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Fraude à execução tributária nas alienações sucessivas: Análise da jurisprudência do STJ e a necessidade de fornecer segurança aos adquirentes de boa-fé

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Atualizado em 16 de novembro de 2017 15:39

Rafael Santos de Barros e Silva

Vamos aqui tecer algumas considerações relativas ao instituto da fraude à execução tributária, especificamente no que concerne às situações em que ocorrem alienações sucessivas de bens, a partir de uma análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria.

O instituto da fraude à execução tributária encontra previsão no art. 185 do Código Tributário Nacional - CTN e representa garantia da Fazenda Pública contra aqueles devedores que, já possuindo seus nomes inscritos em dívida ativa, venham a alienar ou onerar seus bens, sem que haja reserva de outros para garantir o pagamento do crédito inscrito, frustrando, assim, a satisfação da dívida1.

O efeito da fraude consiste na ineficácia do negócio jurídico perante a Fazenda Pública, de modo que, ainda que o bem tenha sido transferido e já se encontre registrado em nome de terceiro, poderá o credor tributário buscar a penhora e alienação desse bem.

O STJ, no Recurso Especial Repetitivo 1.141.990/PR, decidiu que a presunção de fraude estabelecida em favor da Fazenda Pública é absoluta, não cabendo prova em contrário e não tendo aplicação o disposto na súmula 375/STJ, a qual estabelece que a configuração da fraude apenas ocorra a partir do registro da penhora do bem que venha a ser alienado ou onerado2.

A lógica da súmula 375/STJ é a de proteger o terceiro adquirente de boa-fé, de modo que, se não consta do registro do bem, móvel ou imóvel, qualquer constrição, a aquisição pode ser realizada sem o risco de futura perda sob a alegação de que a alienação teria sido fraudulenta, salvo, claro, se o credor prejudicado provar que houve má-fé na operação de aquisição e o adquirente tinha ciência da situação de insolvência do alienante.

Nada obstante, o STJ passou a entender que este enunciado sumular não tem aplicação para o caso de execuções tributárias, ao que parece, fechando os olhos para o fato de que, dentre os precedentes que serviram de fundamento para a edição da Súmula 375, muitos foram tirados de julgamentos proferidos em execuções tributárias (por exemplo, AgRg no REsp 1046004/MT, REsp 734.280/RJ, REsp 739.388/MG, REsp 810.170/RS, REsp 865.974/RS, REsp 944.250/RS), demonstrando-se, aí, uma incoerência da tese firmada no recurso repetitivo com os julgamentos que já existiam sobre a matéria.

Pois bem, com a redação do art. 185 do CTN conferida pela LC 118/2005, o termo inicial a partir do qual a alienação ou oneração dos bens do devedor caracteriza fraude à execução é a data do ato de inscrição em dívida ativa3. Assim, a inexistência de constrições na matrícula do bem é insuficiente para garantir ao adquirente de boa-fé que não poderá perdê-lo em razão de o credor tributário identificar uma situação que caracterize a fraude, já que pode haver inscrição na dívida, mas ainda não ter havido penhora ou nem mesmo ter sido ajuizada execução fiscal.

Dessa maneira, de acordo com a jurisprudência do STJ, o adquirente, para se resguardar do risco de perder o bem futuramente, em razão de débitos do alienante, deverá não apenas obter a certidão negativa quanto à existência de constrições relativas ao bem adquirido, mas, também, deverá obter certidões negativas da dívida ativa daquele que lhe está vendendo o bem (débitos que o vendedor possua na DA, mas que não possuem relação com o objeto da alienação).

Essa necessidade de verificar a inexistência não apenas de constrições na matrícula do bem, mas, igualmente, ter que verificar a ausência de inscrição em dívida ativa no nome do alienante, traz alguns complicadores que podem resultar na ausência de qualquer segurança ao adquirente de boa-fé.

Por exemplo, é plenamente possível que o adquirente obtenha certidão negativa do alienante junto às Fazendas Nacional, Estadual e Municipal, mas, mesmo assim, não tenha qualquer garantia de que não poderá perder o bem em razão da incidência do art. 185 do CTN. Isso se dá por uma simples razão, não existe uma CND nacional, que abranja todas as Fazendas Públicas Estaduais e Municipais. Com isso, ainda que o adquirente consiga a CND no estado e no município onde reside e trabalha o alienante, pode ser que esse esteja inscrito na dívida ativa de outro município, em relação ao qual o adquirente não teria como saber que lá existiriam débitos tributários. E, de acordo com a atual jurisprudência do STJ, qualquer alegação que o adquirente venha a deduzir para tentar provar sua boa-fé será inócua, já que se entende pela presunção absoluta (jure et de jure) da fraude prevista no art. 185 do CTN, bastando a presença dos elementos objetivos previstos no dispositivo legal.

Esse entendimento do STJ, ao conferir presunção absoluta de fraude após a inscrição em dívida ativa, já gera, por si só, uma situação de insegurança e imprevisibilidade para os adquirentes de bens no Brasil, de uma forma geral. Mas há uma preocupação ainda mais específica que gera a necessidade de um sério debate em torno dessa jurisprudência do STJ, são os casos em que ocorre alienação sucessiva de um bem e o último alienante não tem qualquer inscrição em dívida ativa, mas, mesmo assim, possa vir o adquirente a perder o objeto da aquisição em execução fiscal movida contra proprietário anterior àquele que lhe vendeu o imóvel.

Na hipótese, então, o alienante não possui inscrição em dívida ativa, mas, quando adquiriu o bem que agora está alienando, o antigo proprietário possuía inscrição e, com isso, estava sendo caracterizada a fraude à execução, com presunção absoluta, conforme jurisprudência do STJ.

Como fica, então, a situação do adquirente na última operação? Mesmo tomando todas as cautelas para verificar a inexistência de constrição na matrícula do bem e a inexistência de inscrição em dívida ativa em nome daquele que lhe está vendendo o móvel/imóvel, poderia perdê-lo em razão de dívida tributária de proprietário anterior ao alienante que lhe realizou a venda?

Em pesquisa de jurisprudência no sítio eletrônico do STJ, utilizando-se as expressões "alienação sucessiva", "fraude", "execução" e "tributário", constata-se que a 2ª Turma do STJ tem aplicado a presunção absoluta mesmo para os casos de alienação sucessiva, sem fazer qualquer distinção para o caso. Na 1ª Turma não foram encontrados julgados que tratem especificamente dessa questão, mostrando-se, então, que ainda há espaço para um melhor ajuste da jurisprudência quanto ao tema.

Quando se parte para verificar o entendimento sobre o tema em nível dos Tribunais Regionais Federais, verifica-se a existência de uma preocupação em fazer um distinguishing na aplicação da fraude à execução para os casos em que houve alienação sucessiva. Cumpre destacar alguns entendimentos dos Tribunais Regionais:

"...não obstante a orientação tomada pela Corte Superior, nas situações em que houve sucessivas alienações e o último adquirente tomou todas as cautelas a seu encargo, bem como se encontre configurada a omissão do Fisco, deve ser afastada a presunção de fraude à execução por ser desarrazoado e desproporcional que se imponha ao alienante o ônus de investigar toda a cadeia dominial do bem que pretende adquirir". Processo n.: 0014828-90.2006.4.01.3600/MT, 8ª Turma do TRF 1.ª região, Data de julgamento: 22/05/2017.

O terceiro embargante observou todas as cautelas ordinariamente exigidas nessa espécie de negócio (compra de bem imóvel), constando expressamente na Escritura Pública de Compra e Venda o rol necessário das certidões negativas, inclusive a de Tributos Federais do último proprietário do imóvel. 4. A decisão judicial que decretou fraude à execução fiscal não pode produzir efeitos em relação ao último adquirente de imóvel quando este comprou o bem em segunda alienação desembaraçado de qualquer ônus no registro imobiliário, não havendo demanda capaz de conduzir o alienante à insolvência, e, também, quando a Fazenda Pública não comprovou a negligência ou má-fé do último comprador. 5. Sendo o imóvel sujeito a registro, deve a Fazenda Pública apurar a existência de alienações posteriores, requerendo a necessária integração de terceiros à lide, para estender a estes os efeitos da decretação da fraude à execução. Caso não providenciada a integração de terceiros à lide, a projeção 'extra' autos dos efeitos da decisão dependerá de demonstração, pela Fazenda Pública, da má-fé ou negligência dos posteriores adquirentes do bem, nas alienações onerosas supervenientes, devendo prevalecer, se não houver tal demonstração, o princípio da boa-fé. 6. Se houver alienações sucessivas, a presunção de boa-fé favorece os posteriores adquirentes. Assim deve ser interpretado o art. 185 do CTN. Não se pode atribuir ao crédito tributário privilégio que vai além daqueles expressamente previstos na legislação tributária. 7. Uma vez que a parte embargante não adquiriu o imóvel diretamente do devedor/executado, mas de terceira pessoa que havia adquirido daquele, e ausentes provas de que tivesse conhecimento efetivo ou presuntivo da existência de demanda capaz de levar o devedor/executado à insolvência, não há como subsistir o reconhecimento de ocorrência de fraude à execução, sob pena de se desprestigiar a segurança dos negócios jurídicos. (AC 50040440920164047003, LUCIANE AMARAL CORRÊA MÜNCH, TRF4 - SEGUNDA TURMA, D.E. 28/06/2017)

"...Quando os embargantes adquiriram o imóvel de boa fé, o fizeram já de terceiro adquirente, inclusive com interveniência da CEF, mediante financiamento. Se os embargantes não tivessem apresentado todas as certidões exigidas por aquela instituição bancária, o financiamento não teria sido concedido. 5. Se todas as cautelas para a concretização do negócio jurídico foram observadas, há que se considerar a boa-fé dos embargantes na aquisição do imóvel, objeto da penhora no feito executivo. 6. Ausência de provas nos autos de que os embargantes tinham conhecimento do débito fiscal do executado, bem como que agiram em consilium fraudis com o executado, mesmo porque, neste aspecto, negociaram a alienação do imóvel já com terceiro adquirente e não com o executado. 7. Se assim não fosse, estaria configurada uma relevante insegurança jurídica nas relações de compra e venda de imóveis que possuam uma cadeia dominial extensa, haja vista que não seria possível ou certamente seria muito dificultoso ao adquirente checar a existência de todos os gravames oriundos de débitos dos proprietários anteriores, se tais dívidas não estiverem registradas nas certidões imobiliárias. 8. Remessa oficial não-provida.
(REO 00002715620144058305, Desembargador Federal Gustavo de Paiva Gadelha, TRF5 - Terceira Turma, DJE - Data::19/01/2015 - Página::92.)

...Sensatamente concluiu a sentença recorrida que "a alienação operada em favor do embargante não guarda mais qualquer relação com o executado, não sendo razoável exigir do adquirente a realização de diligências e busca de informações sobre a existência de execução em andamento com relação a todos os anteriores proprietários". Precedentes deste Tribunal".
(AC 00110285720164039999, DESEMBARGADOR FEDERAL NELTON DOS SANTOS, TRF3 - TERCEIRA TURMA, e-DJF3 Judicial 1 DATA:21/08/2017 ..FONTE_REPUBLICACAO:.)

É certo que, conforme a jurisprudência do STJ, o art. 185 do CTN trata de uma presunção absoluta de fraude e deve ter aplicação quando o devedor, inscrito em dívida ativa, aliena ou onera seus bens, devendo o adquirente adotar toda a precaução necessária no sentido de obter as certidões negativas do alienante.

Mas, quando se trata de alienação sucessiva a aquisição do imóvel não se deu do devedor inscrito em dívida ativa, mas, sim, de um adquirente posterior que já havia comprado o imóvel do devedor, não estando o atual alienante inscrito em dívida.

Ainda que a súmula 375/STJ não tenha aplicação para as execuções fiscais, quando se tratar de alienações sucessivas, a única forma de o adquirente ter conhecimento a respeito de alguma restrição decorrente de dívidas de proprietários anteriores ao atual alienante é por meio do registro da penhora. Do contrário, exigir-se-á uma tarefa absurda de ter o adquirente que analisar a existência de débitos inscritos em dívida em relação a todos aqueles que, um dia, já foram proprietários do bem objeto da alienação atual.

Aquele que tomou todas as precauções para verificar se quem lhe vendia o imóvel estava inscrito em dívida ativa não pode vir a perder o bem adquirido porque um proprietário anterior estava inscrito em dívida ativa quando vendeu o bem ao ultimo alienante. Não se pode exigir que o adquirente seja obrigado a verificar a situação fiscal de todos os antigos proprietários do bem que constem da cadeia dominial, quando não consta nenhum gravame na matrícula do imóvel, essa exigência não consta da lei. A previsão legal se refere ao alienante atual, não a todos os anteriores que um dia foram proprietários do bem.

Não se desconhece que as alienações sucessivas podem, é verdade, servir de instrumento para fraudar a Fazenda Pública, mas essa é uma questão cujo ônus da prova deve recair sobre o credor, não podendo o adquirente que cumpriu as cautelas previstas na lei ser penalizado com o estabelecimento de uma presunção, absoluta, de que estaria em conluio com o devedor fazendário.

Situações de insegurança como esta são um dos grandes fatores para aumentar o "risco Brasil", tornando nossa economia mais cara para investidores, diante da falta de segurança jurídica para as transações econômicas que sejam realizadas, daí a importância de que a jurisprudência construída no âmbito dos tribunais superiores represente um capital consistente num conjunto de conhecimentos que presta serviços aos potenciais litigantes, informando acerca de suas obrigações legais4.

Se a sociedade não conta com esse capital, é dizer, com precedentes jurisprudenciais uniformes e com interpretações claras e seguras do direito positivo, os indivíduos não podem avaliar com exatidão as consequências de seus atos, o que os induz a não realizar condutas econômicas que passam a ser, desnecessariamente, transformadas em condutas arriscadas, diante de uma, por vezes ocorrente, apatia dos juízes em refletir acerca das consequências finais de suas decisões.

* Rafael Santos de Barros e Silva é advogado em Brasília. Assessor de ministro do STJ (2007/2008). Advogado da União (2006/2008). Mestre em Direito (2012). Professor substituto da UFPE (2005). Bacharel em Direito pela UFPE (2004).

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1 Art. 185 CTN: Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa. (Redação dada pela Lcp 118, de 2005) Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica na hipótese de terem sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita. (Redação dada pela Lcp 118, de 2005)

2 O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente. (Súmula 375, CORTE ESPECIAL, julgado em 18/3/2009, DJe 30/3/2009)

3 Antes da LC 118/2005, com base na redação original do art. 185 do CTN, a fraude apenas estava caracterizada a partir da citação do devedor na execução fiscal.

4 POSNER, Richard A. El Analisis Economico del Derecho. México: Fondo de Cultura Económica, 2007. p. 836