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Desigualdade na renda, mais desigualdade no Direito

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Atualizado às 08:53

A desigualdade social, especialmente quando crescente,
desagrega e desintegra o próprio sistema jurídico

Nos últimos dois artigos publicados nessa coluna ("Olhai os espinhos do mundo" e "O maior risco do momento") procurei oferecer aos leitores uma visão ordenada sobre os riscos que pesam sobremaneira no cenário atual. Entendo que as ameaças conjunturais, usualmente relacionadas com ciclos econômicos, inflação, emprego, etc., no momento decorrem mais de aspectos estruturais, tais como, os riscos geopolíticos, os temas de comércio internacional, os gaps tecnológicos e outros tantos. Com efeito, a probabilidade de a economia mundial registrar fortes choques, eventualmente disruptivos, parece ser relevante. Pesquisa do World Economic Forum de 20181 destacou quatro principais riscos: persistente desigualdade social, tensões políticas internas e externas, riscos ambientais e vulnerabilidades cibernéticas. Para 59% dos respondentes os riscos aumentaram naquele ano. Arrisco-me a afirmar que esses riscos aumentaram em 2019.

Pesquisa mundial recentíssima da consultoria PwC2 que envolveu 2.084 executivos de organizações de todos os tamanhos, de 25 setores e 43 países mostrou que as "disrupções competitivas", os crimes cibernéticos, problemas regulatórios e tensões geopolíticas estão dentre as preocupações preponderantes para os dirigentes das empresas. Tratam-se de desafios sistêmicos e dos quais as causas e soluções/mitigações dependem relativamente pouco de cada empresa individualmente observada.

Nesse artigo, pretendo chamar atenção para o efeito gravíssimo da desigualdade econômica e social sobre o cenário e os efeitos sobre o denominado Estado de Direito. Vale dizer que mesmo em relação às teses do "livre mercado", muitas vezes são "esquecidos" ou "pouco comentados" os seus fundamentos e princípios teóricos. A título de ilustração, a ideia da "mão invisível" de Adam Smith - que não era economista no strictu sensu do termo - descreve o modo pelo qual interesse individual se conforma em interesses sociais mais amplos. Todavia, essa construção de Smith apenas poderia funcionar de facto se houvesse um ambiente onde o Estado de Direito e as normas éticas e morais fossem prevalecentes. Caso contrário, o "mercado" propagaria a desigualdade econômica e social e, com efeito, prejudicaria ou não realizaria o interesse comum e amplo da sociedade. Portanto, mesmo sob o guarda-chuva teórico do liberalismo dos séculos XVIII e XIX, a Rule of Law (Estado de Direito) e os valores éticos se constituíam em pilares indissociáveis do livre mercado.

Nas sociedades modernas, o Estado de Direito se sedimenta sobre relações sociais e econômicas cada vez mais complexas, bem diferentes dos "séculos liberais". Significa dizer que o ordenamento jurídico é multifacetado, sofisticado e recheado de entroncamentos de normas que individual e coletivamente se constituem em um sistema igualmente complexo.

A desigualdade social, especialmente quando crescente, desagrega e desintegra o próprio sistema jurídico o que aumenta as tensões e a probabilidade de que o sistema político deixe de ser meio de pacificação e equacionamento das relações sociais.

A desigualdade da distribuição da riqueza e os espectros econômicos e políticos são bem conhecidas na academia, especialmente nos EUA e Europa. Os efeitos desse processo sobre a Justiça e o ordenamento jurídico é menos estudado, mas há muitos trabalhos que exploram a matéria sob diversos ângulos. Destaco entre os estudiosos do assunto o Professor da Cornell University Robert H. Frank que examina como as questões da desigualdade e outros aspectos socioeconômicos que influenciam as superestruturas políticas e do mercado.

No contexto da desigualdade crescente, a eleição do presidente Donald Trump teve como fator determinante os votos dos excluídos e marginalizados. A financeirização da maior economia do mundo (1/4 do PIB mundial) fez com que o crescimento orgânico das unidades geradoras de renda e empregos (as empresas e outros negócios) deixasse de ser, ao longo dos últimos vinte ou trinta anos, a alavanca do desenvolvimento econômico. De outro lado, o incremento da "riqueza" (não propriamente o capital) proporcionou o distanciamento maior entre as classes sociais. Cito alguns dados para ilustrar o fenômeno: dados do primeiro trimestre de 2017 informam que o "montante da riqueza" (casas, automóveis, bens valiosos, negócios, poupança e investimentos) dos americanos era de US$ 94,7 trilhões. Considerando-se o número de lares dos EUA (124 milhões) a riqueza por lar seria de US$ 760 mil. Todavia, os 50% dos lares mais pobres dos EUA têm um "estoque de riqueza" de apenas US$ 11 mil3. Pesquisa de 2013 mostrou que 1% dos moradores de lares mais ricos da América são detentores de 38% das ações negociadas no mercado norte-americano4. Dados de 2014 informavam que o 1% dos mais ricos nos EUA detém 40% da riqueza, sendo que a diferença de riqueza entre os 10% mais ricos e a classe de renda média é de mais 1000%5.

No Brasil, os dados são mais alarmantes. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (2018) informa que o rendimento médio de 1% da parcela mais rica da população (R$ 27.744/mês) foi 34 vezes maior que os 50% mais pobres (R$ 820/mês). Cerca de 43% do total da massa de rendimentos é detida por um décimo da população. Esses números tem piorado conforme o PIB do país permanece estagnado ou cai.

O impacto dessa desigualdade de riqueza e renda nos EUA e no Brasil são semelhantes entre as maiores economias capitalistas. Mesmo dentre os países europeus, os índices de desigualdades são impressionantes: os 10% dos europeus mais ricos ganham 19 vezes mais que os 10% mais pobres.

A denominada "Justiça distributiva", conceito caro aos juristas de toda cepa, tem demonstrado que as sociedades não têm sequer mantido o nível de desigualdade nas economias mais importantes do globo. As propostas discutidas nos parlamentos não têm sido capazes de reduzir esse fenômeno desintegrador do tecido social. Leis que versam sobre a taxação da riqueza, impedimento das recompras de ações por parte das empresas, aumento da tributação direta em detrimento da indireta, estímulo à concessão de benefícios aos trabalhadores mais pobres e outras tantas têm esbarrado na oposição dos empresários e detentores majoritários da riqueza. O ordenamento jurídico tem se renovado em ritmo lento enquanto a realidade e os fatos ganham tração a cada dia.

Não bastasse a paralisia legislativa nos principais países ocidentais, a aplicação das leis por parte dos tribunais, sobretudo os superiores, tem se caracterizado pelo particularismo. O que vale são os interesses econômicos concretos a cada caso, sem que se observe os seus efeitos extensivos a toda a sociedade. O principal elemento desagregador da aplicação do direito é o fato de que a discriminação econômica, via desigualdade de renda e riqueza, tem resultado em equivalente discriminação para o acesso efetivo à Justiça. As discussões formais nas cortes de justiça têm impedido que significativa parcela dos mais pobres tenham acesso às decisões do Judiciário6. O aumento da desigualdade de riqueza e renda, por sua vez, reduziu a oferta de assistência jurídica para os mais pobres. Se somarmos essa menor assistência ao fato de que os parlamentos estão cada vez mais condicionados pelos lobbies dos interesses dos mais ricos, o reflexo da desigualdade se propaga por meio de leis favoráveis aos mais abastados e acesso estrito à justiça para os mais pobres. Há ainda a impunidade que normalmente está ligada às classes mais altas.

Finalmente, a desigualdade fundada no processo econômico, produz, no campo jurídico, o denominado legalismo em detrimento do Estado de Direito. O legalismo é a pura deturpação da aplicação da norma vez que o fundamento constitucional (que é fruto do pacto político) que deveria ser nortear a verificação dos direitos e deveres sociais é esquecido ou deturpado em prol da preponderância das normas infraconstitucionais. Vale dizer que a formação da vontade e do julgamento dos temas jurídicos depende da existência de verdadeira democracia participativa que, por sua vez, não se sustenta na existência de desigualdades sistêmicas e, por que não dizer, imorais.

A prevalecente ausência de igualdade econômica no mundo precisa ser debatida também sob a óptica do Direito. O risco desse preocupante processo é que a essência pacificadora do Direito se perca na sua própria e aparente funcionalidade e, assim, não apenas a desigualdade se propague, mas seja destruída a ordem do Estado de Direito. Os sinais estão dados. Resta saber quem os verá.

__________

1 The Global Risks Report 2018 3th edition

2 Pesquisa Global sobre Crises 2019

3 Perspectives on Inequality and Opportunity from the Survey of Consumer Finances.

4 The Market Isn't Bullish for Everyone.

5 Discurso State of the Union 2014, Barack Obama

6 Teubner, Gunther/Febbrajo, Alberto (1992). "State, Law and Economy as Autopoietic Systems: Regulation and autonomy in new perspective".