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Não se fala em pacta sunt servanda nas relações jurídicas de consumo

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Atualizado às 07:50

Certa vez, quando eu ainda estava na ativa no Tribunal, julgamos um feito em que o consumidor reclamava de abusos praticados por um prestador de serviço. Examinando o contrato firmado, encontramos uma cláusula contratual, que era uma verdadeira pérola jurídica. Estava escrito:

"Aplica-se ao presente contrato o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90). Parágrafo único. No eventual conflito entre o Código de Defesa do Consumidor e as cláusulas aqui estabelecidas, prevalecem as cláusulas".

Pode?

Bem, infelizmente, cláusulas abusivas desse tipo são encontradas em todos os setores do mercado de consumo. Claro que a maior parte delas não é tão escancarada, mas são comuns e em grande quantidade. E sua ocorrência regular está ligada exatamente ao fato de que o consumidor não negocia nem consegue impor sua vontade representada em cláusulas porque, em matéria de consumo, como regra, não vige o sistema privatista do conhecido brocardo latino pacta sunt servanda.

Uma lei de proteção ao consumidor pressupõe entender a sociedade a que nós pertencemos. E, como se sabe, vivemos numa sociedade de massa. Dentre as várias características desse modelo, destaco uma que interessa aqui: a produção é planejada unilateralmente pelo fornecedor no seu gabinete, isto é, o produtor pensa e decide fazer uma larga oferta de produtos e serviços para serem adquiridos pelo maior número possível de pessoas. A ideia é ter um custo inicial para fabricar certo produto ou prestar certo serviço, e depois reproduzi-lo em série. Assim, por exemplo, planeja-se uma caneta esferográfica única e se a reproduz milhares, milhões de vezes.

Quando a montadora resolve produzir um automóvel, gasta certa quantia em dinheiro na criação de um único modelo, e depois o reproduz milhares de vezes, o que baixa o custo final de cada veículo, permitindo que o preço de varejo possa ser acessível a um maior número de pessoas.

Esse modelo de produção industrial, que é o da sociedade capitalista contemporânea, pressupõe planejamento estratégico unilateral do fornecedor, do fabricante, do produtor, do prestador do serviço etc. Ora, esse planejamento unilateral tinha de vir acompanhado de um modelo contratual. E este acabou por ter as mesmas características da produção. Aliás, já no começo do século XX, o contrato era planejado da mesma forma que a produção.

Não tinha sentido fazer um automóvel, reproduzi-lo vinte mil vezes, e depois fazer vinte mil contratos diferentes para os vinte mil compradores. Na verdade, quem faz um produto e o reproduz vinte mil vezes também faz um único contrato e o reproduz vinte mil vezes. Ou, no exemplo das instituições financeiras, milhões de vezes.

Esse padrão é, então, o de um modelo contratual no qual se supõe que, aquele que produz um produto ou um serviço de massa planeja um contrato de massa que veio a ser chamado pela Lei n. 8.078 de contrato de adesão. Lembre-se, por isso, que a primeira lei brasileira que tratou da questão foi exatamente o Código de Defesa do Consumidor no seu art. 54.

E por que o contrato é de adesão? Ele é de adesão por uma característica evidente e lógica: o consumidor só pode aderir. Ele não discute o conteúdo das cláusulas adredemente redigidas. Para comprar produtos e serviços, o consumidor só pode examinar as condições previamente estabelecidas pelo fornecedor e pagar o preço exigido, dentro das formas de pagamento também prefixadas.

Este é o modo de produção de produtos e serviços de massa do século XX. Só que nós aplicamos, no caso brasileiro, até 10 de março de 1991, o Código Civil às relações jurídicas de consumo, e isto gerou problemas sérios para a compreensão da própria sociedade.

Passamos a interpretar as relações jurídicas de consumo e os contratos com base na lei civil, inadequada para tanto, e como isso se deu até a penúltima década do século XX, ainda temos algumas dificuldades em entender o CDC em todos os seus aspectos. E, nessa questão contratual, nossa memória privatista impõe que, muitas vezes ao lermos o contrato, pensemos pacta sunt servanda, posto que no direito civil essa é uma das características contratuais, com fundamento na autonomia da vontade.

Acontece que isto não serve para as relações de consumo. Esse esquema legal privatista para interpretar contratos de consumo é equivocado, porque o consumidor não senta à mesa para negociar cláusulas contratuais. Na verdade, o consumidor vai ao mercado e recebe produtos e serviços postos e ofertados segundo regramentos que o CDC passou a controlar, e de forma inteligente.

Repito, pois, para finalizar e lutando contra nossa equivocada memória: em contrato de consumo deve-se esquecer o brocardo pacta sunt servanda.