humanidade, particularmente no que diz respeito à exigência de "que o ataque (que o conflito armado) corresponda a uma política de Estado ou de uma organização que promova essa política em nome do Estado".

Por força do conceito dado, estamos diante do crime contra a humanidade que parte do Estado (ou em seu nome). Não importa se o Estado é ilegítimo (não eleito pelo povo - esse é o caso das ditaduras) ou legítimo (como é o caso, agora, da acusação contra o Sudão, que está tramitando no TPI). Nesse caso o Estado passa a atuar de forma terrorista (e indiscriminada) contra a população civil (seja ele um Estado com governo eleito pelo povo ou não).

Até aqui reside a conceituação do crime contra a humanidade vendo a perspectiva do Estado como agressor.

Mas o caso Battisti deixou evidente o outro lado da moeda: é possível que o Estado seja legítimo (eleito) e ele seja o motivo (político) dos ataques indiscriminados contra a população civil. Esse é o caso do grupo de Cesare Battisti. Também aqui nos parece muito evidente que estamos diante de um crime contra a humanidade. Mais precisamente: crime político contra a humanidade.

É crime político porque está contestando o poder político regularmente instalado. E é, ao mesmo tempo, crime contra a humanidade, porque o ataque se dirige (indiscriminadamente) contra a população civil.

Resumo do fato

Cesare Battisti teria participado de um movimento armado de esquerda, na Itália (movimento Proletários Armados pelo Comunismo - PAC), nos anos setenta. Teria praticado vários crimes, dentre eles quatro assassinatos. Ele, no entanto, na Itália, não foi anistiado. E os delitos não prescreveram (porque na Itália os crimes punidos com prisão perpétua não prescrevem).

Conclusão: para a Justiça italiana Battisti está em débito (e teria que cumprir lá prisão perpétua).

Mas seus crimes devem ser tidos como: (a) crimes comuns (como afirmou o STF), (b) crimes políticos puros (como afirmou o Ministério da Justiça e o ato presidencial de não extradição) ou (c) crimes políticos contra a humanidade (como nós entendemos que foram)?

Fundamental é distinguir quatro categorias diversas: (a) crime comum, (b) crime contra a humanidade, (c) crime político puro e (d) crime político contra a humanidade. O tratamento jurídico de cada um deles não pode ser idêntico. Vamos às distinções.

Crime comum, crime contra a humanidade, crime político puro e crime político contra a humanidade

Crime comum é o crime cometido sem nenhuma motivação política assim como sem nenhuma referência ao regime governamental. Ou seja: não está em jogo no crime comum o Estado ou o regime de governo. Não se contesta nenhum governo nem o crime é cometido para proteger qualquer tipo de política de governo. Não tem como ponto de referência o Estado ou o governo. Nem é contra o Estado instituído, nem é a favor de qualquer política adotada por ele. A grande massa dos assassinatos, dos roubos, dos sequestros, das extorsões etc. compõe essa categoria (dos crimes comuns).

O crime contra a humanidade consiste na prática de atos desumanos (tais quais os descritos no Estatuto de Roma: assassinatos, extermínio, desaparecimento de pessoas, violações sexuais etc.), durante conflito armado ou período de exceção, no contexto de uma política de Estado (legítimo ou ilegítimo) ou de uma organização que promova essa política em nome desse Estado, contra a população civil, de forma generalizada ou sistemática, e com conhecimento do agente. Os crimes cometidos pelos agentes das ditaduras, indiscutivelmente, são crimes contra a humanidade (cf. decisão da CIDH no caso Araguaia), assim como o foram os crimes dos nazistas. Normalmente (mas não necessariamente) atingem opositores do regime, que devem ser vistos como integrantes da população civil. Os crimes contra a humanidade são imprescritíveis e não anistiáveis. Admitem, no entanto, extradição.

Crime político puro é o crime cometido por motivação política, contra agentes estatais ou particulares, que contesta o Estado ilegítimo ou o regime de governo ilegal (o poder ditatorial ou autoritário). Os agentes não atuam em nome do Estado, ao contrário, atuam contra ele ou contra terceiros, por causa da ilegitimidade do governo. Nos crimes políticos puros o autor ou autores não se vinculam a nenhuma política de Estado, visto que atuam em nome de uma ideologia, de um grupo separatista etc. De qualquer forma, é certo que agem contra um governo ilegal.

O crime político tem como referência, portanto, a defesa dos valores democráticos, a defesa do Estado de Direito. Sua nota característica essencial é a luta contra o poder ilegítimo, contra o poder ilegal. No Brasil, todos que lutaram contra a ditadura militar (de 1964-1985), na defesa dos valores democráticos, cometeram crime político (que é prescritível, anistiável e não extraditável). Mesmo que tais atos tenham atingido particulares, porque se trata de uma luta contra um governo ilegítimo.

Crime político contra a humanidade é o crime cometido contra a população civil (indiscriminadamente) ou contra agentes do Estado, por motivação política, mas que contesta um Estado legítimo (democraticamente eleito), um governo (formalmente) legal. Esse é o caso de Cesare Battisti e seu grupo, que contestavam (na década de 70, do século XX) um governo eleito, um governo legítimo (do ponto de vista formal). Nessa mesma situação, hoje, são os grupos armados que lutam contra o governo da Colômbia (Farc, etc.). Os crimes políticos contra a humanidade devem receber o mesmo tratamento jurídico dos crimes contra a humanidade: são imprescritíveis, não anistiáveis e admitem a extradição.

Distinção importante e extradição

Crimes contra a humanidade e crimes políticos puros: não são crimes políticos puros os graves atentados à moral e ao senso comum dos povos civilizados (assim entendidos os atentados do nazismo, os atentados das ditaduras, bem como os atentados contra governos formalmente legítimos, eleitos pelo povo).

Extradição: nossa CF proíbe a extradição de estrangeiros no caso dos crimes políticos. Mas atente bem: a CF está se referindo aos crimes políticos puros, porque neles existe uma finalidade altruísta, que é respeitar as pessoas que se opõem aos governos autoritários ou totalitários. Mas esse benefício (o da não extradição), característico dos crimes políticos puros, não pode ser estendido aos crimes contra a humanidade ou aos crimes políticos contra a humanidade, que provêm de políticas estatais ou de atos praticados contra Estado legítimo.

Conclusão: os delitos imputados a Cesare Battisti são delitos políticos contra a humanidade (porque ele e seu grupo lutavam contra um Estado formalmente legítimo). Assim, juridicamente não havia nenhum impedimento para decretar (aliás, tudo aconselhava) sua extradição.

Ditadura militar brasileira "versus" movimento armado comunista

Os crimes da ditadura militar brasileira são crimes contra a humanidade (assim decidiu a CIDH, caso Araguaia). São imprescritíveis, não anistiáveis e extraditáveis. Os crimes cometidos pelos opositores da ditadura são crimes políticos puros (prescritíveis, anistiáveis e não extraditáveis). Já os crimes cometidos por Cesare Battisti ou seu grupo (Movimento Armado Comunista italiano) são crimes políticos contra a humanidade (portanto, imprescritíveis, não anistiáveis e extraditáveis).

Não se pode confundir o que fizeram os opositores da ditadura brasileira com o que fizeram os opositores italianos (cf., nesse sentido, Renato Janine Ribeiro, O Estado de S. Paulo de 09/01/11, p. J3). Aqui no Brasil havia uma ditadura. O governo era ilegítimo, ou seja, não foi eleito pelo povo. O Estado foi tomado por alguns ditadores, que impuseram nova ordem. Muitos lutaram contra essa ditadura (Dilma, Serra, Genoíno, vários jornais, pluralidade de juristas etc.).

Inclusive oposicionistas pacíficos foram assassinados (Rubens Paiva, por exemplo). Tratava-se de um governo espúrio, opressivo e ditatorial. Era um governo ilegítimo. Na Itália dava-se o contrário: o governo era legítimo, eleito, formalmente legal. Logo, ilegal e ilegítimo foi o terror das organizações armadas contra o governo. Não se pode comparar Dilma, Serra, Genoíno etc. com Battisti. Os primeiros lutaram contra um governo ilegal. O último lutou contra um governo formalmente legítimo. E quem pega em arma para lutar contra um governo eleito pelo povo (democrático), deve assumir todos os ônus desse empreendimento. Porque, por pior que seja um governo democrático, é muito melhor que uma ditadura (Renato Janine).

Os crimes do Battisti, portanto, não são crimes políticos puros. Foram crimes políticos contra a humanidade: são imprescritíveis, não anistiáveis e extraditáveis. A CF, quando cuida da não extradição dos estrangeiros por crimes políticos, deve ser bem compreendida. Ela faz nítida referência aos crimes políticos puros.

Paradoxo a ser evitado

O paradoxal e surpreendente é a posição de quem é favorável à anistia de Battisti e seja contra a apuração dos delitos da ditadura militar brasileira (tal como determinou a CIDH, caso Araguaia). Por quê? Porque em ambos os casos nós estamos diante de crimes contra a humanidade, que são imprescritíveis, não anistiáveis e extraditáveis.

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*Diretor Presidente da Rede de Ensino LFG



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