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Verdades temporárias

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Atualizado em 23 de setembro de 2010 11:07

 

"O tempo não pára no porto, não apita na curva, não espera ninguém."

Reginaldo Bessa
(clique aqui)

Como é duro envelhecer! É o que dizem todos aqueles que envelheceram. Não tenho motivos para duvidar deles. Lembro-me de meu pai, que havia nascido no século XIX, e que era, para os filhos, um velho aos cinquenta anos de idade, até porque havia nascido no último ano daquele distante século. Já minha mãe nascera no dia 23 de junho de 1907, mesmo dia, mesmo mês e mesmo ano em que nasceu Dolores Gonçalves Costa, que, aos 17 anos de idade, fugiu de casa para acompanhar um circo. De picadeiro em picadeiro acabou sendo chamada para fazer comédias na Atlântida com o Oscarito, Grande Otelo e Catalano, programas de TV, manifestações de irreverência no teatro, sem jamais ter tido a vida pacata de minha mãe. Que, por sinal, morreu, velha, ao ver dos netos, há muitos e muitos anos, enquanto a Dolores, rebatizada Dercy, cantava Carinhoso aos 100 anos de idade.

Meu pai não tinha a presunção nem a arrogância dos que obtiveram um diploma universitário, até porque jamais tivera tempo para perder nessas coisas menores. Era autodidata e, com isso, tudo o que fazia era, a cada dia, tentar diminuir sua auto-reconhecida ignorância, por mais que nós os filhos o considerássemos um homem genial. A imagem principal que guardo de meu pai era ele com um livro na mão ou com o olhar pedido longe, os dedos tamborilando sobre qualquer superfície, a mostrar que estava compondo algum dos seus belos sonetos.

Vez ou outra ele manifestava dúvida sobre a grafia desta ou daquela palavra, xingando os autores da reforma ortográfica. "Se ontem ontem tinha agá, por que motivo haveria hoje de não ter agá?" brincava ele, mostrando sua dificuldade em aceitar que o latino ad noctem, isto é, "na noite passada", tivesse dado no hontem de ontem, isto é, antes da tal reforma, e no ontem de hoje. Que tem agá. Falo do hoje, não do ontem.

Que diria ele de outros conceitos que para nós todos, até os de minha geração, eram verdades sedimentadas a cimento, cal e areia? Diga aí o nome dos afluentes do rio Amazonas. E meu pai nos ensinava isso, cantando um sambinha com a sucessão daqueles nomes indígenas, cujo conhecimento, soubemos depois, só interessaria aos contrabandistas de madeira nobre. E os nomes dos planetas? Lá vinha a lista, rezada como o incompreensível padre nosso. Que que esse padre tem a ver com isso? Latinices, meu filho, latinices. Para não falar naquele perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos os nossos devedores. Quem de nós alguma vez se dispôs a perdoar os nossos devedores, a não ser o Lula em relação aos países vizinhos, cujos dirigentes lhe são muy amigos, como todos temos visto ultimamente? Depois mudaram isso e nem sei mais como é que se reza isso hoje, mesmo porque, quem leva tal equivalência a sério?

Pois que diria meu velho pai se soubesse que os nossos velhos e sólidos vizinhos de vida intergalática foram rearranjados, como se constituíssem clubes de futebol? Temos hoje, para escândalo dos mais velhos, planetas de primeira e de segunda divisão.

Quando ouvíamos falar em Plutão, todos nós, sem a menor exceção, imaginávamos termos ali um planeta enorme, maior, muito maior, do que nossa pequena ervilha azul. Pois os astrônomos, com suas naves espaciais, tripuladas ou não, seus megatelescópios, suas traquitanas de nomes arrevesados, nos mostraram o tamanho de nossa ignorância. Ele se chama Plutão não por ser muitíssimo maior do que o cãozinho do Mickey (um camundongo tendo um cachorro menor do que ele era uma falta de lógica que jamais nos tirou o sono até porque o Pato Donald estava ali do lado para nos berrar aqueles grunhidos ininteligíveis que fatalmente nos fariam calar a boca), mas por causa de uma figura mitológica. Segundo se diz, o planeta Plutão recebeu esse nome por estar tão longe do Sol que fica em perpétua escuridão, já que o deus Plutão representa o inconsciente, a obscuridade, e, no limite, o inferno, onde ele reina. Verdade que muito fofoqueiro diz que o planeta recebeu esse nome, abreviado PL, para que se lembrassem de seu descobridor, o astrônomo Percival Lowell. Você se lembrava disso?

Fofocas de lado, o fato é que de todos os planetas de nossa infância, Plutão, paradoxalmente, era o menor de todos, coisa que nos haviam omitido, causando um buraco negro em nossa cultura, se me permite o Stephen Hawking. Nestes tempos pós-Humble, acaba-se descobrindo que se ele tem time para estar na primeira divisão, que dizer do Xena, um corpúsculo que, fita métrica na mão, descobriu-se que é menos pequeno do que o nosso bom e velho Plutão? A solução é criarmos duas divisões, considerando-se Plutão, Ceres e Xena participantes da segundona, enquanto os demais permanecem na primeira, agora com oito times, em lugar dos tradicionais nove. Se o Corinthians e o Vasco podem ser rebaixados, por que não um mísero pedregulho desses?

Mas quem é Xena? Era o nome do asteróide 5% maior do que Plutão, que foi rebatizado Éris, nome da deusa que preside a discórdia e a ilegalidade. Certamente numa homenagem a estes nossos tempos belicosos.

Então ficamos assim: até que o telescópio que nos convida, com seu nome, à humildade científica nos desminta, teremos oito planetas circulando em torno de nosso bom e velho sol (Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno) e três sub-planetas: Ceres, Plutão e Éris, sendo Ceres um asteróide que, como ocorre em certos trens da alegria de nosso Congresso Nacional, entrou de gaiato nessa reclassificação celeste, talvez por meio de algum ato secreto.

Isso, certamente, é como decorar nome de país africano. Serve para quê mesmo? Melhor aproveitar o pouco tempo que nos resta por aqui para conhecermos melhor o nosso planeta, deixando os outros por conta dos seus habitantes, sejam eles verdes ou vermelhos.