COLUNAS

Tratando os leões

terça-feira, 13 de abril de 2004

Atualizado em 12 de abril de 2004 15:36

Francisco Petros*

 

Tratando os Leões

 

Por estes dias a Dívida Consolidada do Setor Público (DCSP) deve superar o total de R$ 1,3 trilhão. Em termos relativos ao Produto Interno Bruto (PIB) este número significa cerca de 60% (descontando-se o total das reservas do total da DCSP) e 80% em termos brutos. A DCSP inclui a Dívida Pública Mobiliária Federal (DPMF) da ordem de R$ 743 bilhões ao final do mês de fevereiro que é representada pelo total dos títulos que são negociados no mercado financeiro. A DPMF é constituída de títulos indexados à taxa de juros básica (atualmente em 16,25% ao ano) e que representam cerca de 52% do total. Se a taxa de juros básica varia, a dívida varia na mesma proporção (descontando-se os impostos que incidem sobre os juros, tais como a CPMF e o Imposto de Renda). Os títulos indexados ao dólar representam cerca de 19% da DPMF, os títulos com taxas de juros prefixados 15% e os indexados à inflação (IGP-M e IPC) 14%. Portanto, 85% do total da DPMF flutuam em função da taxa de juros, e/ou da taxa de câmbio e/ou da taxa de inflação. Esta composição da DPMF já foi pior e melhorou desde meados do ano passado por razões endógenas (construídas pelo próprio mercado) por meio da queda da taxa cambial e da demanda por títulos públicos, bem como pela maior colocação de títulos prefixados uma vez que o mercado espera taxas de juros básicas mais baixas no futuro.

Apesar da melhoria do perfil da dívida nos últimos meses, temos de reconhecer que a situação do endividamento público brasileiro é grave. O Brasil é o país mais endividado em termos relativos (dívida pública/ PIB) dentre os países emergentes e o mais vulnerável do ponto de vista externo. Neste contexto, cresce (dentro e fora do governo) a discussão sobre a redução do superávit primário fiscal (receitas menos despesas antes do pagamento dos juros) por meio da exclusão dos investimentos públicos de seu cálculo. Se o superávit primário for reduzido, haverá menos recursos para pagar os juros e mais para investimentos públicos e a relação dívida pública/PIB se tornará um indicador mais crítico aos olhos dos investidores domésticos e externos. Entretanto, mais investimentos públicos podem significar mais crescimento do PIB o que influencia positivamente a relação dívida/PIB por meio do aumento do denominador. Há ainda a possibilidade de que as taxas de juros caiam, mas a meta de inflação estabelecida pelo governo (muito apertada e tecnicamente mal construída) é uma barreira importante para que isto ocorra no curto prazo.

O Fundo Monetário Internacional (FMI), a partir da semana passada, começou a jogar "água gelada" (via entrevistas e relatórios) nas pretensões do Governo brasileiro de efetuar mais investimentos públicos e descontá-los do cálculo do superávit primário. Como se sabe o FMI é um organismo multilateral (de direito), mas de facto é uma espécie de "auditor" do sistema financeiro. O argumento "técnico" do FMI para rejeitar a proposta brasileira é simples: investimentos públicos reduzem a capacidade de redução da dívida pública e são "duvidosos" do ponto de vista do crescimento do PIB, pois têm baixa produtividade. Não deixa de ser um forte argumento de vez que o setor público brasileiro é uma draga voraz de recursos e faz uma entrega sofrível de serviços e bens.

As razões dos credores são legítimas (contra a redução do superávit primário), afinal de contas o Brasil é um país com risco alto (dívida elevada). Entretanto, está ficando cada vez mais difícil para o Governo explicar para os seus eleitores as razões pelas quais as promessas de campanha não estão sendo cumpridas. De outro lado, o governo se amarrou a um número de superávit primário (4,25% do PIB) que se transformou na "pedra angular" de sua política econômica. No ano passado, com a taxa de juros e de câmbio nas alturas um maior aperto fiscal se fez necessário para que a dívida não explodisse. Neste ano, os juros são menores (apesar de altos), mas o superávit primário permanece no mesmo nível. A relação dívida/PIB também está estável apesar do aumento do superávit primário. O Governo parece comprometido com uma "austeridade" que programaticamente inexistia no passado no Partido dos Trabalhadores (PT). Desta forma, se o governo mudar este indicador de superávit primário para baixo, o "mercado" vai identificar nesta medida maiores riscos para a solvência da dívida. Figurativamente, é como se o tratador dos leões de um circo aumentasse num certo momento a ração de carne das feras de 5 kg para 10 kg por dia. Se o dono do circo, por razões de economia, mandar reduzir a ração, o tratador vai ter de convencer os leões que eles vão ter de comer menos a partir de então. No meu entender, leões são mais conhecidos pela ferocidade e pelos estragos que suas mordidas fazem e não pela compreensão daquilo que ouvem.

De qualquer forma, estamos num momento muito especial e perigoso: o Governo do Presidente Lula terá de fazer uma escolha clara em relação a sua política econômica. Se quiser manter o status das recomendações do FMI e, ao mesmo tempo, não reformar profundamente o Estado, terá de seguir a política "fiscalista" de Palocci. Se quiser aumentar os investimentos públicos terá de reduzir as despesas de custeio da máquina estatal (com reformas estruturais) ou reduzir o superávit primário e deixar menos recursos para pagar os juros. Há combinações possíveis nas alternativas acima, mas esta é a "Escolha de Sofia" do Presidente Lula. Em meio às dúvidas fiscais, ele corre o risco considerável de cumprir um mandato medíocre em termos de crescimento.
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* Economista e pós-graduado em Finanças. Foi Vice-Presidente e Presidente (1999-2002) da APIMEC - Associação Brasileira dos Analistas e Profissionais do Mercado de Capitais (São Paulo).







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