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O feminismo de uma não feminista

segunda-feira, 12 de março de 2012

Atualizado em 9 de março de 2012 09:52

Seu destino estava traçado desde a infância. No curso de sua vida iria percorrer caminhos até então intransitáveis para as mulheres. Com efeito, abriria horizontes, desbravaria trilhas, venceria obstáculos e derrotaria preconceitos. Transformaria o que não passava de utopias em sonhos e esses em realizações concretas.

Esther de Figueiredo Ferraz foi sem dúvida uma das figuras mais importantes da recente história do país. Deu inestimável contribuição à Justiça como advogada e à educação como professora.

Contou-me ter se autoalfabetizado. Morava na cidade de Mococa e diariamente separava as vogais das consoantes estampadas nas matérias do jornal "O Estado de São Paulo" e dessa maneira formava os nomes de familiares e de objetos. Quando recebeu a primeira cartilha já sabia ler.

Ainda muito jovem mostrou coragem, destemor e pertinácia. Assim, conseguiu libertar-se dos grilhões de uma sociedade patriarcal e preconceituosa e pode construir o seu futuro, aliás um futuro inatingível para a maioria das mulheres.

Esther foi pioneira porque foi livre e soube manter a sua liberdade e a sua integridade.

Cursar a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, por si só, já foi uma façanha notável. Segundo contou, ela prestou vestibular à revelia de seu pai. À época pouquíssimas mulheres cursavam o ensino superior.

Ela foi pioneira na advocacia, tendo escolhido uma área então considerada incompatível com a condição feminina: a criminal. Sua estreia no Tribunal do Júri, aliás a primeira mulher a atuar no Tribunal Popular, ganhou grande e favorável repercussão.

Formada em 1944, em pouco tempo passou a ser reconhecida no universo da profissão, diga-se um universo exclusivamente masculino, como excelente advogada, tendo sido eleita para o Conselho da OAB de São Paulo. Novamente pioneira, pois foi a primeira mulher a ter assento na instituição.

Esther não se limitou a advogar na área penal. Preocupou-se em vasculhar e investigar todas as questões pertinentes ao fenômeno criminal e ao homem criminoso.

Nesse mister ela não teve receio em enfrentar temas áridos, alguns inéditos e outros voltados para a condição feminina. Assim, abordou a prostituição, o lenocínio, a criminalidade infantil, o sistema penitenciário e a mulher presidiária.

Na área da educação igualmente foi percussora. Foi a mulher que pela vez primeira ocupou um Ministério, o da Educação.

Essa primazia repetiu-se no Magistério. Jamais uma mulher havia prestado concurso à livre docência no Largo de São Francisco. Foi aprovada com distinção. Consta que um dos catedráticos recusou-se a participar da banca examinadora, pois não admitia uma mulher na Congregação da Velha Academia. Anos depois, ao ser indagado sobre o porquê de sua objeção, o professor respondeu ter tido um acesso de burrice na ocasião.

Lembre-se, ainda, que Esther foi reitora da Universidade Mackensie, Secretária de Educação de São Paulo e integrante dos Conselhos Estadual e Federal de Educação.

Impressionava, sobremodo, a sua inteligência. Uma inteligência culta, ao mesmo tempo ágil, pragmática, sintonizada com a realidade e pronta a aplicar conceitos teóricos a problemas específicos a serem resolvidos.

Merece realce a sua grande capacidade de entender às céleres mutações ocorridas durante a sua trajetória de vida. Sem abdicar de seus valores e de seus princípios, jamais a vi criticando os tempos atuais e louvando épocas passadas, como uma empedernida saudosista. Soube viver o seu tempo e ajudou-o a melhorar. Não ficou presa ao passado, mas também não se escravizou aos modelos e estereótipos da modernidade. Continuou a ser livre.

O humanismo foi também uma outra característica do seu pensamento e da sua conduta. Procurou compreender o homem em sua dimensão global, com suas misérias e grandezas.

Estudiosa do penitenciarismo, via na pena um meio de socialização do detento, sendo que sem esse escopo a punição se transformaria em instrumento de vingança. Defendeu com ardor a criação de escolas internatos para os menores infratores, tendo por objetivo efetivamente prepará-los, sob os mais variados aspectos, especialmente suprindo-lhes as carências, para tornarem-se cidadãos úteis e prestantes.

Uma outra maravilhosa qualidade de Esther foi a de fazer e saber cultivar amizades. Ao deixar o Conselho Federal de Educação afirmou que a árvore de sua vida foi sempre alimentada pela seiva vinda de seus amigos.

Em uma entrevista ao jornalista Gaudêncio Torquato para o Jornal do Advogado, em 2001, em comovente reflexão, respondeu que se sentia uma mulher realizada, embora Deus não lhe tivesse dado tudo, pois "gostaria de ter casado". No entanto, disse ela, "não faço disso uma tragédia. Substitui pelo sentimento da amizade". E, arrematou afirmando ser a amizade "a mais elevada de todas as emoções humanas, porque ela é gratuita. Ao passo que o amor é interesseiro no sentido de que ele dá e quer receber. Tenho uma legião de amigos e isso me conforta".

Conviver com pessoas, compreendê-las, ampará-las, ajudá-las, talvez tenha sido a mais bela página da admirável obra que foi a sua vida.

Esta obra foi marcada por um humanismo excepcional, que a fez trilhar caminhos penosos, inóspitos, ainda impenetráveis para as mulheres, com arrojo, coragem e decisão. Foi verdadeiramente uma pioneira do feminismo pátrio, sem jamais adotar posições excludentes ou antagônicas em relação ao mundo masculino, predominante à época.