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A América em tempos de cólera

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Atualizado às 09:08

Os EUA esperavam eleger a primeira mulher para o exercício da presidência da República. Para tanto, mobilizou-se por entre as hostes do Partido Democrata e movimentou milhões e milhões de dólares no intento. O que acabou ocorrendo foi a eleição de um presidente fanfarrão, milionário a ponto de financiar boa parte de sua própria campanha eleitoral, com um discurso sectário para não dizer reacionário. O ineditismo da campanha eleitoral norte-americana não ficou por conta da eleição da primeira mulher a presidir a maior nação do mundo: deveu-se a eleição de alguém que se orgulha de não ser político, que nunca exerceu nenhum cargo de governo ou de Estado, não entende de diplomacia e margeia com sua ignorância os assuntos militares.

Doravante, parte relevante dos analistas acostados na mídia nativa e internacional há de minimizar o desastre que é eleição de Donald Trump e pregar a ideia rasa (e repetitiva) de que "campanha é uma coisa e governo é outra". Ou seja, a esperança daqueles que tem ojeriza a Trump reside na expectativa de que ele cometa a tal da "fraude eleitoral". Por aqui, muitos dos que estão a dizer isso são aqueles que apontaram o dedo para a fraude eleitoral de 2014, no caso, da ex-presidente Dilma Rousseff. Obviamente, o cenário hipotético dos pregadores da "fraude" é a profecia autorrealizável de que, ao final, tudo dará certo. Aqui, estamos diante de total imprevisibilidade, arrisco-me a dizer. Vejamos.

A eleição de Donald Trump é a consolidação eleitoral da rejeição às elites tradicionais da política, a descrença imediatista no fato de que a desigualdade necessita do atrevimento de alguém que fala com o povo como se fosse o redentor de ideias que não podem (ou devem) ser propagadas pelo sistema de representação democrática. O Congresso Nacional americano, a despeito de seu papel e forma, vê-se acossado por uma nova entidade que de fato lhe fez eleitoralmente oposição. Ora, esse é um sinal negativo de desarmonia, de fricção inconsequente com os valores tradicionais da política. Estes valores adquirem, nesse momento, autonomia, pois refletem certas ansiedades concretas, tais como, melhor emprego e salário, mas desprezam o coletivo, razão essencial para a existência da política. Não à toa, a campanha do milionário causou tanta desunião e cisão, afinal de contas, o atendimento aos valores do "homem comum" requer a exclusão daqueles que não comungam aqueles valores. Um mexicano que imigrou contradiz à expectativa de realização das ansiedades do branco pobre do Alabama ou do Sul profundo americano. Logo, é preciso de alguma forma alijar o latino do processo com a promessa da construção de imoral "muro" que há de impedir a imigração. Eis apenas um exemplo. A mercadoria que Trump transacionou na campanha eleitoral foi o da exclusão de uns para que outros pudessem ser incluídos no processo político e econômico. Risco total.

A exclusão pelo discurso é, ao mesmo tempo, a causa do voto dos esperançosos no novo redentor e, ao mesmo tempo, a consequência da falência da democracia enquanto sistema político capaz de fazer o diálogo entre os desiguais dentro de um jogo de transações onde todos perdem para que todos ganhem a estabilidade social e econômica. Regimes totalitários se caracterizam pela necessidade de excluir radicalmente alguém do processo para justificar a ascensão de certa maioria, oportunisticamente construída. Hitler excluiu os não-arianos para incluir a imensa massa trabalhadora alemã, apenas para citar exemplo notório e nefasto. Isso é a anti-democracia, a anti-política, a descrença nas formulações inclusivas inerentes à democracia de massas.

Por que nesse contexto Trump haveria de mudar o seu discurso e, sobretudo, a sua política, para retornar à antiga ordem política que ele rasgou na campanha? Para tanto, precisaria reunificar a nação americana em torno de certos ideais e ideologias que ele mesmo contrariou. Tarefa complexa, como se verifica.

Ademais, Trump é fruto direto da plutocracia da América, aquele meio pelo qual, ganha o voto quem tem apenas mais dinheiro e poder para convencer midiaticamente o distinto eleitor. Hillary Clinton encarnou o modelo de loba da plutocracia. Em Washington Donald Trump não poderá se travestir de "político" a lidar com o Congresso sem perder a base das ruas que o permitiu construir o discurso anti-establishment que deu certo na urna. Logo, Trump eleito carrega em seus braços e discurso a instabilidade que o fez guardião a esperança dos brancos pobres e mal remunerados da democracia norte-americana. De outro lado, o establishment se esconderá por detrás das estruturas formais e institucionais para miná-lo, caso ele não adira aos seus interesses. Todavia, poderá haver adesão mútua entre ambos.

A queda das cotações dos ativos no mercado de capitais e financeiro é a expressão fiel desse processo de instabilidade. A estória da carochinha da "fraude eleitoral", portanto, não parece fazer valer aos seus profetas a esperança concreta de que Trump estabilizará as relações políticas e sociais.

A contradição interna aos EUA do discurso de Trump frente à sua eleição se projeta no campo internacional. Não nos esqueçamos que ele prometeu rever o NAFTA, as leis de imigração, as normas de comércio, as relações com o Oriente Médio, as alianças militares, as relações com os mulçumanos, o comércio e os investimentos com a China e a gestão monetária do dólar. Ora, aqui não há propriamente uma "contradição" como no caso do processo eleitoral. É apenas a série de pregações coerentes a justificar o seu discurso doméstico. Afinal de contas, a exclusão de imigrantes e negros no âmbito interno requer a exclusão de todas as barreiras que possam afetar o seu eleitorado nos EUA. Logicamente, Trump terá de medir forças com aliados e inimigos e tornear o discurso, mas isso está longe de torná-lo a "pomba da paz" que certos analistas julgam ser possível, após a pacificação feita pelo voto. Essa esperança está a residir mais no campo da metafísica que no da lógica das relações internacionais.

Por fim, vale lembrar que o GOP (Grand Old Party, sigla pela qual é conhecido o Partido Republicano) agora está a controlar o Senado Federal e a Câmara dos Representantes dos EUA. Apesar de Donald Trump ter igualmente dividido o partido que um dia abrigou Abraham Lincoln, eventualmente não precise de abrandamento substantivo de sua base formal no Congresso para conseguir implementar algumas de suas peripécias eleitorais. Como alguém pode crer em estabilização política num contexto como esse? Senão pelas evidências, possivelmente pela bola de cristal.

Não minimizemos o que ocorreu na Democracia da América. Trata-se de mais um sinal pouco alentador dos tempos políticos nos quais vivemos. A esperança que Trump carreia para o cenário satisfaz apenas os reacionários, totalitários, excludentes, sectários, etc. Putin que o diga: sua mensagem de cumprimentos a Trump foi sincera. Creiam.