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Velhice

sexta-feira, 15 de setembro de 2006

Atualizado em 13 de setembro de 2006 07:53

Separação obrigatória de Bens

"A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado vai votar, em decisão terminativa, o projeto que permite às pessoas maiores de 60 anos a livre decisão sobre o regime de bens no casamento. O projeto revoga um inciso do Código Civil que impede esse procedimento."

(Migalhas, 7/8/2006)

Falo do Carl Gustav Jung tão freqüentemente que algumas pessoas já danam a censurar-me. Ainda agora acabo de comprar o primeiro volume da aplaudida biografia escrita pela Deirdre Bair, esse o incrível e indecorável nome da moça. Cuida-se de "uma obra imensa, repleta de rigorosa pesquisa histórica, sobre uma vida cheia de coragem, criatividade, decepção, sofrimento e glória", diz o Carlos Byington, pai da cantora Olívia e um dos grandes psicoterapeutas junguianos do Brasil, na contracapa do livro. Tenho eu culpa se o homem era um sábio e, como diz a Maria Helena, altamente prospectivo?

Pois está lá num depoimento à Aniela Jaffé, sua ex-paciente e depois renomada colega, um desabafo dado por ele quando já octogenário: "Eu já estou conformado em ser um póstumo de mim mesmo". Ele, de certa forma, antecipava aquilo que o Ângelo Bonetti, excelente violinista de Araraquara, me dizia quando eu lá judicava: "Meu caro doutor, acho que está na hora de eu morrer. Passei a vida toda envolto pela música, desde criança. Toco meu violino todos os dias, desde que me conheço por gente. Bach, Vivaldi, até Paganini. Quando ligo a televisão, porém, eles exibem uns moleques fazendo um barulho dos infernos dizendo que aquilo é música. E eles são aplaudidos. Só morrendo!"

Vejam se o Jung não é eterno: "It is difficult to be old in these days" desabafou ele numa carta a um amigo. E ele tinha ainda apenas 65 anos de idade! Imaginem como foram os 20 anos que ele ainda iria viver.

Norberto Bobbio, outra de minhas paixões, fala da própria velhice. Mas, que é velhice? "Aqueles que escreveram obras sobre a velhice, a começar por Cícero, tinham por volta de sessenta anos. Hoje, um sexagenário está velho apenas no sentido burocrático, porque chegou à idade em que geralmente tem direito a uma pensão. Já o octogenário, salvo exceções, era considerado um velho decrépito, de quem não valia a pena se ocupar. Hoje, ao contrário, a velhice, não burocrática, mas fisiológica, começa quando nos aproximamos dos oitenta que, afinal, é a idade média da vida".

Serão essas palavras válidas em nosso país? Eu não tinha mais de 50 anos quando, parando o carro junto a um semáforo, fui abordado por um negrão forte, cujo rosto indicava não ter mais de 16 anos, porém com um corpo de lutador de boxe. Rosto grave, ele me estende a mão direita com a palma para cima. Não sou avesso a diálogos junto aos cruzamentos, ao contrário do que me aconselham os medrosos de plantão. Baixo o vidro da janela e lhe pergunto o que ele pretende, como se eu não soubesse. "Dinhêro!" responde ele com uma economia de palavras sintomática. Baixa em mim o educador que sempre fui. "Você, com essa saúde, com esse corpanzil que poderia ser útil com uma enxada na mão, vagabundeando por aí?" Ele me olha com dois punhais nos olhos. Eu insisto. "Você não tem medo da polícia?" Ele mostra uns dentes alvos. "Poliça! Poliça! Pra que que tem adevogado?" Ulalá! O rapaz tem experiência na área jurídica. Respondo-lhe, ingênuo: "Claro que sei. Eu também sou advogado". Ele faz uma cara de espanto: "Quem? O senhor? Velhão desse jeito?"

Logo que atingi a idade da razão fui com a Maria Helena e a Thais ver uma exposição no MASP. Pedi três entradas à bilheteira. "Três não, duas", disse a Thais, com toda sinceridade, própria de sua delicada e veraz pessoa, dentista recém-formada que se dedica a pacientes especiais. "Ele não paga", esclarece, como se eu fosse um de seus pacientes. Confesso que aquilo foi um banho de imersão num lago escandinavo. Eu ainda não me dera conta de que havia transposto o cabo da Boa Esperança. Levei alguns dias para superar o trauma que aquela fedelha me havia produzido com sua frase cruel, embora verdadeira. "Que tal se puséssemos sobre a crueza da verdade o manto diáfano da fantasia, como queria o poeta?"

Devo confessar, porém, que não vejo a hora de chegar aos 70 anos. Só mais um ano e já poderei contar com a prescrição etária. Como se sabe, os menores de 21 anos e os maiores de 70 são tratados pela lei penal brasileira como se fossem semi-imputáveis, quase incapazes de saber a relevância dos atos que praticam, incapazes de distinguir o que é privado daquilo que deve permanecer público. Praticar crimes todos nós praticamos, mas chegando a setuagenário eu terei mais motivos para praticá-los, com a prescrição correndo pela metade. Talvez até eu me candidate a algum cargo eletivo. Do modo como funciona o Judiciário, eu com minha lucidez, um mandato eletivo na mão e os benefícios dos prazos prescricionais pela metade acho que nos próximos anos abrirei, finalmente, a tão sonhada conta na Suíça. Ou numa dessas ilhas cujo roteiro de viagem pode ser obtido nas páginas policiais dos jornais.

Entretanto, se bem conheço minha sina, estou certo de que, até o ano próximo, esse benfazejo dispositivo legal, pelo qual esperei por todos esses anos de uma quase insuportável honestidade, deverá ser revogado, tanto quanto aquele que logo mais me permitirá fazer dos meus inúmeros bens o que eu bem desejar, sem ter antecipados remorsos pela decepção que isso causará aos filhos na hora da partilha que se seguirá ao lançamento de minhas cinzas nos fjords escandinavos, como consta de minha solene declaração de última vontade.

Paciência! Melhor isso do que nada.