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Era digital

Nancy Andrighi: Olhar do juiz jamais poderá ser substituído pela inteligência artificial

Autodeclarada uma imigrante digital, Ministra do STJ propõe uma reflexão sobre o uso das ferramentas tecnológicas e a imprescindível jornada de humanização dos julgamentos feitos pelo judiciário.

Da Redação

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Atualizado às 20:53

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça completou um ano desde o primeiro julgamento utilizando plataforma virtual. Sobre o Direito no mundo digital, a Ministra Nancy Andrighi palestrou hoje, 11/10, na tradicional reunião-almoço do IASP, em SP. 

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Com o tema "Manter-se humano na era digital", a ex-corregedora do CNJ alertou para a importância de a tecnologia ser usada como ferramenta de auxílio no dia a dia do judiciário, como ela faz com os advogados que não podem viajar à Brasília e se utilizam do Skype para uma breve conferência. Mas foi taxativa ao afirmar que a inteligência virtual jamais poderá substituir o toque humano necessário para auscultar o coração de cada lide e tentar amenizar o sofrimento daquele que espera pelo julgamento de sua vida.

"É o fim do papel. Mas não é fim da cruel espera. No ponto de partida há sim a virtualização de todos os processos, mas no ponto de chegada, ao juiz, não houve mudança. O juiz continua e deve ser o único incumbido de julgar os processos que aportam no seu gabinete. O julgamento cumpre um ritual humano e não pode ser colocado no compasso do virtual."

Impulsionada pela criação dos Juizados Especiais Federais, em 2001, a informatização no âmbito da Justiça Federal trouxe um primeiro modelo de PJ-e, concebido para dar maior celeridade. Mas somente em 2006, a lei 11.419 dispôs sobre a informatização do processo judicial. Quase 13 anos depois, a ministra ainda lamenta que os processos digitais ainda não estejam acessíveis a todos os advogados, como acontece com os cegos.

De acordo com a OAB, há no quadro de inscritos cerca de mil deficientes visuais e a porta de trabalho no STJ está fechada para esses advogados. O tribunal não tem instalado em seus processos ferramentas de Reconhecimento Óptico de Caracteres (software OCR que permite  acesso ao conteúdo original de documentos por qualquer usuário). Há mais de dois anos essa preocupação aflige sua excelência, mas esperançosa ela luta para que até o fim do ano o STJ se torne totalmente acessível.

"Eu penso que somente depois que o Superior Tribunal de Justiça abrir definitivamente essa porta aos advogados cegos é que nós merecemos o codinome de tribunal da cidadania."

Sobre os julgamentos virtuais, a ministra considera verdadeiramente aflitivo o trabalho do juiz que passa horas lendo a tela do computador sem travar nenhum diálogo, sob a angustiante, intensa e longa leitura de massa. Entre os exemplos, ela citou a sessão virtual em andamento da 3ª turma, que tem na pauta dessa semana 548 recursos.

Para ela, o novo modo de julgar produz uma verdadeira supressão de debates entre os ministros, empobrecendo a troca de conhecimento e perdendo perspectivas de teses doutrinárias ontem verbalizadas. "O olho no olho foi substituído pelo olhar solitário na tela cinzenta do computador."

Para produzir o equilíbrio, a respeitável togada pede para que os advogados enviem memoriais curtos e que chamem atenção aos pontos centrais do processo que será julgado em ambiente virtual. Garante ainda que lê todos e adora quando os recebe.

"É preciso fazer uso apropriado e humanizado da tecnologia, especialmente no judiciário. A filosofia, o amor ao próximo e o dever do cuidado com cada processo não estão obsoletos ou fora de moda. Pelo contrário, elas se mostram essenciais, especialmente nesse momento em que passamos por profundas mudanças."

Mas as mudanças na forma de julgar não se limitam ao ambiente virtual. Se por um lado, robôs e softwares auxiliam na identificação de processos prescritos, advogados litigantes e padrões de pedidos, por outro, eles realizam análises e conclusões que não levam em conta diferenças e particularidades do fato concreto. É inegável o auxílio dessas ferramentas, mas deve-se pontuar as modificações inerentes à sociedade e à vida moderna, que a todo instante nos oferece prismas novos de velhos fatos. "Há 15 anos não se ouvia falar em assédio sexual em transporte de passageiros. A jurisprudência foi formada em outro tempo, mas o que a máquina vai reunir é a jurisprudência que está lá, antiga e consolidada."

Para ela, o olhar atento do juiz jamais poderá ser substituído pela inteligência artificial, pelo contrário, cada dia mais deverá ser ativado para que os julgamentos sejam feitos dentro da lei com o viés de compaixão e altruísmo.  

"Não estou dizendo para não aplicar a lei, tão pouco incentivando a prática do temido ativismo judiciário. Estou a dizer que se deve ler e aplicar a lei com o viés humanizado. Não posso esquecer que nos polos estão pessoas."

E finalizou "cabe a nós imigrantes digitais manter vivida a diferença do olhar humanizado do juiz para alertar os nativos digitais de que não podemos nos distrair com a força poderosa e inexorável da era digital. Especialmente porque o trabalho do juiz envolve a vida, a liberdade e os bens duramente adquiridos pelas pessoas e por isso carece sempre de um olhar humanizado."

Aplaudida de pé, a ministra ainda cumprimentou e gentilemente tirou 'selfies' com os presentes. 

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