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Extrapolamentos

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Atualizado em 10 de novembro de 2011 11:14

 

"Ridendo castigat mores."

Gil Vicente ou Jean-Baptiste Poquelin, o popular Molière?


"As pessoas que tendem para o excesso, na ânsia de gracejar, são considerados bufões vulgares, esforçando-se por provocar o riso a qualquer preço. Seu interesse maior é provocar uma gargalhada, e não dizer o que é conveniente e evitar o desgosto naquelas pessoas que são objeto de seus gracejos."

Aristóteles, citado por Manuel Alceu Affonso Ferreira,
em petição onde reclama indenização por danos morais
em razão de ofensas cometidas contra a mãe grávida e o nascituro


"Acho o politically correct muito chato, mas, por outro lado, a falta de educação é inadmissível."

Washington Olivetto

O psiquiatra Flávio Gikovate, depois de haver atendido a mais de 7 mil pacientes e escrito mais de uma dezena de livros relativos ao chamado "relacionamento amoroso", resolveu agora indagar de si mesmo se hoje, com a experiência adquirida ao longo desses 40 anos, faria certas afirmações que fizera quando essa experiência era menor. Ele, como nós todos, dividia os seres humanos em dois grupos: eles, os egoístas, e nós, os generosos. "Pensava na generosidade como virtude e no egoísmo como vício", diz ele. Isso ainda vale hoje em dia?

Não vou buscar resumir suas reflexões, mas tentar o leitor com uma afirmação dele bastante sintomática: "A verdade é que a generosidade se estabelece em decorrência de uma fragilidade e se reforça por meio da intromissão da vaidade e do fato de ser ela uma conduta valorizada como virtude pelas crenças sociais em que temos vivido". Seria, porém, a generosidade efetivamente uma virtude?

Se fôssemos falar das virtudes não haveria espaço. Pense nisto: nestes tempos pragmáticos, para não dizer cínicos, ainda há lugar para a Ética, especialmente quando consideramos suas duas leis básicas: "faça para alguém aquilo que você espera que ele lhe faça" e "não faça para os outros algo que não gostaria que lhe fizessem"?

Certo humorista, bem humoradamente, dizia outro dia estar em risco de perder o emprego porque não pode mais fazer piada de português, nem de bêbado, nem de judeu, nem de árabe, nem de loira, nem de morena, nem de negro e, se bobear e fizer piada de papagaio, vai ser processado pelo Ibama. Ele falava, já se vê, do "politicamente correto", esse exagero fantasiado de correção moral. É próprio do humorista ser generoso? Há uma ética na atividade humorística?

A verdade é que hoje em dia não há mais distinção entre a fala das ruas e as conversas que se desenvolviam nos saraus e nas tertúlias, até porque não há mais tertúlias nem saraus. Não me lembro de ter dito, em minha mocidade, alguma inconveniência, alguma obscenidade que, naquele tempo, era chamada de palavrão. Entendia, como tantas outras pessoas, que esse linguajar era incompatível com a convivência social. Acompanhando o aperfeiçoamento das traduções dos filmes norte-americanos, verificaremos que a palavra shit, por exemplo, que antes era traduzida por droga, passou a corresponder, entre nós, à vulgar merda, e não se fala mais nisso. O fuck God, o son of a bitch e alguns outros menos votados passaram também por essa evolução. Certa aluna, já lá se vão décadas, procurou-me depois que saíram as notas das provas mais recentes, acompanhada de alguns colegas, que ali estavam para dar-lhe aquela força, como dizem eles. Em sua reclamação ela não deixou por menos: "mestre, você me fudeu!". Evolução?

Se a linguagem atual dos jovens é assim tão "descontraída", faz sentido patrulhar a fala dos humoristas? Veja a diferença. Vamos que um humorista, desses que fazem a tal stand comedy, assim narrasse um fato a seu público: uma pessoa entrou no bar e pediu uma garrafinha de água mineral. Entregue a garrafa, aquela pessoa tentou abri-la puxando a tampinha. O garção interveio: "Não é assim que se abre a garrafa. É preciso torcer". E enfatizou: "Torcer!". A tal pessoa colocou a garrafa sobre o balcão e se pôs a gritar, levantando ritmadamente os braços: "Ga-rra-fi-nha! Ga-rra-fi-nha!" Contasse ele a mesma piada substituindo "pessoa" por "baiano", "português", "loira" ou "palmeirense", garanto que seus ouvintes iriam rir muito mais.

Cariocas e paulistas sempre se bicaram, a partir de "verdades" discutíveis, como o pendor para o samba deles e o pendor para o trabalho dos de cá, mesmo porque São Paulo é "o túmulo do samba", no dizer de um carioca célebre (clique aqui). Com ou sem futebol, argentinos e brasileiros trocam botinadas por tudo e por nada. Franceses e belgas então, nem se fale.

Longe de mim defender um humorista que falte ao respeito devido às pessoas, a pretexto de estar realizando o seu trabalho. Ganhar dinheiro à custa da dignidade alheia, expondo pessoas perfeitamente identificáveis ao ridículo, parece-me coisa realmente inadmissível. Estamos diante de manifestação de egoísmo em elevadíssimo grau, donde sua reprovabilidade.

Pretendo, porém, ressaltar que todos nós temos nossos preconceitos, por mais generosos que nos consideremos.

A Ordem dos Advogados do Brasil, seção de São Paulo, tinha, naquela ocasião, além da Comissão de Direitos Humanos, de que o Ranulfo e eu fazíamos parte, subcomissões que cuidavam dos direitos das chamadas "minorias", a saber, a Subcomissão dos Direitos das Crianças, a Subcomissão dos Direitos da Mulher e a Subcomissão dos Direitos dos Negros, até porque ali não havia essa besteira de "afrodescendente", expressão erradíssima, pois faz supor que na África não nascem pessoas brancas. Se, por exemplo, o excelente escritor moçambicano Mia Couto (clique aqui) vier a casar-se com uma norte-americana loira, seu filho, embora afrodescendente, não será negro. Eis uma demonstração da estupidez daquela preconceituosa denominação, tão cretina como o segregacionista sistema de cotas universitárias, que, pretendendo solucionar um problema, cria outro, muito mais grave, pois, em nome da integração, oficializa a segregação racial, que jamais houve no Brasil, ao reverso do que sucedeu lá em cima (clique aqui).

Voltando à OAB, os colegas de outras comissões costumavam, naquela época, referir-se aos que tratávamos dos Direitos Humanos fundamentais como "aqueles sonhadores". Numa das sessões da comissão de que eu fazia parte, indaguei se os homossexuais já constituíam maioria, pois eu tinha em mãos dois casos envolvendo queixa de discriminação apresentada por gays. "Se há subcomissão relativa aos membros do sexo feminino e há subcomissão relativa aos negros, por que não há uma Subcomissão dos Direitos dos Homossexuais?" indaguei. "Será porque eles já formam maioria em nossa sociedade?" brinquei. Um dos membros da comissão, que era uma advogada nascida em Pernambuco, negra como a asa da graúna, indignou-se. Negra e mulher, além de inflamada, como era de seu perfil, levantou dramaticamente os dois braços e lançou seu surpreendente protesto, carregando no sotaque: "Meu caro Suannexx, você agora exxtrapolou!".

Quem sabe quando uma mulher negra e lésbica vier para a Comissão de Direitos Humanos a coisa mude, pensei dizer, mas evitei extrapolar mais ainda.