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Leis ilegais

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Atualizado em 3 de fevereiro de 2011 14:08

 

"A história costuma ser a mestra da vida, mas somente para aqueles que forem bons alunos."

Heródoto

"Quatro suplentes de senador, que vão exercer mandato apenas em janeiro, receberão, em média, R$ 100 mil cada um em benefícios."

Folha de S.Paulo
(edição de 6/1/2011)

"Presidente do Tribunal de Contas da União é contratado, sem licitação, por entidades sujeitas à fiscalização do tribunal."

Dos jornais

A história da Inglaterra é, infelizmente, pouco estudada nas Faculdades de Direito brasileiras. Poucos se recordam que o "devido processo legal", tão invocado hoje em dia em nossos tribunais, nasceu naquele país, no distante ano de 1215, chegando à nossa Constituição por intermédio da Constituição norte-americana.

Sua origem diz com abusos cometidos por governantes, coisa que não surgiu nos nossos dias, ao contrário do que parece a muitos.

Em 1133 nascia, na França, Henrique, filho do Conde de Anjou e da filha do rei Henrique I, da Inglaterra. Com a morte do rei inglês, houve disputas sangrentas pelo trono, culminando com a invasão da ilha pelas tropas do neto de Henrique I, que se intitulou Henrique II.

Suas primeiras providências foram no sentido de moralizar o reino, limitando os poderes nos nobres e criando um novo sistema de coleta de impostos. Foi iniciativa dele a edição do primeiro código de leis inglês. Além disso, nomeou magistrados com poderes de agir em nome da coroa, incentivando, porém, o julgamento pelo júri, que já era tradicional.

O filme Becket, baseado na peça homônima de Jean Anouilh, estrelado por Peter O'Toole e Richard Burton e dirigido por Peter Grenville, reproduz, com relativa fidelidade, o que foram os dias tormentosos daquele reinado.

Da vasta prole real, destacam-se os filhos Ricardo (cognominado Coração-de-Leão) e João (cognominado Sem-terra). Inicialmente, Henrique, filho mais velho do rei, e Ricardo insurgiram-se contra o pai, incentivados pela mãe, para conquistarem terras de além mar. A relação com o filho Ricardo piorou ainda mais com a elevação deste ao estatuto de herdeiro, depois da morte do irmão mais velho. Em Julho de 1189 Ricardo, auxiliado pelo rei Filipe II da França, derrotou o exército de Henrique em Chinon. Dois dias depois, o rei da Inglaterra morreu num castelo das redondezas, presumivelmente de ferimentos recebidos na batalha.

Ricardo, celebrizado por Sir Walter Scott como o heróico líder das Cruzadas com o epíteto de Coração-de-Leão, na verdade um homem imaturo, pouco afeito a seus deveres de soberano e extremamente belicoso, assumiu o trono com a morte do pai. Embora rei, abandonava as coisas do governo para dedicar-se a lutas externas e à procura do misterioso Santo Graal. Essas aventuras levaram o país a uma situação de quase-falência, o que exigia a elevação dos tributos, fato que mais aumentou sua já grande impopularidade.

John, também filho de Henrique II, sucedeu ao irmão Ricardo I no trono da Inglaterra, que assumiu em 1199, com apenas 32 anos de idade, aproveitando-se da ausência do rei, exatamente por estar participando das Cruzadas. Ainda era um período de grande tumulto, em razão não só das dívidas por ele herdadas como por estar o país envolvido em guerra com a França, que reivindicava as regiões de Anjou, Normandia e a Bretanha, pertencentes à coroa britânica. Isso já trazia inquietação entre os nobres desde o reinado de Henrique II, que, tanto quanto seu primogênito, havia governado o país com poderes cada vez maiores.

O novo rei não era, como fora seu irmão, um guerreiro. Entretanto, herdou a situação caótica do reino, que seu irmão havia levado praticamente à falência. Os barões, que não aceitavam o modo como os reis vinham limitando a autoridade deles, não tinham, porém, um pretexto adequado para insurgirem-se contra o soberano, mesmo porque a reivindicação do retorno de seu privilégios faria voltar-se contra eles a ira do povo.

O próprio rei, contudo, deu-lhes esse motivo quando, insurgindo-se contra a autoridade papal, se recusou a aceitar a designação de Stephen Langton para assumir o Arcebispado de Canterbury, em 1206. O papa Inocêncio III, em represália, além de excomungar o rei, determinou o fechamento de todas as igrejas do país, o que significou ficar o sofrido povo inglês sem o refrigério trazido por sua fé. A insatisfação popular levou o soberano a reconsiderar seu ato, submetendo-se à autoridade papal em 1213. Esse precedente seria habilmente explorado pela nobreza no futuro.

De fato, no ano seguinte, uma fracassada tentativa do rei de retomar parte das terras ocupadas pela França elevou o clima de confronto entre o baronato e o soberano. Estrategicamente, encarregaram ninguém menos do que o arcebispo de Canterbury para redigir uma petição dirigida ao rei John, onde era reivindicado o reconhecimento de alguns direitos dos súditos em face do monarca. Eram 63 temas, a maioria dos quais, porém, interessando apenas ao baronato.

Inicialmente o rei recusou-se a apor o selo real no documento, o que justificou que bispos e nobres realizassem a marcha do Exército de Deus e da Santa Igreja em direção à cidade de Londres, que foi por eles tomada, ameaçando alastrar a revolta por todo o país.

No dia 15 de junho de 1215 o rei John finalmente reconheceu que não tinha escolha e acolheu a petição, comprometendo-se a pautar sua conduta em relação aos súditos de acordo com o ali proposto. Apôs o selo real no documento, exclamando a frase célebre: "As well may they ask my crown!". Bem que poderiam pedir a minha coroa!

Formalizou-se, assim, a Magna Carta Libertatum, seu Concordia inter regem Johannem et Barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni Angliæ, semente do constitucionalismo moderno.

Na época, porém, da assinatura da Magna Carta a cláusula do due process ainda não estava expressa em texto algum. A expressão clássica apareceu somente em 1354, quando um ato do rei Eduardo III, atendendo a uma petição que lhe havia sido apresentada pelos nobres, assim se expressava: "no man, of what state or condition soever he be, shall be put out of his lands, or tenements, nor taken, nor imprisoned, nor indicted, nor put to death, without he be brought in to answer by due process of law". Em português: "nenhum homem, de qualquer estado ou condição que seja, será expulso de suas terras ou posses, nem detido, nem preso, nem indiciado nem levado à morte sem que seja chamado para responder (a uma acusação) sob o devido processo legal".

Com a promulgação da Constituição dos Estados Unidos da América do Norte, em 1789, o due process of law atravessou o oceano, trazido da Inglaterra e expressamente referido tanto na 5ª como na 14ª emendas à Constituição norte-americana. Em verdade, ele jamais foi claramente explicitado em lei, ao contrário do esperado por Edward Keynes: "Embora as cláusulas do devido processo legal sejam uma larga promessa de liberdade, elas não definem quais interesses específicos relacionados com liberdade e propriedade aí estão compreendidos. As cláusulas do devido processo expressam valores substanciais profundos que são a raison d'être de um governo constitucional - a proteção da vida, da liberdade e da propriedade, mas os autores da Quinta Emenda deixaram a definição dos interesses específicos relacionados com liberdade e propriedade ao Congresso e aos Tribunais" disse ele.

Em realidade, tem cabido ao Poder Judiciário daquele país definir o que se inclui na mencionada clause, quer sob o aspecto substantivo (eventual violação pelo Legislativo ou pelo Executivo de princípios constitucionais que cuidam do relacionamento equânime entre os indivíduos e o Estado), quer quanto ao aspecto formal (os princípios a serem observados para que o processo judicial tenha o caráter garantístico dos direitos humanos fundamentais, especialmente os relativos à vida, à liberdade e à propriedade).

O Brasil atual lembra aqueles tempos tormentosos. Os comentaristas políticos ressaltam que o governo Lula superou tudo o que já havíamos experimentado em termos de corrupção. A escolha dos novos ministros e a manutenção de muitos dos antigos, que compõem uma equipe de tal tamanho que não conhece semelhança em nenhum outro país, não justifica expectativas positivas, como ressaltam os mesmos comentaristas. Veja-se, por todos, a revista Veja n. 2.198, publicada em 5 de Janeiro deste ano.

Por outro lado, o Congresso Nacional, composto de muitos elementos cuja biografia diz mais com o Código Penal do que com a seriedade na feitura de leis, também vem de superar-se em seus desmandos, elevando, a partir de sofisma insustentável, os ganhos de seus membros, que, entre vencimentos e fringe benefits, superam muitíssimo os ganhos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, escolhidos falsamente como paradigma.

Quem porá um cobro a isso?

Caso as entidades legitimadas a fazê-lo não venham a suscitar, perante o Supremo Tribunal, a inconstitucionalidade daquele abuso, por violação clara do princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade (clique aqui), não será de estranhar que também aqui venhamos a ter uma "marcha sobre Londres", até porque nunca será demasia lembrar que, em 1964, por muito menos do que isso, tivemos o que tivemos, momento histórico que, segundo uma alta patente de nossas Forças Armadas, "não é motivo para vergonha" (clique aqui).

Cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém.