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A ditadura do heterossexualismo

Adauto Suannes comenta as manifestações dos gays

Da Redação

terça-feira, 5 de agosto de 2003

Atualizado às 07:27

 

A ditadura do heterossexualismo

 

Os últimos dois dias foram marcados por protestos homossexuais. No domingo, ativistas de movimentos gays promoveram um dia de manifestações em São Paulo e no Rio. O beijo foi a arma escolhida para protestar contra a expulsão de dois homens que se beijavam num shopping e a campanha do Vaticano que se opõe à união civil de homossexuais. No Shopping Frei Caneca, em São Paulo, o "beijaço" reuniu cerca de 3 mil pessoas na praça de alimentação. No Rio, o "beijaço" foi na frente da Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, zona sul.

 

Ontem foi a vez de Salvador e Curitiba. Cerca de 450 manifestantes protestaram contra documento lançado pelo Vaticano na semana passada que condena o casamento entre pessoas do mesmo sexo, queimando cópias do documento em frente às catedrais.

 

Veja abaixo o comentário de Adauto Suannes, desembargador aposentado do TJ/SP, sobre essas manifestações:

 

Heterossexualismo compulsório

 

Adauto Suannes*

 

Quatro notícias divulgadas na imprensa no mesmo dia sobre um mesmo tema: gays são presos em um conhecido shopping center de São Paulo por estarem-se beijando em público, diz a página de notícias locais do jornal Folha de São Paulo de 31 de julho; o presidente George W. Bush deverá enviar ao Congresso de seu país um projeto de lei proibindo o casamento de homossexuais, informa a página de notícias internacionais do mesmo diário, que também noticia que o Papa vem de editar um documento condenando o homossexualismo e conclamando os governos a aderirem à sua cruzada. Finalmente, a página dedicada à chamada vida social do mesmíssimo jornal dá conta de que fulano de tal recebeu em seu apartamento inúmeros amigos para celebrar os oito anos de união com beltrano de tal.

 

Que dizer disso? Em primeiro lugar, é para indagar se compete ao chefe da Igreja Católica definir a natureza do homossexualismo, como se se cuidasse se mera opção, assim como alguém se dispõe, sem bem saber porque, a torcer pelo Milan ou pelo Udinese. Até outro dia, era, de fato, o homossexualismo considerado doença até mesmo por organismos internacionais, que, talvez em razão da complexidade do assunto, preferiram deixar o tema aos cuidados dos cientistas, no que fizeram muito bem. Um novo Papa vir a pedir perdão aos homossexuais daqui a 300 anos, como fez o atual em relação a Galileu Galilei, não evitará os estragos que tal equivocado enfoque vem trazendo e continuará a trazer a inúmeras pessoas cuja opção de vida só a elas interessa.

Em segundo lugar, o elo que liga duas pessoas no casamento não é o celebrante, seja ele padre ou pastor, nem a bênção que eventualmente recebam, nem a roupa branca que exprime a virgindade da noiva, mas o vínculo amoroso, que a igreja católica identifica com o Espírito Santo. Os tribunais canônicos anularam e ainda anulam casamentos de heterossexuais sob o fundamento de que foi contraído sem amor, faltando, assim, um dos seus requisitos básicos. Que nome terá então aquele vínculo afetivo que liga dois homossexuais por tantos anos? Quantos casamentos heterossexuais chegam a tanto hoje em dia?

Quanto ao beijo, os nossos penalistas de meados do século passado o consideravam, de fato, ato obsceno, distinguindo, porém, o beijo propriamente dito do mero ósculo. Basta ver os filmes dos anos 40 e os de hoje para ter-se clara a diferença entre o que ocorria naquela época e o que ocorre em nossos dias. Lá, homem e mulher comprimiam boca contra boca, ambas fechadas, em um gesto mecânico, longe certamente do que faziam no leito nossos pais e avós. Língua aparecendo nem pensar. O realismo cinematográfico ou o afrouxamento dos costumes acabou levando-nos para o canto oposto do córner: até mesmo os programas de televisão exibidos em horário adequado a crianças exibem não só os beijos mais calorosos como o próprio ato sexual.

A imoralidade, portanto, não estaria no ato em si, mas nas pessoas que o praticam, o que nos leva para o terreno da intolerância pura e simples. E essa intolerância tanto pode levar à luta entre católicos e protestantes, judeus e palestinos, brancos e negros, corintianos e palmeirenses, sem que se veja, sob qualquer critério objetivo, qual a finalidade dela. Digo melhor: a finalidade seria dizimar o inimigo, sem a menor preocupação em tentar descobrir o que no modo de ser de quem é diferente de nós tanto nos incomoda.

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* Desembargador aposentado do TJ/SP

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