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A ré fujona

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Atualizado em 9 de setembro de 2011 13:21

Sua aparência era a de uma moça simples, humilde, extremamente tímida e recatada. Pouco falava, fato que em muito dificultou as primeiras entrevistas.

Casada há vários anos, certo dia matou o marido. Matou-o com um tiro na nuca. Sim, a vítima foi atingida na nuca quando assistia à televisão. Aguardava a esposa vestir-se para irem a um casamento. Ela desceu as escadas da casa armada e sem nada dizer acionou o gatilho alvejando-o mortalmente. Em uma primeira versão afirmou haver tropeçado em um carpete...

A minha primeira preocupação foi saber os motivos que a levaram ao cometimento do crime. No entanto, nem nas primeiras nem nas últimas reuniões ocorridas às vésperas do Júri, eu soube com clareza as razões do homicídio.

Evasivas e frases por vezes desconexas, perguntas sem respostas, falta de objetividade deixaram-me sem conhecer os fatos que teriam armado as mãos daquela moça franzina, retraída, de pouco fala.

Não só por necessidade profissional, para poder aparelhar-me a fim de defendê-la adequadamente, como por natural curiosidade, passei a conjeturar, formular hipóteses e suposições, procurando desvendar o mistério que cercava o homicídio. A partir de um não pequeno rol de cogitações eu fazia as mais variadas indagações, na procura dos motivos do crime. Mas, nada. Absolutamente nada me era esclarecido. Agressividade do marido; existência de outra mulher; algum interesse patrimonial; algum tipo de pressão psicológica, enfim, árduos exercícios mentais não conduziram a nenhuma resposta.

Enquanto foi possível, a defesa centrou-se em questões processuais, levadas ao conhecimento de todas as instâncias, por meio dos recursos cabíveis, após a decisão de pronúncia. A grande preocupação continuava a ser o desconhecimento das causas da sua conduta. Ela, por sua vez, continuava em seu mutismo. Interrogada pelo magistrado, tal como fizera no inquérito, prestou declarações evasivas, contraditórias e, portanto, nada esclarecedoras. Após todo o curso do processo passei a achar que a sua conduta fora desmotivada.

Agressões, traição, abandono material, maus tratos, ameaças, incompatibilidades com a família do marido, enfim, todas as situações e razões possíveis que caracterizam homicídios dessa natureza não se apresentavam como causa daquele crime. Sempre que eu indagava sobre esse ou aquele motivo, ela não o confirmava, mas também não o negava peremptoriamente, deixando no ar possibilidades variadas.

A denúncia atribuía o móvel do crime à ameaça de abandono. Mas, na mesma peça estava estampado que o casal iria, por consenso, separar-se. Uma outra razão foi posta na inicial: a mulher se negava a engravidar, contrariando o desejo do marido. Por fim, a imputação continha o ingrediente dos ciúmes, como o motivo do homicídio.

Vê-se a falta de coerência da própria acusação quanto aos motivos do crime. Não se trata de falta de objetividade ou de desatenção do promotor, ao examinar a prova. A confusa denúncia foi fruto da confusa prova até então existente nos autos, confusão esta que não restou sanada durante a instrução processual.

A pronúncia sobreveio e algum tempo depois foi marcada a data para o julgamento perante o tribunal do Júri. No dia, um clima de tensão instalou-se no plenário. O julgamento de Suely veio cercado de especial expectativa, pelo manto de mistério que envolvia os motivos do crime e pela sua forma de execução, deveras chocante.

O seu interrogatório não removeu o mistério. A ré tergiversou, gaguejou e, por fim, emudeceu. Os prognósticos do Júri eram os piores possíveis. A defesa técnica não teria nenhum respaldo na autodefesa, praticamente inexistente. Após o relatório feito pelo magistrado, houve longa leitura de peças, e nitidamente a má impressão causada pelo caso desde o início do julgamento foi reforçada. Por volta das vinte e duas horas o magistrado suspendeu a sessão, não sem antes providenciar alojamento no fórum para que os jurados e as testemunhas de acusação e de defesa pudessem pernoitar, dentro do regime de incomunicabilidade determinado pela lei. A acusada, por estar em liberdade, retirou-se, com o compromisso de retornar no dia seguinte pela manhã, para que o julgamento tivesse prosseguimento com o depoimento das testemunhas e os debates.

No dia seguinte, toda a liturgia do julgamento foi seguida para a reinstalação da sessão, com a presença de todos os protagonistas da cena judiciária : juiz; jurados; advogado; promotor, funcionários, policiais; espectadores e... claro, faltava alguém, exatamente a figura de proa, a personagem indispensável à continuidade do espetáculo: a acusada. Esperou-se horas. Aliás, espera-se até hoje, pois o banco destinado aos réus continua vazio. Suely desapareceu, rigorosamente desapareceu, pois eu nunca mais tive notícias a seu respeito. Talvez tenha tido a sensibilidade de verificar que seu caso era perdido. Ou, soube do fato ocorrido naquele mesmo dia, em outro plenário vizinho : o acusado saiu algemado ao final da sessão. Possível que tivesse receosa de ter o mesmo destino, ou ainda, hipótese não descartável, não confiou em seu advogado !