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Desconfiança

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Atualizado em 25 de fevereiro de 2010 14:55

Ouço muita gente respeitável dizer que é preciso confiar desconfiando. Biblicamente falando, "sede mansos como as pombas e espertos como as serpentes". Confesso minha dificuldade em seguir esse estranho preceito. Por exemplo, quando o governo federal iniciou a campanha de prevenção da Aids, fez um estardalhaço danado, recomendando que os homens usassem sempre camisinha de Vênus (no meu tempo elas tinham nome e sobrenome) nas suas relações sexuais. "Sempre?", indaguei do locutor, que nada me respondeu, fazendo-se de desentendido. Quer dizer que quando eu vou manter relação sexual com minha mulher eu devo confiar nela mas desconfiando dela? Sabe-se lá o que ela anda fazendo por aí quando diz que vai trabalhar! Ou ao dentista. E vice-versa: imagine-se minha mulher a exigir que eu use caminha para não contaminá-la. "Sei não, aquela secretária dele tão ajeitadinha ..."

Quando se cuida de empregada doméstica meu sofrimento é enorme. Temos um compartimento na área de serviço onde guardamos estoque de produtos para o uso mensal. É aquela coisa burguesa da "compra para o mês". Por vezes minha mulher se preparava para fazer um prato especial, e quando ia procurar o atum ou a lata de ervilha, eis que se surpreendia: eles haviam-se escafedido. Haviam criado pernas, como dizia ela. "Deixa pra lá, minha querida, eles também têm fome. Furto famélico", brincava eu, trabalhando com a hipótese menos favorável à nossa funcionária. Mas, e quando desapareciam peças de roupa? "A máquina de lavar roupa deve de ter engolido as meias da senhora", explica a serviçal. Desgraçadamente, o tipo físico da empregada era o mesmo da minha mulher. "Quem sabe tua blusa comprada na França está extraviada por aí. Um dia desses ela aparece. Perna que leva é perna que traz." Era eu, todo complacente. E quem disse que as roupas retornavam?

A solução, disse-me alguém bem prático, é revistar a empregada quando ela se despede ao fim do dia de trabalho. "Não precisa ser todo dia não. Dê umas incertas, que elas se assustam!" E a coragem de submeter a moça a esse vexame?

Certa vez deu-se o impensável: a empregada, entusiasmadíssima, trouxe para nos mostrar as fotografias da festa de aniversário de seu filhinho caçula. Lá está ele todo pimpão pedalando o carrinho de plástico colorido. "Que bela criança!", diz a patroa, solícita. Lá está o bolo de aniversário, velinhas acesas, com o pessoal em volta da mesa. Até dava para ouvir o parabenza, como diz meu neto. E lá está também a nossa empregada, usando uma bela blusa com uma estampa inconfundível, pois somente na França era possível comprar aquele tipo de roupa. "Bela camisa, Fernandinha!", digo eu, recordando um antiquíssimo comercial, quase matando minha mulher de raiva.

De outra feita, a empregada compareceu ao serviço com um vistoso par de tênis. Exatamente do número, da cor e da marca daquele de que minha filha tinha dado falta. Exigir que a empregada mostrasse a nota fiscal seria ridículo. "Se nem nós guardamos nota fiscal das compras que fazemos, como exigir isso dela?", ponderei. O jeito foi engolir mais essa.

Pois passado algum tempo, uma dessas moças que havia trabalhado em nossa casa me telefona toda aflita, reclamando meus serviços profissionais. "Seguinte: minha patroa foi revistar minha bolsa e encontrou ali um cinto de seda de um vestido dela que tinha desaparecido. Ela afirma que eu é que levei o vestido e quer me levar pra delegacia. Não adianta eu jurar que não fui eu. Eu só peguei o cinto por causo de que ele não tem mais utilidade sem o vestido. É ou não é?" Dava-se que o filho da tal patroa era simplesmente delegado de polícia e a moça, salvo melhor juízo, teria na delegacia um tratamento que não era bem aquele que não seria bem o que se costuma ter em um spa.

Pensei nos bons momentos que ela nos proporcionara (cozinhava muito bem, era muito bem humorada e sempre tratara nossos filhos com muito afeto), afugentei as lembranças das coisas desaparecidas, e pedi-lhe que me pusesse em contato com a patroa. A senhora veio até o telefone e dei as melhores referências a respeito da moça. Ponderei de cá, insinuei de lá e, por fim, pedi-lhe que concedesse à suspeita o benefício da dúvida. Ela estranhou a expressão. Disse-lhe que tinha algum conhecimento de Direito e sugeri-lhe, então, que discutisse o assunto com o filho. E nos despedimos cordialmente.

Uns dias mais tarde, quando eu já arquivara o incidente no escaninho dos fatos encerrados, eis que aparece nossa ex-empregada com um presente com que pretendia expressar sua gratidão por minha exitosa interferência: um par de abotoaduras douradas, dentro do respectivo estojo, revestido de veludo. Seria de ouro? Não seria? Eu e minha mulher nos entreolhamos, eu mandei às favas o meu anjo da guarda, que teimava em me recordar aquele artigo do Código Penal que fala em receptação, qual é mesmo?, e trocamos com a empregada um outrora impensável abraço de reconciliação. Até porque o Natal era logo uns meses depois.