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Golpes

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Atualizado em 27 de setembro de 2007 10:22

 

"Agora já não é normal o que dá de malandro regular, profissional, malandro com o aparato de malandro oficial, malandro candidato a malandro federal, malandro com retrato na coluna social..."

Chico Buarque

Quem nunca freqüentou um tribunal ou uma vara criminal ou mesmo um cartório criminal não imagina do que é capaz a mente humana. Eu particularmente tenho alguma atração pelo estelionato, forma refinada de crime que, por vezes, mais parece uma obra de arte. Um bom conto do vigário, por exemplo, é algo fascinante, especialmente quando praticado contra pessoas que se julgam mais espertas do que nós e que esperam lucrar com a imbecilidade daquele que lhe está fazendo uma oferta dessas.

Ao tempo em que meu falecido pai dirigia a Casa de Detenção, quando ela ainda era naquele casarão antigo ali da avenida Tiradentes, lá estava um hóspede que tinha uma história singular : ele, um refinado malandro, havia matado um colega de falcatruas. Motivo: o colega lhe havia conseguido vender uma máquina que fabricava autênticas notas de dólares, uma guitarra, como se denominava na época. Pago o preço, ele descobriu que a máquina não fabricava nem notas de mil réis. Alguém tão esperto, como o Diabo Loiro se considerava, ser enganado por um João Soares qualquer só poderia merecer um balaço entre os olhos.

Meu colega Honoré de Balzac já dizia, aí por volta de 1825 que "a vida pode ser considerada um perpétuo combate entre ricos e pobres. Os primeiros estão entrincheirados numa praça-forte cercada de muralhas de bronze e abarrotada de munições; os segundos sondam, saltam, atacam, derrubam, corroem as muralhas; e, apesar dos muros e dos portões, apesar dos fossos e da artilharia, raramente os assaltantes, esses cossacos do Estado social, saem da empreitada de mãos vazias". Veja o ano: 1825 !

E olhe que ele sabia das coisas, pois era mestre em dar golpes naqueles que confiavam nele. Fosse hoje, se preso e processado, restaria safo, porquanto seu hábil advogado demonstraria que aquela mania dele de só comprar tapetes persas e encher a casa com enfeites de prata de lei ou de uns tantos quilates de ouro era, qualquer um está a ver, prova comprovada de que o homem padecia de psicose maníaco-depressiva, basta ler seus livros para verificar que. E aqui está o laudo do doutor fulano de tal, PhD em não sei onde que garante que.

E lá estaria o Honoré não só liberto como ainda gozando de novas oportunidades para exercitar seu melhor ofício : tapear. Além de escrever belíssimos romances.

Cito um caso a que cada um poderá dar seu próprio julgamento, como é comum em casos tais.

Uma senhora elegantíssima comparece ao consultório luxuoso de certo psiquiatra, famoso porque cobra os olhos da cara, até porque só atende pessoas de alto coturno, se é que a senhora sabe o que é um coturno. O motorista de madame pergunta primeiro à secretária onde poderia deixar estacionado o Porsche em que trazia sua patroa, o que também serviria para mostrar à vizinhança o nível de clientes que o homem costuma receber. Nova consulta na semana seguinte e o carro agora é um Jaguar. Coloque na mesma vaga do doutor, que hoje veio com um carro só, por favor.

A ricaça mostra-se preocupadíssima porque seu filho, ao que tudo indica, estaria envolvido com drogas. Todo o dinheiro que ela lhe dá desaparece da noite para o dia, sem que ele explique devidamente o destino daquela pequena fortuna. Fortuna para os demais, pois para ela aquilo era ninharia. O que a preocupa mesmo é não saber onde está indo parar aquele dinheiro.

Pior : por vezes ele faz compras enormes, como obras de arte, sem que nem ela nem o marido vejam essas tais obras, apenas as faturas. Que fazer, doutor Manrich ? Na próxima vez, mande seu filho falar comigo, decreta o homem.

Na semana seguinte a ricaça vai a uma joalheria, onde pretende comprar um belíssimo colar de. Coisa aí de mais de. O preço, o vendedor reconhece, é elevadíssimo, mas a jóia ficara muito bem em seu belo pescoço, como a senhora pode ver naquele espelho de cristal ali no fundo da loja. Convencida disso, ela abre a carteira e conta quanto de dólares traz. Não dá para pagar nem a caixa da jóia. Se o senhor não se importar, nós saímos daqui e vamos ao escritório do meu marido, que lhe fará o cheque. Ao ver o colar em meu pescoço, ele nem vacilará em fazer minha vontade.

O jovem gerente informa seu imediato de que se ausentará por alguns instantes e seguem ele e a ricaça ao escritório do tal marido. O motorista estaciona o carro na vaga já conhecida e ela se dispõe a falar com o marido, enquanto o gerente da joalheria aguarda na sala de espera do psiquiatra, por sinal, viúvo há alguns anos.

Atendida pelo Dr. Manrich, em caráter de urgência, como em voz baixa informara à secretária, ela não precisa de mais de cinco minutos para convencer o médico a receber seu filho, lugar involuntariamente interpretado pelo gerente da joalheria logo que ela deixa a sala do psiquiatra, a quem também em voz baixa agradece a gentileza que lhe está fazendo.

"Então que história é essa de comprar jóias de valores elevados ?" começa o doutor, dirigindo-se ao presumido filho da ricaça. "Comprar não, vender", diz o gerente da joalheria. Aliás, o valor é elevado mas a qualidade está acima de qualquer suspeita, responde o gerente, dando seguimento a uma série de equívocos que só vem a ser desvendada muito tempo depois, quando o carro, evidentemente alugado, dirigido pelo cúmplice da malandra, que se passara por ricaça, já havia sido entregue à locadora. Onde havia sido locado mediante a apresentação de documentos que haviam passado a noite no interior de uma geladeira, como diria ela ao delegado de polícia se algum dia viesse a ser identificada, coisa inimaginável.

Felizmente, as joalherias, como os bancos, fazem seguro que lhes garante o reembolso dos prejuízos causados por malandros. O fato de constar do boletim de ocorrência uma relação de jóias muito superior ao que efetivamente fora furtado pela falsa ricaça, tanto quanto uma importância muito maior do que aquela que os ladrões levaram efetivamente quando do assalto a uma agência bancária é coisa de somenos importância, talvez até adiáfora, como diria algum entendido em Direito.

E o fato de esta crônica haver sido desavergonhadamente subtraída de um dos livros escritos pelo exímio Honoré de Balzac só vai ser descoberto por alguém que não tenha coisa mais importante para fazer do que estar perdendo seu valioso tempo a ler autores franceses nos dias de hoje.