COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. German Report >
  4. Decisões históricas: o caso dos tapetes de linóleo - homenagem ao ministro Ruy Rosado de Aguiar Junior

Decisões históricas: o caso dos tapetes de linóleo - homenagem ao ministro Ruy Rosado de Aguiar Junior

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Atualizado em 2 de setembro de 2019 14:40

Inicia-se hoje, na coluna German Report, a série "Decisões Históricas", cujo objetivo é apresentar ao público brasileiro alguns julgados alemães que fizeram história, seja por dar início ou por consagrar institutos e teorias que tiveram impacto no direito dos demais países pertencentes à família romano-germânica.

E a coluna inicia com um dos mais importantes julgados do Reichsgericht (RG), o Tribunal Imperial alemão, que funcionou de 1879 a 1945 como a Corte suprema infraconstitucional do Império alemão e foi o embrião do atual Bundesgerichtshof (BGH).

Essa decisão foi o pontapé inicial para o desenvolvimento de um processo que culminaria com a modernização do Direito das Obrigações, positivada na reforma do BGB em 2001.

O caso

Trata-se do chamado caso dos tapetes de linóleo, conhecido mundialmente por ser o primeiro julgado impactante sobre a culpa in contrahendo, isto é, culpa durante a formação dos contratos, instituto mais conhecido entre nós como responsabilidade pré-contratual1.

O caso ocorreu em 1911. Uma mulher entrou, com uma criança, em uma loja a fim de olhar rolos de tapetes de linóleo. Durante a exposição do produto pelo vendedor, a mãe e a criança foram gravemente feridas em razão da queda de rolos de tapetes de linóleo, negligentemente arrumados na prateleira pelo atendente.

A lide, a rigor, poderia ter sido solucionada com recurso à responsabilidade extracontratual, vez que o § 823 I BGB considera a lesão culposa ao corpo, vida, liberdade, propriedade e "outros direitos" como ato ilícito (unerlaubte Handlung), impondo o dever de indenizar.

Mas o problema era que o dono do estabelecimento comercial, em 1911, poderia eximir-se da responsabilidade se demonstrasse ter agido com diligência ao escolher e instruir o funcionário (culpa in elegendo), causador do ato ilícito, pois o § 831 BGB - tal como o antigo art. 1.523 do CC1916 - prevê o afastamento da responsabilidade nesses casos2.

Mas o Tribunal Imperial considerava injusta e insatisfatória essa solução para os casos de lesão a clientes (consumidores, na linguagem atual) em estabelecimentos comerciais, considerando o intenso trânsito de pessoas e, consequentemente, a elevada exposição a riscos de dano existentes nesses locais de circulação em massa.

Por isso, ao invés de fundamentar a pretensão ressarcitória no ato ilícito, o Tribunal Imperial preferiu recorrer à figura da culpa in contrahendo, formulada alguns anos antes, em 1861, em suas linhas iniciais, por Rudolf von Jhering.

Para o RG, houve culpa durante a formação do contrato, pois a simples entrada de um potencial contratante - ou de um visitante, sem clara intenção de compra! - em um estabelecimento comercial faz surgir uma relação jurídica preparatória do contrato ("ein den Kauf vorbereitendes Rechtsverhältnis") entre a loja e o cliente.

Essa relação preparatória, se bem analisado seu suporte fático, guarda muitas semelhanças com a relação contratual, da qual é preparatória. Dela brotariam, segundo o RG, "obrigações jusnegociais" (rechtsgeschäftliche Verbindlichkeiten), dentre as quais o dever de proteger a integridade físico-corporal e o patrimônio do potencial cliente.

Esse dever exige que o estabelecimento comercial adote uma série de condutas positivas para evitar o dano, o que mostra que se trata de dever jurídico mais intenso que o simples dever geral de não lesar, que é geralmente cumprido com uma conduta meramente omissiva.

Dessa forma, o Reichsgericht aplicou o regime jurídico contratual ao caso, dando aos lesados as vantagens decorrentes da impossibilidade de exclusão da responsabilidade in eligendo por atos do preposto (§ 278 BGB), da presunção de culpa e do prazo prescricional elevado, à época 30 anos, conforme o antigo § 195 BGB/1900.

A decisão foi prolatada pelo 6o Senado do Reichsgericht em 7 de dezembro de 1911 e publicada, ainda em alemão gótico, no repertório RG 78/1912, p. 239-241.

A importância da decisão

Não é difícil perceber a relevância desse julgado para o que hoje entendemos como direito do consumidor, pois foi a partir daí que começou a se desenvolver na Alemanha a ideia de que os fornecedores têm o dever de garantir segurança aos (potenciais) clientes - sejam eles consumidores ou não! - em seus estabelecimentos comerciais.

Não foi, portanto, a partir do discurso do ex-presidente norte-americano, John Fitzgerald Kennedy, como comumente se imagina, que ganhou corpo na Alemanha os deveres de proteção ao consumidor3.

No Brasil, os deveres pré-contratuais em geral e, em especial, o dever de proteção só se estabeleceram como regra a partir da promulgação da Lei de Proteção e Defesa do Consumidor, em 1990, que logo no art. 6o, inc. 1, elenca como deveres básicos dos consumidores a proteção da vida, saúde e segurança.

Dessa forma, casos como os do tapete de linóleo ou as frequentes quedas em supermercado são subsumidos no art. 14 do CDC, que trata dos defeitos na prestação dos serviços, estabelecendo a responsabilidade objetiva dos fornecedores.

Antes do CDC, porém, a jurisprudência era vacilante: enquanto alguns julgados reconheciam o dever de ressarcir com base na cláusula geral do ato ilícito (art. 159 CC1916), outros negavam o ressarcimento por considerar um "acidente" ou "azar" ou um risco inerente à vida em sociedade a ser suportado pelo lesado, o que frequentemente vinha escondido por trás da alegação de falta de prova do nexo causal4.

De qualquer forma, a decisão do Tribunal Imperial sobre os tapetes de linóleo é, com acerto, considerada uma das mais célebres e importantes decisões do judiciário alemão5.

O vanguardismo da decisão

A decisão pode mesmo ser considerada vanguardista, considerando ter sido prolatada apenas uma década após a entrada em vigor do BGB.

Primeiro, porque antecipa em mais de cinquenta anos a discussão sobre a proteção de consumidores e by standers no mercado de consumo, dando o pontapé inicial para o debate em torno da proteção de terceiros no âmbito de situações negociais, pré-contratuais e, na sequência, contratuais. Não por outra razão fala-se hoje em dia, entre nós, com ares de vanguarda, acerca dos contratos com eficácia de proteção perante terceiros.

Segundo, porque rompe com o dogma pandectista da irrelevância das negociações, pois mostra que já nessa fase surge uma relação jurídica especial da qual brotam deveres de conduta entre as partes, dentre os quais o dever de proteção (Schutzpflicht), conhecido no Brasil como dever de segurança, positivado em diversos artigos da Lei do Consumidor6.

Terceiro, porque, com essa decisão, a figura da responsabilidade pré-contratual se estabelece definitivamente no cenário jurídico alemão, vindo, na sequência, a penetrar no meio jurídico latino - inicialmente na Itália e, depois, em Portugal, Espanha e Grécia, atravessando o Atlântico e ancorando em terras brasileiras em 1936.

A culpa in contrahendo não foi, contudo, aqui recepcionada como uma responsabilidade pela violação de deveres de proteção - ou melhor: pela violação de qualquer dever lateral durante a fase de preparação do contrato.

Ela aportou no Brasil na restrita modalidade de responsabilidade pela violação do dever de lealdade, traduzido no rompimento abusivo das negociações, após despertar ou fortalecer no outro a certeza de que o contrato planejado seria concluído.

Quarto, porque, consagrando a figura, o RG se afasta definitivamente da doutrina pandectista, majoritária à época, que via o contrato - ainda que fictício - como a fonte única de deveres, inclusive dos deveres pré-contratuais de conduta.

Quinto, porque, admitindo na fase de preparação do contrato a existência de uma "relação jurídica especial", jurisprudência e doutrina alemã dão um passo histórico na reformulação do conceito romano de obrigação e de relação obrigacional - passo que, aliás, ainda não foi bem compreendido pela doutrina brasileira.

Com isso, diz-se que a relação obrigacional não surge com o contrato, mas já antes, com o contato negocial, embora esse vínculo tenha natureza sui generis e não produza obrigações em sentido técnico, mas apenas deveres laterais de conduta.

É a chamada relação obrigacional sem dever de prestação ou, de forma mais provocativa, relação obrigacional sem obrigação7.

O papel de Ruy Rosado de Aguiar no reconhecimento da culpa in contrahendo

A culpa in contrahendo não teria tido reconhecimento no Brasil sem o saudoso Min. Ruy Rosado de Aguiar Junior, que há pouco nos deixou, deixando um vazio intelectual na magistratura, difícil de ser preenchido.

Ele foi o grande responsável por resgatar a responsabilidade in contrahendo das profundezas, onde fora soterrada por uma doutrina e jurisprudência legalista-positivista, ainda fiel aos postulados do pandectismo, embora esses já estivessem abandonados em seu próprio país de origem.

De fato, após sua estreia triunfal em dois célebres julgados8 do Tribunal de Justiça de São Paulo, datados de 1936 e 1959, a responsabilidade in contrahendo foi banida de cena ao argumento de ser uma doutrina incoerente.

A uma, porque romper as negociações a qualquer tempo e independente do motivo apresentado era visto como uma faculdade ilimitada, permitida pelo ordenamento em razão do princípio da liberdade contratual, corolário do sagrado dogma da autonomia da vontade, pilar estruturante do direito privado liberal do século 19.

A duas, porque quem rompe as negociações não abusa, mas usa o direito de não contratar, não podendo, consequentemente, ser penalizado através da imposição do dever de ressarcir os danos causados à contraparte. Daí - cabe o aparte - ser inadequada a fundamentação da responsabilidade pré-contratual na figura do abuso do direito.

Na raiz desses (e de outros) argumentos contrários ao reconhecimento da responsabilidade pelo rompimento abusivo das tratativas está na ausência - ou na falsa compreensão - da boa-fé objetiva e dos deveres ético-jurídicos de conduta, os quais impõem a ambas as partes o dever de agir com lealdade e consideração pelos interesses legítimos da outra antes, durante e depois do contrato.

Ruy Rosado de Aguiar Júnior teve o mérito de resgatar o instituto, ainda no Tribunal de Justiça do Rio Grande do sul. Célebre são os casos dos tomates e do posto de gasolina, ambos de sua relatoria.

No caso dos tomates, a empresa de conservas alimentícias CICA distribuiu durante anos sementes de tomates aos agricultores da região de Canguçu, no Rio Grande do Sil, para plantio e posterior aquisição da safra para a produção de molho de tomate.

Em um ano, simplesmente deixou de adquirir a safra dos agricultores, que não conseguiram revender a mercadoria, amargando vultuosos prejuízos.

O TJRS, sob o voto condutor do saudoso Ministro, reconheceu a responsabilidade pré-contratual da empresa por quebra da confiança ao deixar de celebrar, sem motivo justificável, a compra da safra de tomates dos agricultores, embora tenha - como de costume - distribuído as sementes.

Trata-se do processo TJRS, Apelação Cível 591.028.2915, 5ª. Câmara Cível, Rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Junior, julgado em 6/6/1991, no qual fundamenta-se pela primeira vez a responsabilidade pré-contratual no princípio da boa-fé objetiva, à época ainda não positivado na Codificação9.

No caso do posto de gasolina, o TJRS negou a responsabilidade pré-contratual do potencial comprador que desistiu da aquisição de um posto de gasolina após descobrir que o vendedor não era, ao contrário do que dizia, o único sócio da empresa10. Trata-se do processo: TJRS, Apelação Cível 591.017.058, 5ª. Câmara Cível, Rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Junior, julgado em 25/4/1991.

A partir desses dois julgados paradigmáticos, a jurisprudência brasileira passou a reconhecer a responsabilidade pré-contratual por rompimento injustificado das negociações, com fundamento na cláusula geral da boa-fé objetiva, positivada em sua função criadora de deveres no art. 422 do CC2002.

Dessa forma, livrou do esquecimento um riquíssimo instituto, ainda pouco compreendido entre nós11. Jhering deve estar feliz!

__________

1 GIARO. Tomasz. Culpa in contrahendo: eine Geschichte der Wiederentdeckung. In: Ulrich Falk e Heinz Mohnhaupt (org.). Das Bürgerliche Gesetzbuch und seine Richter - Zur Reaktion der Rechtsprechung auf die Kodifikation des deutschend Privatrechts (1896-1914). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2000, p. 135 e SCHMIDT, Jan Peter. Sentencias famosas: Alemania. Sobre el caso de los "rollos de linóleo", Revista de Derecho Privado, Bogotá, n. 24, p. 329-334, jan.-jun. 2013. No mesmo sentido: NUNES FRITZ, Karina. A culpa in contrahendo no direito alemão: um contributo para reflexões em torno da responsabilidade pré-contratual. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 15, ano 5, 2018, p. 173 ss.

2 O art. 1.523 do CC1916 rezava: "Excetuadas as do art. 1.521, V [partícipes do produto de crime], só serão responsáveis as pessoas enumeradas nesse e no art. 1.522, provando-se que elas concorreram para o dano por culpa, ou negligência de sua parte". Esse dispositivo foi substituído pelo art. 933 do CC2002, dispensando-se a culpa.

3 Recorde-se que o movimento consumerista se inicia na década de 1960, com o pronunciamento de John Fitzgerald Kennedy, enumerando direitos básicos dos consumidores.

4 Confira-se, a título ilustrativo: TJSP; Apelação Com Revisão n. 9191314-38.2007.8.26.0000 (numeração antiga 540.044-4/3-00), Rel. Des. Elcio Trujillo, 7ª Câmara de Direito Privado, j. 08.04.2009. Queda em supermercado de consumidora que, após escorregar em casca de fruta, teve seu pleito ressarcitório negado com base na ausência de nexo causal e de negligência do supermercado, que, segundo testemunha, mantinha o local limpo. Do acórdão, percebe-se que o Tribunal considerou o fato mais como um infortúnio da vítima, do que como infração ao dever de segurança do estabelecimento. No voto consta expressamente que: "... Considerando que a ré é um mercado, por onde circulam várias pessoas durante o dia, cada qual com seus costumes e educação, inviável a pretensão de impor à ré a responsabilidade pela existência de casca de fruta no chão. O fato ocorrido com a autora, embora lastimável, não é decorrente de culpa, do tipo omissivo ou comissivo, de qualquer dos funcionários da ré. Não se trata de falta de higiene, pois a fruta pode ter caído da gôndola ou simplesmente ter sido jogada ao chão por outro cliente. E, neste passo, inviável tentar cogitar do número de funcionários necessários para manutenção da limpeza local, pois tal fato sempre poderá ocorrer, por mais higiene que se possa imaginar".

5 GIARO, Tomasz. Op. cit., p. 135 e SCHMIDT, Jan Peter. Op. cit., p. 329 ss.

6 Confira-se, dentre outros, os arts. 6º, inc. I, 8º, 9º, 10 e 12 a 14 do CDC, todos tendo como ideia nuclear a proteção da vida, saúde e segurança do consumidor.

7 Desde 2008 venho falando dessa relação obrigacional, ainda mal compreendida pela doutrina brasileira. Confira-se: NUNES FRITZ, Karina. Boa-fé objetiva na fase pré-contratual - a responsabilidade pré-contratual por ruptura das negociações. Curitiba: Juruá, 2008, p. 47 ss.

8 Tratam-se do caso da casa de modas, primeiro caso documentado no Brasil de culpa in contrahendo, julgado em 1936 e do caso da atriz, datado de 1959. Cf. NUNES FRITZ, Karina. Da boa-fé objetiva na fase pré-contratual..., p. 250 s.

9 Para maiores detalhes do caso, permita-se remeter a NUNES FRITZ, Karina. Da boa-fé objetiva na fase pré-contratual..., p. 253-254.

10 Para maiores detalhes do caso, permita-se remeter a NUNES FRITZ, Karina. Da boa-fé objetiva na fase pré-contratual..., p. 254-255.

11 Não faltam importantes vozes a questionar, ainda hoje, a utilidade da responsabilidade pré-contratual, o que revela a falta de um estudo comparado sério e verticalizado, tendo em vista o amplo reconhecimento do tema no nos ordenamentos jurídicos europeus mais modernos.