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MP não pode obter quebra de sigilo no exterior por meio de colaboração jurídica

Autoridade brasileira não pode obter no exterior, pela via da colaboração jurídica internacional, o que lhe é proibido em seu país, no exercício da competência própria. A observação foi feita pelo presidente do STJ, ministro Ari Pargendler, ao negar pedido do MP/SP para suspender uma sentença que havia impedido a requisição, ao governo dos Estados Unidos, de informações relativas a operações bancárias que teriam sido realizadas irregularmente por membros da Igreja Universal do Reino de Deus.

Da Redação

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Atualizado às 08:47

Sigilo bancário

MP não pode obter quebra de sigilo no exterior por meio de colaboração jurídica

Autoridade brasileira não pode obter no exterior, pela via da colaboração jurídica internacional, o que lhe é proibido em seu país, no exercício da competência própria. A observação foi feita pelo presidente do STJ, ministro Ari Pargendler, ao negar pedido do MP/SP para suspender uma sentença que havia impedido a requisição, ao governo dos Estados Unidos, de informações relativas a operações bancárias que teriam sido realizadas irregularmente por membros da Igreja Universal do Reino de Deus.

A questão teve início com a instauração, pelo MP paulista, de inquérito civil com a finalidade de apurar notícias de irregularidades praticadas por membros da Igreja Universal do Reino de Deus. Durante as investigações, o MP expediu solicitação de assistência legal mútua entre Brasil e Estados Unidos, a fim de que as autoridades destinatárias do pedido de cooperação providenciassem informações relativas a operações bancárias indicadas como ilícitas pelo inquérito.

A Igreja Universal impetrou MS contra ato do promotor de Justiça da 9ª Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social de São Paulo. Pediu, ainda, a cassação da solicitação de assistência legal, argumentando que a quebra de sigilo bancário depende de prévia autorização judicial. Em primeiro grau, a ordem foi concedida para tornar nulo o teor da solicitação de assistência mútua, que objetiva a quebra do sigilo bancário. A decisão considerou que o pedido não continha a prévia e necessária autorização judicial.

O MP pediu ao TJ/SP a suspensão da sentença. Segundo afirmou, a investigação visa apurar a utilização indevida de entidades de fins religiosos, inclusive com desvio de valores para enriquecimento de particulares. O MP explicou, ainda, que a assistência solicitada consistiu na apreensão ou congelamento de bens e quebra do sigilo de contas bancárias declinadas, com o fornecimento de documentos dos investigados a partir do ano de 1992.

A sentença foi mantida. O TJ/SP considerou que, por mais relevantes que sejam os fatos objeto de investigação, as providências iniciadas por meio da cooperação judicial não podem deixar de observar os procedimentos e as restrições legais vigentes nos países parceiros, principalmente quando puderem resultar na obtenção de informações pessoais e sigilosas relacionadas à vida privada e à intimidade. Inconformado, o MP recorreu ao STJ, com pedido de suspensão de segurança, alegando grave lesão à ordem pública.

O presidente do STJ, ministro Ari Pargendler, negou o pedido. "Parece temerário autorizar o MP a solicitar a quebra de sigilo bancário no exterior, sabido que no Brasil essa providência depende de ordem judicial", considerou. "Tanto mais que a quebra do sigilo bancário constitui fato irreversível, e que, portanto, caracteriza o perigo inverso : o de que o sigilo bancário seja quebrado e, posteriormente, declarado ilegal", concluiu o presidente.

  • Leia abaixo a íntegra da decisão.

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Superior Tribunal de Justiça

SUSPENSÃO DE SEGURANÇA Nº 2.382 - SP (2010/0155667-6)

REQUERENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

REQUERIDO : DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

IMPETRANTE : IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS

ADVOGADO : ANTÔNIO SÉRGIO ALTIERI DE MORAES PITOMBO E OUTRO(S)

DECISÃO

1. Os autos dão conta de que o Ministério Público do Estado de São Paulo "instaurou o Inquérito Civil nº 569/2009, com a finalidade de apurar notícias de irregularidades praticadas por membros da Igreja Universal do Reino de Deus" e que "no curso do referido procedimento investigatório foi expedida Solicitação de Assistência Legal com fundamento no Tratado de Assistência Legal Mútua entre Brasil e Estados Unidos da América (...), a fim de que autoridades destinatárias do pedido de cooperação, naquele País, providenciassem informações relativamente a operações bancárias indicativas da ilicitude noticiada nos autos do Inquérito Civil" (fl. 03/04).

A Igreja Universal do Reino de Deus impetrou mandado de segurança contra o ato do Promotor de Justiça Dr. Saad Mazloum, da 9ª Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, pedindo a cassação da Solicitação de Assistência Legal ao argumento de que a quebra de sigilo bancário depende de prévia autorização judicial (fl. 69/89).

A MM. Juíza de Direito Dra. Maria Gabriella Pavlópoulos Spaolonzi concedeu a ordem para "tornar nulo o teor da Solicitação de Assistência Legal Mútua que objetiva a quebra do sigilo bancário a que se reporta a petição inicial porquanto desprovida de prévia e necessária autorização judicial" (fl. 539).

Lê-se na sentença impugnada:

"A assistência legal direta, ou auxílio direto, opera-se por um pedido de cooperação que tramita diretamente da autoridade competente para formulá-lo e a autoridade correspondente no país requerido, por meio de canais menos burocratizados e mais ágeis.

Este modelo de assistência legal ou auxílio direito está previsto em vários instrumentos internacionais de que o Brasil é signatário. Os respectivos instrumentos devem ser aprovados pelo Poder Legislativo e postos em vigor pelo Poder Executivo.

Somente assim adquirem força de lei no país.

A autoridade impetrada destaca ter pautado seu comportamento no disposto pelo Decreto 3.810/2001.

Neste cenário, plausível o quanto aduzido pelo impetrante em 16.07.2010 com arrimo no artigo XX de tal Decreto segundo o qual sua entrada em vigor fica vinculada aos instrumentos de ratificação e à sua troca entre os dois países. E não consta qualquer informação de que este fato já tenha se operado.

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O acordo firmado entre os dois países, por sua relevância, reclama o tratamento dispensado aos tratados e depende da ratificação para gerar efeitos internos e internacionais. E em especial, quando o objetivo almejado consiste na quebra do sigilo bancário.

Todo o procedimento adotado pelos órgãos de investigação reclama cautela necessária para que não sejam violadas regras constitucionais basilares. E estas regras devem ser observadas quando do pedido de colaboração internacional, sem que se olvide da importância que os esforços para o combate aos crimes organizados possuem.

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Assim sendo, tem-se que o Decreto 3.810/2001, como expresso pela impetrante, não preencheu todas as formalidades para sua vigência. Falta-lhe a ratificação, como imposto pelo seu próprio artigo XX.

Não fosse apenas esta a questão, pelo Princípio da Reciprocidade, tem-se caracterizado o excesso no ato praticado. Ao Estado requerido roga-se a prática de determinados atos ainda que investigatórios, dentro dos limites das atribuições do órgão solicitante. E neste cenário, a autorização judicial é de rigor. Como dito em linhas anteriores, a própria autoridade coatora foi clara ao reconhecer que a quebra do sigilo bancário é afeta à atividade jurisdicional, ainda que não de forma absoluta.

Para prolongar a prática destes atos aos países estrangeiros, mister se faria a determinação judicial que, no caso, apesar de noticiada uma ação criminal perante a 9ª Vara Criminal de São Paulo não veio a ser requerida.

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Como, então, projetar aos órgãos requeridos a prática de atos para os quais, pela própria Constituição Federal local, não se dispõe da atribuição e competência necessária ?

A conjugação de todos estes motivos, por si, reclama maior cautela nos atos praticados pela nobre autoridade impetrada. A natureza do pedido formulado - quebra efetiva do sigilo bancário - no âmbito nacional, reclama a autorização expressa do Poder Judiciário. E dentro desta limitação pode o Ministério Público atuar.

Pouco importa a denominação formal que veio a ser dada ao instrumento utilizado pelo Ministério Público para obtenção da quebra do sigilo bancário. O fato é que para 'transferência' de tal ato investigativo e por projeção da atribuição interna do órgão ministerial, mister se faria a prévia autorização judicial.

Embora admirado o trabalho desenvolvido pelo ilustre Promotor de Justiça Dr. Saad Mazloum, a ausência de ratificação do Decreto avocado pelo ato tido por ilegal e necessidade da autorização judicial para a formulação do pedido impõem a procedência da pretensão inicial" (fl. 534/538).

O Ministério Público do Estado de São Paulo pediu a suspensão dos efeitos da sentença perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (fl. 36/57).

O Presidente do Tribunal de Justiça daquele Estado, Desembargador Viana Santos, indeferiu o pedido à base da seguinte fundamentação:

"... o Ministério Público do Estado de São Paulo, para o fim de instruir inquéritos, processos criminais e civis, inclusive dissolução de pessoas jurídicas, formulou Solicitação de Assistência Legal Mútua, objetivando a 'obtenção de documentos bancários relacionados a contas que enviaram e receberam valores de Investholding Limited (com sede em Cayman Islands), Cableinvest Limited (com sede em Jersey Channel Islands) e outras'.

Tal providência tem por causa a investigação encetada contra pessoas físicas e jurídicas, em razão de possível utilização indevida de entidade de fins religiosos - a Igreja Universal do Reino de Deus, inclusive com desvio de valores - para enriquecimento de particulares.

A assistência solicitada consistiu na apreensão ou congelamento de bens e quebra do sigilo de contas bancárias declinadas, com o fornecimento de documentos dos investigados a partir do ano de 1992...

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Por mais relevantes que sejam os fatos objeto de investigação, as providências encetadas por meio da cooperação judicial, não podem deixar de observar os procedimentos e as restrições legais vigentes nos Países parceiros, mormente quando puderem resultar na obtenção de informações pessoais e sigilosas relacionadas à vida privada e intimidade, bens constitucionalmente protegidos no art. 5º, inciso X, no qual está inserida a garantia do sigilo bancário ou aos negócios da pessoa jurídica legalmente constituída.

Observe-se que a Lei Complementar n. 105/2001 em seu art. 3º, condiciona a prestação de informações pelo Banco Central do Brasil, pela Comissão de Valores Mobiliários e pelas instituições financeiras, à determinação pelo Poder Judiciário, preservando-se, ainda, o seu caráter sigiloso mediante acesso restrito às partes, que delas não poderão servir-se para fins estranhos à lide.

Desta forma, é imprestável como prova, documentação de natureza bancária, ainda que conseguida por meio de cooperação internacional, que não observe-se as formalidades da lei nacional para sua obtenção.

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A suspensão da segurança poderia resultar em dano inverso, caso venha a ser atendida a solicitação formulada, com a remessa pelo País estrangeiro, da vasta documentação pretendida.

Não aproveita ao Requerente a alegação de que inexiste ato de autoridade, por ter apenas requerido providências, uma vez que pelo acordo firmado (Mutual Legal Assistence Treaty), promulgado pelo Decreto n. 3.810/2001, as partes no artigo I.1 se 'obrigam a prestar a assistência mútua', escusando-se apenas nas hipóteses previstas no seu artigo III.

A necessidade da observância das formalidades legais no exercício da atividade investigatória por parte do Ministério Público, não importa em violação a sua autonomia institucional e independência funcional, sendo assente perante a Suprema Corte a necessidade da autorização judicial para a quebra do sigilo bancário, para a qual há a ilegitimidade do Ministério Público...

Saliente-se, ainda, que tratando-se de prova documental em poder de instituições financeiras, não há o periculum in mora, pela necessidade de observar-se as formalidades legais para a obtenção da quebra do sigilo bancário.

Assim sendo, o presente pedido não é mesmo de ser deferido, eis que não existem elementos ensejadores da suspensão. Daí porque indefiro o pedido de suspensão dos efeitos da sentença" (fl. 61/65).

O Ministério Público do Estado de São Paulo articulou, então, o presente pedido de suspensão de segurança, alegando grave lesão à ordem pública (fl. 01/33).

2. A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça decidiu que a cooperação jurídica internacional não se esgota em sede de jurisdição, mas deixou claro que, fora dela, as investigações estão limitadas pelos mesmos "padrões, inclusive dos de natureza processual, que devem ser observados para as providências semelhantes no âmbito interno (e, portanto, sujeitas a controle pelo Poder Judiciário, por provocação de qualquer interessado) - Rcl nº 2.645, SP, rel. Min. Teori Zavascki, 16.12.2009.

Salvo melhor juízo, a autoridade brasileira, portanto, não pode obter no exterior, pela via da colaboração jurídica internacional, o que lhe está vedado, no exercício da competência própria, no país.

Sob esse viés, parece temerário autorizar o Ministério Público a solicitar a quebra de sigilo bancário no exterior, sabido que no Brasil essa providência depende de ordem judicial.

Tanto mais que a quebra do sigilo bancário constitui fato irreversível, e que, portanto, caracteriza o perigo inverso: o de que o sigilo bancário seja quebrado, e posteriormente declarado ilegal.

Indefiro, por isso, o pedido.

Intimem-se.

Brasília, 23 de setembro de 2010.

MINISTRO ARI PARGENDLER

Presidente

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