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Reflexões ao Espelho

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Atualizado às 07:47

 

Todas as manhãs, ele gasta cerca de meia hora diante do espelho. Enquanto faz a barba, conversa consigo mesmo, naquela manifestação esquizóide que todos temos de vez em quando, pensando na vida e na morte, nos processos e na justiça, na verdade e na mentira. "Aquela preliminar daquela ação anulatória está difícil de derrubar, mas creio que encontrarei no Theotônio alguma coisa que." Admira sua bela imagem ali refletida, procurando esquecer que aquilo que ali aparece é ela invertida. O inverso do bonito é o feio?

Na verdade, se esquecermos o volume de feitos que aguardam distribuição, a fita da máquina do escrevente (ainda se usa máquina de escrever nesta nossa distante comarca, Deus meu!) que deveria ter sido trocada há dois meses, a goteira na sala de audiência que nos obriga a lançar mão de bules e panelas para não termos os pés encharcados, o ventilador que está sem uma das pás, o porteiro do auditório que é surdo, o promotor que não aparece no fórum há quatro dias, o advogado dativo que se esqueceu de passar no fim do expediente para assinar todos os termos das audiências criminais, o degrau que range cada vez que alguém sobe a escada, a juíza que passa boa parte do tempo namorando ao telefone, no mais a Justiça vai muito bem, obrigado.

"Os juízes deveriam pedir a algum vereador, ou deputado, senador, sei lá, não entendo muito dessas coisas, que instituíssem o dia dos presos. Sem eles, o leite de nossas crianças, de nós, os criminalistas, talvez demorasse um pouco mais para chegar", pondera. "É na gaiola que o canário canta", aconselha um advogado bastante calejado. "Habeas corpus é habeas pernas. Solta ele, e quem mais acha? E o teu, quem paga? Parta de um pressuposto básico, meu jovem: se ele não está preso por este crime, deve estar pagando o que nós não conhecemos. Mas Deus conhece tudo e todos. E nada acontece sem que Ele permita, é ou não é? Não conhece a história de Santo Efren? Pergunta ali ao Galli que ele te conta." O Galli a que ele se refere é um advogado novato, que tem uma visão fatalista das coisas. É maçom, e aquele olho dentro do esquadro persegue o homem noite e dia. Até na escuridão do quarto ele consegue ver aquele olho acompanhando tudo o que ele sonha.

Mais umas escanhoadas e ele conclui que sabonete é supérfluo, espuma automática de barbear é supérflua, ar condicionado no automóvel é supérfluo, revista pornô é supérflua, caixão de defunto feito de jacarandá da Bahia é supérfluo, anticoncepcional é supérfluo, gaiola de passarinho é supérflua, semáforo é supérfluo, deputado é supérfluo, papel higiênico é supérfluo. Necessária mesmo só a liberdade. "Poesia é supérflua", completaria o veterano causídico.

O homem nasce com a rapidez da tartaruga, a paciência de um leão faminto, a determinação de um bicho-preguiça, a capacidade de transigir de uma mula, a sobranceria de uma hiena, o desamor de uma elefoa. Só o sadismo é realmente humano. "Não me comovo um átimo com a dor alheia. Dor é purgação, purificação. Faça um doce de leite sem submeter os ingredientes ao suplício do fogo se for capaz. E a pinga? Como transformar aquela garapa suja, avinagrada à custa do cadáver putrefato de alguma ave, naquela água translúcida, que nos desce pela goela, generosa no prazer que nos concede, sem o fogo da destilação? Que seria de nosso prazer diário sem o fogo?", pergunta sem fazer trocadilho, que ele não é dessas coisas. "Só bebo socialmente, pergunte ali à patroa", desafia.

"E se tens o mau gosto de rejeitar a branquinha, diga-me qual a origem da água que brota na tua torneira? Acaso já estiveste em alguma estação de tratamento de água? Ou, mais exatamente, estação de tratamento de esgoto? Pois a água que te chega nos encanamentos nada mais é do que esgoto depurado quimicamente. E que antes de beber tu farás passar pelo fogo purificador da fervura esterilizadora. É ou não é? Memento, homo, quia merda est et in merdis reverteris!"

Ele não pára por aí. "Aliás, sabias que em Nova Iorque há uma empresa que recolhe o esgoto da cidade, dá-lhe um tratamento e a gordura obtida é transformada em margarina? O que os olhos não vêem ..."

Sim, irmão, quando vemos nossos filhos e netos com nossa cara, parece que isso é a vingança que a Natureza nos preparou, uma condenação a sermos eternamente lembrados pelos que aqui ficarão. Mesmo após a nossa morte, todos se lembrarão do mal que fizemos, vendo-nos estampados no rosto daqueles inocentes que aqui ficaram. Esse mesmo rosto que agora me sorri lá do espelho, mesmo estando eu tão sério como penso que estou. Um rosto que me lembra meu pai, sempre incapaz de rir quando estava em nossa casa, mas que não rejeitava os galanteios das alunas, que o faziam dar sonoras gargalhadas e que vibravam com os atrevimentos das mãos dele. Um rosto bifronte, jânico, menos por homenagem ao ex-presidente e suas maluquices, e mais pelo personagem mitológico que nos retrata a todos e nos mostra como somos.

Ao fim da barba, a loção que, ardendo pra cacete, vai cicatrizar os lanhos produzidos pela gilete nova. "Já reparou que gilete é como juiz criminal? Tem de ficar mais velha para não produzir tanto sofrimento", filosofa.

Ele hoje vem com tudo. O promotor que se prepare.