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Planejam sufocar o STF, até que ele perca os sentidos

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Atualizado às 08:45

Em julho desse ano, em entrevista à TV Cidade, de Fortaleza, o candidato a presidente pelo PSL, o deputado federal Jair Bolsonaro, afirmou que pretende ampliar o total de ministros do Supremo Tribunal Federal para poder interferir em sua composição e assim garantir para si a indicação de uma maioria capaz de lhe fazer as vontades.

"Temos discutido passar para 21 ministros, para botar pelo menos dez isentos lá dentro", justificou o Capitão. Vai faltar espaço no Plenário para tanta gente. Mas o arremate foi pior: "para termos a maioria lá dentro. Pensamos até nisso porque para você, como presidente, governar com esse Supremo que está aí está complicado". Que coisa!

Propostas para suprimir conquistas fundamentais não são novidades no rebotalho do poder. Um ditador, diante de um assessor que lhe dizia que o habeas corpus era uma cláusula pétrea sem chance de supressão, teria respondido: "Para cada cláusula pétrea, apresentaremos uma emenda britadeira". Pois não.

É claro que podemos estar diante de uma proposta vazia feita em tempo de eleição apenas para agradar alguma parcela do eleitorado. Ou não. Caso ela se materialize, a chance de aprovação é grande. Sufocar o STF é um sonho antigo de muitos congressistas, mas irrealizado por faltar figuras talhadas para a missão. Agora, o plano encontrou homens com disposição. Será agoniante ver o STF se debatendo sem ar, tentando gritar em vão até perder os sentidos. Suprema Corte nenhuma merece correr esse risco.

Com o Diário Oficial da União à sua disposição, uma popularidade eletrizante nas ruas e militares postados ao seu redor, o Capitão e o General terão os meios para realizar o intento, caso queiram. Por maior que seja a gritaria de alguns setores, não tardará para que homens fascinados pelo poder comecem a achar a ideia razoável. Será a chance de almejar um gabinete para chamar de seu e, dentro dele, lustrar as botas do poder.

Mas a proposta é inconstitucional "de Deus a Virgílio Távora". A menção a Deus vem do Preâmbulo da Constituição, que fala "sob a proteção de Deus". E Virgílio Távora foi quem assinou a Constituição por último. Ou seja, é inconstitucional do início ao fim.

Não que uma emenda não possa alterar a quantidade de ministros em tribunais superiores. A Emenda à Constituição 45, por exemplo, o fez quanto ao Tribunal Superior do Trabalho. Mas quanto ao Supremo Tribunal Federal, é diferente, porque toda a conformação institucional dessa Corte é diversa.

Apenas o STF recebe, em nome da proteção dos incisos do art. 5º, a missão de poder contramajoritário postado como guardião precípuo da Constituição. E mais. Ela é mais do que uma Corte Superior, é a única Corte Suprema, o órgão de cúpula de todo o Poder Judiciário com membros presidindo tanto o Conselho Nacional de Justiça como o Tribunal Superior Eleitoral. Tudo no STF é institucionalmente elevado.

Nesse sentido, vale ler o inciso III do § 4º do art. 60 da Constituição, enquanto ele ainda está por aí. Dispõe que "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: "III - a separação dos Poderes"" É uma cláusula pétrea.

No Brasil, de todos os tribunais o STF é o que, à luz da Constituição, viabiliza a "separação dos poderes" com julgamentos dotados de efeitos sobre toda a população.

Segundo o art. 101, o STF compõe-se de onze ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. É o formato para, segundo o art. 102, agir, "precipuamente", na "guarda da Constituição". Nenhum outro tribunal conta com essa vocação. Aqui reside a preservação dos direitos e garantias fundamentais.

Por isso, o STF é o único tribunal a ser chamado de "legislador negativo", capaz de desfazer com efeitos abrangentes, e à luz da Constituição Federal, aquilo que os legisladores do Brasil - União, Estados, Distrito Federal e Municípios - fazem. Tudo para que sejamos, como determina o art. 1º da Constituição, um "Estado Democrático de Direito".

Movimentações políticas contra Supremas Cortes e seus juízes só prosperaram onde as instituições não eram de boa qualidade. Acontece que, em tempos de populismo triunfante nos dois extremos da corda da cena política brasileira, não sabemos ao certo a força dos freios entre nós. Eis os ingredientes: um Diário Oficial da União galopante, multidões dando total suporte em busca de revanche e homens armados no Palácio. Quem conseguirá barrar o fruto dessa combinação?

E há mais. Ainda que se consiga a desejada maioria das indicações no Tribunal nada assegura que os novos indicados se comportarão como cavalos guiados em rédeas curtas. Quando, mesmo indicados, a independência judicial começar a incomodar o terceiro andar do Palácio do Planalto, o jeito será avançar contra ela. E a inamovibilidade? E a vitaliciedade? E a irredutibilidade de vencimentos? E a irrecorribilidade das decisões do STF? Um ato não será suficiente. Talvez precisem de cinco. No Brasil, o número é cabalístico. A pegada do quinto ato é sempre mais forte. Cuidado.

Para Dieter Grimm, que foi juiz da Corte Constitucional da Alemanha, "a independência judicial é a salvaguarda constitucional contra a ameaça crescente de políticos ao exercício apropriado, pelos juízes, de suas funções".

A história dá razão a Grimm. Em 1932, Franklin D. Roosevelt foi eleito presidente dos Estados Unidos. O democrata contava com maioria nas duas casas do Congresso. Era um líder popular. Seu programa de recuperação econômica, o New Deal, lidava com o colapso de 1929. Como boa parte do plano exigia a aprovação de leis, a Suprema Corte foi chamada a analisar a constitucionalidade das medidas, derrubando algumas delas. Posteriormente, passou a reconhecer a sua constitucionalidade, mas num apertado placar de 5 x 4.

Em 9 de março de 1937, reeleito, o presidente Roosevelt disse, numa transmissão no rádio, que a Suprema Corte não estava agindo como um corpo judicial, mas como um formulador de políticas públicas. Então, encaminhou ao Congresso o "Judiciary Reorganization Bill", impondo a aposentadoria compulsória dos juízes aos setenta anos. Roosevelt passaria a ter competência para indicar seis novos julgadores, o que abriria espaço para que aqueles contrários ao New Deal saíssem da Suprema Corte substituídos por juízes simpáticos ao plano econômico.

O presidente achava que tinha o Congresso em suas mãos. Mas não tinha.

O juiz da Suprema Corte Louis Brandeis, mesmo favorável ao New Deal, criticou a iniciativa. Era, ali, uma voz influente se opondo ao projeto. Na sequência, a Câmara dos Deputados se recusou a apreciar a matéria. Corajosamente, a Comissão Judicial do Senado encaminhou o projeto para votação com relatório contrário. No plenário, por 70 x 20, entendeu-se que o texto deveria ser inteiramente reescrito.

A tentativa de emparedar a Suprema Corte, oriunda de um líder genuíno que imaginava dominar o Congresso, se mostrou um fracasso retumbante.

Para Daron Acemoglu e James A. Robinson, instituições políticas inclusivas atuam para assegurar a continuidade da pluralidade e do equilíbrio dos poderes. Assim agiu o Congresso dos Estados Unidos. Ele garantiu que a Suprema Corte seguisse seu caminho de independência, continuando capaz de frear os caprichos eventuais de um presidente da República. Se, naquele momento, o líder do país se voltava contra à Suprema Corte, quem poderia assegurar que, no futuro, não se voltaria contra o próprio Congresso?

Mas isso foi no lado norte do continente. Aqui no sul os precedentes são diversos.

Em 1946, Juan Domingo Perón foi democraticamente eleito presidente da Argentina. Após a sua vitória, aliados na Câmara dos Deputados propuseram o impeachment de quatro dos cinco membros da Suprema Corte. Perón queria primeiro ver os juízes da Suprema Corte ajoelhados para, depois, passar-lhes a espada no pescoço num golpe só. Três foram cassados. Um renunciou. Perón indicou quatro novos e passou a governar sem freios institucionais até 1955, quando um golpe o tirou do poder.

Mais à frente, em 1990, Carlos Menen, eleito presidente pelo Partido Peronista, conseguiu emplacar uma lei aumentando o número de juízes da Suprema Corte argentina de cinco para nove. Tendo nomeado quatro novos ministros, passou a contar com maioria na Corte e, tal qual Perón, começou a manipular a Constituição e a abusar do poder, até ser derrubado. Não houve um Congresso Nacional atento aos riscos de se encurralar a Suprema Corte ou qualquer de seus juízes.

Em 2004, a maioria parlamentar venezuelana, favorável a Hugo Chávez, aprovou a ampliação do número de juízes da Corte Suprema. Em lugar dos 20 juízes que tinha, a Corte Suprema passou a ter 32. Os novos juízes foram indicados por partidários de Chávez para fazer as vontades do comandante.

No Brasil, em 1965, por meio do Ato Institucional 2, o presidente Castelo Branco, ampliou de 11 para 16 o total de ministros do STF. Em 1969, através do Ato Institucional 5, o presidente Costa e Silva aposentou compulsoriamente três ministros: Victor Nunes Leal, Hermes Lima e o meu conterrâneo Evandro Lins e Silva.

Ou seja, há precedentes. Composição de Suprema Corte é algo para ser aperfeiçoado quanto à sua qualidade, não quantidade. É assegurado que o presidente da República indique, obedecendo a Constituição, o nome que bem entender, havendo vaga aberta. Não consta que possa, contudo, abrir quantas vagas bem entender, para fazer do STF o que quiser.

O Supremo não existe para bater continência para o poder. Nem para lhe lustrar as botas, pentear seus cavalos ou limpar suas armas. Ele existe para controlar o poder.

Aharon Barak, que presidiu a Suprema Corte de Israel, afirmou que, se não protegermos a democracia, a democracia dificilmente nos protegerá. Disse tudo.

No Brasil, sem a Suprema Corte não há democracia, porque esta é, desde Aristóteles, onde as minorias contam com direitos fundamentais assegurados por uma instância independente. E uma Suprema Corte fraca demais para nos incomodar em tempos de certezas será também fraca demais para nos proteger em tempos de incertezas.

Temos o triste hábito de só valorizar o que perdemos. O STF de hoje, rigorosamente do jeito que é, fará falta caso a proposta do Capitão ganhe curso com uma eventual vitória nas eleições. Acreditem: vai sobrar para nós.