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Filho do Juiz (O)

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

Atualizado em 18 de janeiro de 2007 12:21

 

"Aviso: esta crônica contém ironia explícita."
(Luis Fernando Veríssimo)

Hoje meu pai voltará para casa. Depois de tantos anos ausente, retornará ao nosso convívio. Parece que o feitiço terminou.

Foi aqui que tudo começou. Foi por aquela estrada pedregosa que o feiticeiro veio, empurrado pelo populacho ululante. Caiu por duas vezes ao fazer aquela curva, sendo consolado por uma sirigaita, que parecia ser sua amante. E mais ali adiante foi que lhe deram fim, o merecido fim, no alto daquele outeiro. O Morro das Caveiras. Só o nome me traz arrepios. Um merecido fim, realmente.

Tenho nos olhos ainda as cenas, como se tivessem acorrido ontem. Parece que estou vendo a soldadesca tirar a roupa do feiticeiro, preparando-se para a execução. Era um prisioneiro altivo, com ar arrogante, como se fosse inocente. Um farsante completo. De onde viera? Com certeza dos infernos, onde aprendera a arte da dissimulação e do embuste. E a agitação social que ele ia provocando, com suas palavras insidiosas, com o pretexto de defender os pobres e injustiçados? E sua desconsideração para com as leis e as autoridades legalmente constituídas? A lei e a ordem, preceitos máximos insculpidos em nosso coração, sendo ultrajados. E nós deveríamos ficar silentes? Onde iria parar tudo isso se meu pai não tivesse dado um basta? Esse nacionalismo zelotense inconseqüente, xenófobo, jogando nosso povo contra nossos fiéis aliados, os nossos colonizadores? Permitamos isso e estaremos acabados.

Agora parece que estou vendo erguerem-no na trave. Vejo-o lá no alto, olhando-nos, como se nos interrogasse. Ou nos julgasse.

"Tenho sede", resmungou o condenado, do alto da trave.

"Como diz, ó bruxo?", perguntou-lhe um dos soldados mais divertidos. "Queres água? Pois terás a água e a oportunidade de repetires uma das tuas mágicas preferidas."

Saindo dali, o risonho soldado dirigiu-se a um dos rapazes, deu-lhe uns trocados e, com sua autoridade, mandou-o comprar do vinho mais vagabundo. "Veja que seja o pior", recomendou enfaticamente. Dentro de pouco tempo, voltou o rapaz com o vinagre. O soldado embebeu nele uma peça de tecido imunda e, com a lança levou o pano embebido aos lábios do condenado.

"Dizem que transformas água em vinho. Quero ver-te transformar agora vinho em água". E ria e ria.

Bem que o bruxo mereceu. Que lhe fizera meu pai? Acaso foi injusto ou grosseiro com ele? Deixou de ouvi-lo? Impediu-o de defender-se? Nada disso. Muito pelo contrário, quando o trouxeram preso, meu pai ainda lhe deu oportunidade para retratar-se, assegurando-lhe o sagrado direito de defesa.

"Quer dizer que tens poderes sobrenaturais? Curas? Levitas? Fazes cegos verem e cochos andarem? Julga-nos idiotas?"

A resposta que o prisioneiro lhe deu bem que merecia uns dentes arrancados. Ou a própria língua. Pelos menos uma bofetada. Nem isso meu pai lhe deu.

E quem o condenou à morte? Acaso foi meu pai? Não. Digo que não e não. Foram seus amigos, os aprendizes de feiticeiro. Eles é que decretaram, com seu silêncio, a morte do seu tão falado mestre.

Com efeito, quando meu pai consultou o povo sobre o destino dos prisioneiros, os amigos do outro criminoso estavam lá, no meio da ralé. Sem temor, levados pela admiração a seu líder, eles orientavam o povo a preferi-lo ao bruxo. Um criminoso comum não interfere no juízo das pessoas. Leva-lhes a vida, ou a fortuna. Mas nenhum desses criminosos provoca comoção social. O homicida não mexe com nosso comodismo diante da vida, nossa prudente passividade diante da autoridade corrupta. Um criminoso comum tem seu preço. Basta que paguemos o preço, tolerando sua convivência conosco, como fazemos com os políticos, ou afastando-o do convívio das pessoas por tempo suficiente, para termos paz. Já um fanático, não. Esse tem um poder mágico diabólico. Com uma fala mansa, um jeito de aparência inofensiva, ele introduz no coração dos homens a semente da cizânia, da desconfiança. Leva filhos a encararem os pais, sem respeito nem temor. Leva súditos a questionarem ordens, a duvidarem da seriedade dos governantes.

Pois os amigos do bruxo silenciaram. Talvez no fundo nem eles acreditassem em seu mestre. Se acreditavam, onde estavam se não ouvi uma só vez o nome dele ser pronunciado na multidão. E foi meu pai quem o condenou, então? Claro que não. Foi o povo, foram os jurados, pois vivemos em uma democracia. E foram os amigos dele, que silenciaram, admitindo sua culpa, quando deveriam lutar por ele. Tanto que meu pai publicamente lavou as mãos, para isentar-se de culpa.

E foi aí que o feitiço aconteceu. À medida que o bruxo era levado para o local da execução, as mãos de meu pai foram apresentando umas manchas muito estranhas. Alaranjadas a princípio, foram-se tornando vermelhas em poucas horas. E aquelas manchas vermelhas, cor de sangue, visíveis a distância, passaram a incomodar meu pai terrivelmente. Inicialmente ele procurou não dar muita importância a elas. Mas a preocupação de lavá-las a toda hora foi-se convertendo paulatinamente em mania. Logo, era autêntica obsessão compulsiva. Uma compulsão diabólica. E até parece que quanto mais ele as lavava, mais viva ficava aquela cor. De nada adiantaram os ungüentos, nem os banhos. E meu pai não suportou esse peso. Sem dormir nem comer, gesticulando e andando sempre pela casa, tornou-se outra pessoa, como possuído por um espírito imundo. Interná-lo tornou-se necessário, até mesmo para evitar que consumasse o suicídio, tantas vezes tentado.

Agora ele volta do sanatório, onde nossos melhores médicos após tantos anos de insistência, parece haverem conseguido tirar de suas mãos as manchas e de sua cabeça a loucura. Dizem por aí que foi um médico amigo e seguidor do bruxo quem o curou. Bruxaria cura-se bruxaria. Um tal Lucas, médico de homens e de almas, como dizem. Não creio, porém. Quem acreditaria que um homem tão competente, como deve ser esse médico, acreditaria nas mentiras e promessas absurdas feitas por um feiticeiro vulgar?