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Idiotices

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Atualizado em 7 de agosto de 2008 14:08

 

"Pensar incomoda,
como andar à chuva
quando o vento cresce
e parece que chove mais."

Alberto Caeiro
(pela mão de Fernando Pessoa)

Graças às leituras feitas na mocidade, acabei enveredando pelo campo da ética, dos direitos fundamentais do ser humano e pelo socialismo. Qual socialismo ? Qualquer deles seria melhor do que uma ideologia que propõe o individualismo mais irresponsável, o louco empenho para a conquista do primeiro milhão e, acima de tudo, a procura do lucro ilimitável, nem que seja estimulando candidatos notoriamente corruptos a conquistarem o governo de seus países e, depois, pagarem aos "estimuladores" a conta, nem que seja à custa do bem estar de seu povo. Isso, naquele tempo, se chamava imperialismo. Se você tem perdido seu tempo lendo o balanço dos bancos que operam no Brasil e é vítima do lamentável serviço prestado pelos bancos em nosso país terá uma pálida idéia daquilo a que me estou a referir. Tudo isso era a negação do que os franceses haviam sintetizado no liberté, egalité et fraternité.

O tempo foi passando e descobri que liberdade, como tudo mais, era apenas um mero conceito. Cheguei a colocar num livrinho esta historieta: King Kong é capturado na África e trazido numa gaiola à América. Ele tem um olhar triste, pelos limites que lhe impõem as grades da gaiola. Certo dia, o tratador se distrai e o gorila foge da gaiola. Ele conquistou a liberdade ? Sim e não. É que a gaiola está dentro de um quarto, que tem as portas trancadas e as janelas gradeadas. Agarrado às grades da janela, ele lança um olhar triste lá para fora do quarto onde se encontra preso, sonhando com a liberdade e os familiares que deixou na África.

Seu tratador, que não se emendou, um dia deixa a porta do quarto aberta e o gorila foge dali. Ele conquistou a liberdade ? Sim e não. É que a casa, onde está o tal quarto e que tem outros cômodos, está com todas as portas trancadas e todas as janelas gradeadas. Agarrado às grades de uma dessas janelas, ele lança um olhar triste lá para fora da casa onde se encontra preso, sonhando com a liberdade e tudo mais que ela representa.

Seu tratador, que, positivamente, está querendo ser despedido por justa causa, um dia deixa a porta da casa aberta e o gorila foge dali. Ele conquistou a liberdade ? Sim e não. É que tal casa fica numa ilha, não havendo ponte que a ligue ao continente nem o continente americano à África. Prossiga você agora a história e verá que sempre haverá um limite a ser transposto, até porque nós não sabemos o que um gorila pensa quando vê as estrelas no céu noturno. E você, que pensa ?

Tive oportunidade de conhecer uma tentativa de igualdade visitando Cuba. Ali não vi crianças sem uniforme escolar, nem jovens vendendo quinquilharias junto aos semáforos, seja noite seja dia. Não vi velhos caídos na calçada nem pedindo esmolas. Não vi famílias morando na rua nem em "cidades de lata", como em alguns países são eufemicamente chamadas as nossas sempre crescentes favelas, que alguns de nossos compositores populares, irresponsavelmente, pintaram com cores fantasiosas. Cada casa dessas é, na verdade, um "barracão de zinco, tradição de meu país; barracão de zinco, pobre e tão infeliz", como disseram Luis Antonio de Pádua Vieira da Costa e Oldemar Magalhães, há tantos lustros, em samba com direito a ser cantado pela Eliseth Cardoso, ao som do Jacob do Bandolim, que, além de ter sido o maior bandolinista que o Brasil já produziu, ainda se dava o luxo de ser serventuário da Justiça no Rio de Janeiro nas horas vagas.

Em Cuba, por motivos vários, aquela igualdade ficou apenas no primeiro patamar, ao contrário do que ocorreu na Noruega, onde, graças ao petróleo do Mar do Norte, temos um socialismo alguns degraus acima. Em ambas aquelas sociedades, porém, o mesmo preço: uma juventude sem estímulo algum para um crescimento integral das personalidades que as compõem. Ser igual é, segundo se aprende naqueles países, algo profundamente desestimulante. Quem trabalha tem o que comer e onde morar; quem não trabalha também. Tal como numa comunidade religiosa, sintetizou-me um padre brasileiro que residiu em Cuba por muitos anos.

Quanto à fraternidade, nem os filhos de mesmos pais costumam acreditar nela. Não trago o testemunho cínico do Mário Monicelli e seu Parente é Serpente, mas a própria Bíblia. Claro que eu não teria o mau gosto de citar a dupla Caim e Abel, mas seus vizinhos Isaú e Jacó, nome de dupla de violeiros. Se não conhece essa fraternidade, pergunte ao Google que ele lhe mostra. Isso se não preferir a ironia de mestre Machado de Assis.

Sobre o socialismo e as decepções que despejou, como água gelada, sobre tantos idealistas, eu poderia indicar o livro do trio Mendoza/Llosa/Montaner e seu Manual do Perfeito Idiota Latino Americano, no qual eles falam exatamente da demagogia que parece inseparável dos políticos latino-americanos. Aliás, eles, que parecem escalação de seleção uruguaia de futebol, vêm agora com a carga toda no recente A Volta do Idiota, no qual não poupam nossa gente.

Não quero, entretanto, falar dos políticos brasileiros, mas de gente como eu e você, que criamos e alimentamos esses demagogos, que de idiotas não têm nada, até porque os idiotas, no caso, somos nós.

Um dos pontos focados por aqueles três autores, de currículos tão diversos e conclusões tão semelhantes, diz respeito ao vício do latino-americano de contar com o Estado como o Grande Benfeitor, algo muito próximo do que ocorre na religião, onde tudo está nas mãos de Deus. Os profissionais do Direito que vêm tentando resolver conflitos de interesses na base da conciliação e da arbitragem sabem do que falo. Se uma decisão não tiver o selo sagrado do Judiciário, ela vale, para a maioria dos brasileiros, menos do que um traque. Veja-se o barulho que se fez quando o nosso legislador pretendeu retirar dos trâmites judiciais os procedimentos relativos ao inventário de bens se o de cujus deixou apenas herdeiros capazes, sem os famigerados decujinhos da velha piada. E o divórcio a vínculo conjugal, quando a ser realizado consensualmente, precisa de intervenção de juiz por quê ? Rigorosamente, deveria haver juiz e promotor antes da celebração do casamento, para advertir os nubentes do risco que estão a correr. Isso para não falar na frustração do ministro Hélio Beltrão e sua tentativa de desburocratizar o Serviço Público brasileiro. A propósito: você aceita um recibo de quitação sem que a firma do signatário esteja reconhecida por um cartorário ?

Não é, porém, sobre nada disso que desejo falar, nesta dança de louco bêbado, mas de um outro tema, que tudo tem a ver com o acima dito.

Sabem os que conhecem a cidade de São Paulo que o bairro da Vila Nova Conceição é famoso por seus apartamentos suntuosos, mesmo porque, segundo se diz, o metro quadrado naquele bairro seria o mais caro do país. Fácil, pois, imaginar o nível social das pessoas que ali moram. Há no bairro uma praça, onde babás, com suas impecáveis roupas brancas, levam aquelas belas e saudáveis crianças que ali residem, muitas delas de tenra idade, para distraírem-se e ali brincar todas as manhãs. Pois bem: tal pracinha está tomada pelo mato, e as plantas que ali um dia foram plantadas, talvez pela Prefeitura, não são visitadas por jardineiro há muito tempo. O aspecto geral daquilo é de abandono. Qual a explicação para isso ? Simples: a Prefeitura Municipal esqueceu-se do bairro. Certamente os moradores do tal rico bairro estão inconformados com isso. Mas aí entram as reflexões do trio de autores acima referidos : quanto os proprietários dos riquíssimos apartamentos que ali se encontram gastariam por mês para criar e manter uma Associação dos Amigos da Vila Nova Conceição e, assim, proporcionar a seus próprios filhos um ambiente mais decente para tais crianças passarem as manhãs, enquanto os pais se ocupam em aumentar o seu já enorme patrimônio individual? Menos da metade do que gastam numa refeição ligeira feita num dos restaurantes do bairro.

Isso me lembra a ocasião em que fui convidado para dar uma palestra em outro Estado sobre algum tema que se incluía em meu limitado repertório. Uma comitiva foi buscar-me no aeroporto e, ao levar-me para o local da tal palestra, seus membros fizeram questão de passar pelo bairro mais elegante da cidade. Ao iniciar a palestra, após os agradecimentos do costume, registrei que ainda não conhecia aquela cidade, mas levaria comigo uma certeza. Havia-me sido mostrado o bairro mais rico da cidade e eu tinha notado que, de fato, apresentava ele belíssimos sobrados construídos em ambos os lados de elegantíssima avenida. Ao longo do centro desta havia um pequeno córrego, no qual os moradores dos tais riquíssimos sobrados despejavam o esgoto de suas casas. Isso me dava uma certeza, disse-lhes eu: os moradores desta cidade são apreciadores do cheiro de merda. Se não fossem, teriam providenciado, às suas custas, a canalização daquele fétido córrego.

Quando terminei a palestra, obviamente não apareceu ninguém para levar-me ao aeroporto. Se eu não tivesse alguns trocados no bolso para o táxi ...