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Neutralidade da internet: a quem interessa o debate?

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Atualizado às 08:19

O Marco Civil da Internet - lei 12.965/14 - representou uma importante conquista legislativa em tempos de sociedade da informação, sendo uma lei formada a partir de colaborações da sociedade, já que recebeu cerca de duas mil e trezentas contribuições e foi objeto de sete audiências públicas.

Representou, ainda, uma espécie de resposta pública ao escândalo revelado por Edward Snowden quanto à espionagem internacional praticada pelos Estados Unidos, já que se constatou que o governo brasileiro havia sido espionado. É bem verdade que o projeto "Marco Civil" é anterior à descoberta da espionagem, mas sua aprovação serviu como um documento relacionado às liberdades civis, o que se mostrou importante na medida que o governo norte-americano vinha defendendo a ideia de que a internet tem um papel fundamental para a democracia e liberdade.

Assim, a mencionada lei estabeleceu princípios, garantias, direitos e deveres relacionados ao uso da Internet, sendo constituída por alguns pontos que merecem destaque tais como a neutralidade da rede, a liberdade de expressão e a privacidade dos usuários. Evidentemente, direitos como os de liberdade de expressão e privacidade já eram garantidos pela Constituição Federal, Códigos e leis especiais, mas isso não diminui a importância do texto porque o mesmo procurou reafirmá-los, especificá-los e, ainda, resguardar ideais de inovação.

Trata-se, portanto, de uma lei inovadora e importante, mas que ainda tem alguns pontos que carecem de regulamentação conforme disposições expressamente constantes do texto. Aliás, os objetos da regulamentação são os constantes nos art. 9º, §1º (as hipóteses de rompimento da neutralidade da rede), art. 10, §4º (as medidas e procedimentos de segurança e de sigilo dos dados pessoais), art. 11, §3º e (o modo pelo qual os provedores de conexão e de aplicações deverão prestar informações sobre o cumprimento da legislação referente à coleta, à guarda, ao armazenamento ou ao tratamento de dados, bem como quanto ao respeito à privacidade e ao sigilo de comunicações.), art. 13 (a obrigação de manter os registros de conexão, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança) e art. 15 (a obrigação do provedor de aplicações de internet de manter os registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de seis meses, nos termos do regulamento).

Verifica-se que são temas importantes e que, de fato, precisam ser pormenorizados, o que deve ocorrer, no entanto, mantendo-se a essência do que se pretendeu normatizar com o advento da lei e com vistas a diminuir a possibilidade de interpretações equivocadas, sejam elas expressadas por desconhecimento ou mesmo intencionalmente.

Pode-se dizer, assim, que a lei colocou o país em patamar de destaque internacional por pretender regulamentar democraticamente o uso da Internet, o que o fez, inclusive, pela previsão do princípio da neutralidade da rede (art. 9º).

Este tema, diga-se, é atual, onipresente e tormentoso conforme mencionado no artigo de estreia da coluna Direito Digital aqui no Migalhas ("Desafios contemporâneos do Direito Digital"). E, justamente em face das dificuldades em compreender as implicações da neutralidade na internet é que hoje, providenciamos neste texto, alguns esclarecimentos que reputamos básicos e que esperamos que auxiliem o leitor nas futuras reflexões sobre o assunto.

Vale lembrar, ainda, que quanto à regulamentação relativa à manutenção e ao rompimento da neutralidade da rede, a lei determinou no art. 9º que fossem ouvidas recomendações do Comitê Gestor da Internet (CGI.br) e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Sobre elas, o CGI.br abriu consulta para contribuições da sociedade civil, tendo-se encerrado essa etapa no último dia 20 de fevereiro. A Anatel abriu prazo no último dia 31 de março para receber contribuições, permitindo-se que as sugestões sejam encaminhadas até 4 de maio por meio do site da agência, por e-mail e também por correspondência. É preciso mencionar, ainda, que o Ministério da Justiça também havia aberto prazo para receber sugestões, tendo este encerrado no dia 31 de março.

Ainda é tempo, portanto, de se inteirar do tema para fazer contribuições no âmbito da Anatel. E, ainda que não se pretenda fazer isso, o assunto é importante para conhecer quais os interesses estão por trás dos debates sobre a neutralidade e o que isso pode implicar em nossas vidas.

A Neutralidade

O texto do Marco Civil previu o princípio da neutralidade no capítulo III ("Da Provisão de Conexão e de Aplicações da Internet"), seção I ("Da Neutralidade da Rede"), no art. 9º e, como se viu, apesar da previsão, o dispositivo depende de regulamentação do Poder Executivo por meio de decreto. Mas a neutralidade é um fato já que caberá ao Decreto apenas regulamentar os casos em que poderá ser excepcionalmente rompida, obedecendo-se os "requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações" e a "priorização de serviços de emergência." Portanto, o regulamento nada mais podera' fazer senão complementar a própria lei, cujo caráter essencial e prévio na~o podera' ser dispensado, sendo certo que a neutralidade só poderá ser excepcionada nos casos retro mencionados, não podendo ser ampliada a quebra para outras situações.

Pois bem. Discorrer sobre a neutralidade da rede é mais complexo e mais fácil do que pode parecer. Mais complexo porque talvez muitos não tenham a real dimensão das consequências (positivas e negativas) da manutenção ou do rompimento da neutralidade, devendo-se considerar que até mesmo estas podem não ser confirmar porque dependeriam do mercado, da economia, da boa vontade política de diversas pessoas e autoridades envolvidas. Mas, por outro lado, é mais fácil porque uma vez compreendido o que está em jogo, fica mais confortável se posicionar.

Para aqueles que já compreendem o que está sendo discutido, restam muitas vezes debates carregados de concepções ideológicas e interesses - principalmente comerciais e jurídicos - que tendem a não ajudar na obtenção de um diálogo efetivo entre os envolvidos. Sob outra ótica, no entanto, o problema principal parece ser a falta de clareza quanto aos interesses defendidos pelas partes, de forma que o estudo do tema pode ser um tanto obscuro se não feito com a devida atenção. Faremos o possível nas linhas que seguem para tornar o assunto menos inóspito.

No Brasil o tema "neutralidade" ganhou notoriedade a partir das discussões sobre o Marco Civil da Internet, mas as formulações iniciais remetem-nos aos anos 2000, época na qual houve expansão da banda larga e dos gadgets conectados à internet num ritmo mais elevado do que os da expansão da infraestrutura de rede física. Naquela época surgiram rumores de que alguns provedores de acesso estariam discriminando o tráfego de aplicações que lhes fossem prejudiciais (especialmente sob a ótica econômica). Justamente neste tipo de questão - quebra da isonomia dos pacotes de dados - é que se discute a neutralidade da rede.

A neutralidade é um princípio relativo à arquitetura da rede que determina que os provedores de acesso devem tratar de forma isonômica os pacotes de dados que trafegam pelas infraestruturas de rede. Os pacotes de dados, por este princípio, não podem ser discriminados nem pelo conteúdo nem pela origem. Isto porque para se alcançar o máximo de benefícios de uma rede, seu conteúdo, conexões e plataformas de serviços devem ser tratados de forma equivalente, garantindo-se que a infraestrutura disponível dê suporte a toda transmissão da informação e de aplicações.

Mas uma questão que se põe é justamente o entendimento do que é a tal discriminação. Então é preciso compreender que há maneiras distintas de tratar de forma diferenciada os pacotes de dados, o que pode ser feito, por exemplo, pelo seu bloqueio, pela redução da velocidade ou, ainda, pela cobrança de valores distintos por determinado conteúdo. Países onde vige a censura costumam "quebrar" a neutralidade bloqueando acesso a determinados conteúdos, o que se dá por iniciativa dos próprios governos, como é o caso da China e da Coréia do Norte.

Já sobre a redução da velocidade, significa que um determinado aplicativo não será carregado na mesma velocidade dos demais, seja para diminuir a qualidade de um concorrente, seja para favorecer o acesso a um aplicativo específico, para reduzir o consumo de banda em aplicações mais "pesadas" ou mesmo para impedir o acesso a serviços que podem violar direitos de propriedade intelectual de empresas parceiras.

Sobre a cobrança de preços diferenciados, eles podem vir por meio de uma sobretaxa ou da isenção de cobrança para alguns aplicativos (o chamado "zero rating"). Isso é relevante porque pode dificultar a concorrência entre semelhantes vez que se dando enorme visibilidade a apenas um aplicativo em face da isenção de cobrança, isso pode mascarar a existência de outros, tornando-os natimortos e inviabilizando a inovação tecnológica.

A grande questão sobre a neutralidade não é, portanto, conhecer seus termos, mas saber se a mesma vem sendo respeitada ou rompida já que em muitos casos a sua "quebra" se dá de forma oculta ou não muito clara.

Assim, o principal objetivo do princípio da neutralidade da rede é preservar a arquitetura aberta da Internet. Mas o que isso significa?

É preciso compreender que as redes podem ser constituídas por arquiteturas: a) fechadas, onde há um controle central (core-centred); e b) abertas, onde não há um controle central (end-to-end). Quanto mais fechada, menor a autonomia do usuários (que estão nas pontas ou ends das redes). Quando se fala em sistemas de comunicação sem controle central fica ínsita a maior possibilidade de interação entre os agentes que encontram-se nas pontas da rede.

No Brasil a arquitetura da rede da Internet tem sido desenvolvida em um modelo sem controle central ("end-to-end"), apesar de haver algumas constatações de que isso venha sendo excepcionado em algumas ocasiões, inclusive pela recente iniciativa das operadoras de celular em oferecer certos planos patrocinados para certas aplicações.

Compreendido isso, passemos aos principais argumentos favoráveis e contrários a manutenção da neutralidade.

Os provedores de acesso alegam - e estão certos neste ponto - que a neutralidade os impede de bloquear ou discriminar aplicações e conteúdos específicos. Alegam-se que isso gerará efeitos adversos para o setor de telecomunicações porque limitará potenciais de eficiência que os provedores têm hoje à sua disposição, provavelmente reduzindo lucros a longo prazo, além do aumento custos de gerenciamento. Isso reduziria incentivos para o desenvolvimento de uma infraestrutura de telecomunicação mais ampla e de melhor qualidade.

Argumenta-se, ainda, que se não houvesse a neutralidade seria possível oferecer planos mais baratos (e mais básicos) para usuários de baixa renda, o que seria evidentemente compensado com "pacotes premium", com preços mais caros para o público com maior renda. Esta variedade de planos auxiliaria na para democratização do acesso da Internet no país porque, segundo essa lógica e a contrario sensu, mantida a neutralidade, os provedores de acesso ofereceriam planos mais caros e com velocidade e disponibilidade de banda menores, já que não existe infraestrutura adequada para melhorar a qualidade dos serviços. O rompimento da neutralidade auxiliaria na melhor distribuição do tráfego de dados.

Fato é que nas redes neutras servidores de aplicações como o Facebook, Google e Netflix tendem a ser os maiores consumidores de banda e, direta ou indiretamente, contribuirão para a expansão da infraestrutura, pagando caro aos provedores de acesso e construindo Content Delivery Networks - CDN's - (que são redes de distribuição de conteúdo não centralizadas em um único servidor) ou mesmo desenvolvendo sua estrutura própria.

Já nas redes não neutras, esses mesmos servidores de aplicações permanecerão como os maiores consumidores de banda e, para que possam disponibilizar seus conteúdos para mais pessoas firmarão contratos para que os provedores de acesso disponibilizem seus sites para mais usuários (e que potencialmente podem excluir concorrentes, sites sem fins lucrativos e pequenos provedores do acesso a um leque mais amplo de usuários).

A questão é que a discutir neutralidade envolve pensar e repensar na expansão e qualidade da infraestrutura de rede, seu desenho intitucional, programas governamentais, atuação das agências regualdoras (ANATEL) e políticas de investimentos, sejam públicos ou privados.

Em outra ótica e em outras palavras, manter-se a neutralidade é incentivar o setor de software e serviços de Tecnologia de Informação (reduzindo o potencial econômico do setor de telecomunicações) porque as condições de competição entre eles manter-se-á equitativa na disponibilidade de banda. Uma consequência é que os aplicativos bem sucedidos atingiriam o sucesso não por estarem alinhados em acordos comerciais com uma operadora para seu acesso gratuito ("escondendo" que haja outros disponíveis), mas porque a população o entendeu melhor.

Na concepção acima narrada dois caminhos a seguir: a opção de uma Internet de pior qualidade, mas com acesso ilimitado a aplicações e conteúdos (com a neutralidade) ou uma Internet de melhor qualidade (teoricamente, ao menos), mas com acesso segmentado de acordo com aplicações e conteúdos a que se deseja ter acesso (com a quebra da neutralidade). Essa dicotomia poderia gerar uma maior divisão entre os padrões de usuários que acessam a Internet, algo como a efetiva criação de rede acessada pela elite e outra, pelos menos favorecidos.

Falar sobre a neutralidade da rede é, de fato, escolher entre privilegiar ou o setor de telecomunicações (deixar a rede mais próxima do modelo "core-centred"), ou o de softwares (deixar mais próxima do modelo "end-to-end"), com alguma consequência para o preterido. Afinal, a exploração do acesso a Internet e também do seu conteúdo é um negócio e depende de resultados para haver investimentos. Por outro lado, a disponibilização de incentivos fiscais pode ser um mecanismo para minorar os efeitos da (quebra da) neutralidade na perspectiva acima mencionada. Vê-se que ambas atividades - telecomunicações e softwares/aplicativos - são necessários e de grande utilidade, devendo conviver pacificamente com potenciais de desenvolvimento econômico e de inovação.

Considerações finais

Vimos, assim, o que é o princípio da neutralidade da rede e que o mesmo foi instituído pelo Marco Civil da Internet como regra. Todavia, vimos também que, neste particular, depende de regulamentação as exceções à neutralidade.

Nesta perspectiva, caberia ao regulamento deixar absolutamente claro que a regra da neutralidade se aplica apenas e tão-somente à Internet pública aberta, não às redes privadas. Afinal, não há qualquer motivo para que as redes privadas (domiciliares, intranets de empresas, etc) sujeitem-se a regras de neutralidade já que não será através delas que se dá o acesso global à Internet.

Sobre a regulamentação dos dispositivos especificamente mencionados na lei, o Decreto deverá procurar a predominância de efeitos negativos advindos da neutralidade, sem rompê-la, preservando seus efeitos positivos.

Assim, os desafios da agenda regulatória deveriam se referir a estabelecer uma definição do conceito de discriminação; estabelecer uma definição do conceito de serviços de emergência; estabelecer regras para planos subsidiados no mercado móvel para tratar de questões como a (não) aplicação do "zero rating"; regras para o desenvolvimento das redes de distribuição de conteúdo não centralizadas em um único servidor (Content Delivrey Networks); os requisitos para o bloqueio de portas por provedores de acesso e empresas de backbones; regras sobre a priorização do tráfego em momentos de fluxo excepcional; e, ainda, regras para acordos de interconexão.

Verifica-se nas mídias que há importante debates internacionais nos Estados Unidos e Europa sobre tema "neutralidade", ainda havendo dúvidas sobre qual o modelo regulatório mais adequado para manter a Internet como uma plataforma aberta e a salvo de interferências indevidas de governos e empresas.

Ainda há muitas questões a serem pensadas com ponderação porque, mesmo com a previsão do princípio da neutralidade trazido no Marco Civil, deve-se evitar regulações excessivamente rígidas que afetem a natureza essencial da Internet: um ambiente desregulado que propiciou chegarmos ao estágio atual na sociedade da informação.